Raphael Câmara Medeiros Parente

O <a href="https://www.jota.info/artigos/um-olhar-profundo-sobre-a-regulacao-da-relacao-medico-industria">artigo</a> "Um olhar profundo sobre a regulação da relação médico-indústria", publicado neste JOTA, afirma que a <a href="https://sistemas.cfm.org.br/normas/visualizar/resolucoes/BR/2024/2386">Resolução CFM 2.386/2024</a>, da qual fui relator, tem problemas de inconstitucionalidade. Queremos apresentar o contraditório na defesa da resolução e da sua legalidade.
É importante dizer que cabe ao Conselho Federal de Medicina (<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/cfm">CFM</a>) por Lei Federal de 1957 normatizar a ética médica. Vários estudos já provaram que uma relação íntima entre prescritores e indústria farmacêutica sem a publicização dos conflitos de interesses pode ser extremamente deletéria para os pacientes e o sistema de saúde, trazendo custos enormes para as contas públicas com pressão por incorporação e pagamento de medicamentos caríssimos que têm sua eficácia sobrevalorizada por formadores de opinião contratados sem que quem os ouça saiba que estão recebendo das indústrias farmacêuticas.
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Diversos países possuem legislação referente à divulgação de relação direta entre médicos e indústrias – inclusive com regulação muito mais rigorosa, obrigando a divulgar o quanto recebe. A mais conhecida é a legislação dos Estados Unidos sobre o tema, Physician Payments Sunshine Act (Section 6002 da Public Law 111-148, de 23 de março de 2010), que se tornou referência mundial. Ela tem como objetivo dar transparência aos valores pagos pela indústria aos médicos. A lógica é a de que supostamente haveria, pelas vantagens auferidas aos médicos, um aumento de prescrições de determinados remédios ou da indicação de determinados procedimentos e solicitações de exames. 
A exposição dos dados evitaria possíveis problemas em relação a prescrições para evitar dúvidas dos pacientes em relação aos médicos. No Brasil, Minas Gerais foi o estado que primeiro legislou baseado na lei norte-americana, com a Lei Estadual 22.440/2016. A relação entre profissionais de saúde e as indústrias, quando não há transparência, pode ser prejudicial. Não se sabe se o que o profissional prega é advindo de suas próprias convicções e estudos científicos ou advindo de benefícios recebidos por ele para propagar o uso de determinado medicamento. Com a pandemia da Covid-19 e o aumento das falas de pesquisadores e médicos na imprensa, muitos com conflitos de interesses com a indústria que não são declarados, essa questão ganhou monta. 
As falas desses profissionais, inclusive, podem interferir em políticas públicas pressionando compras de medicamentos, por exemplo, pelo poder público com custos de bilhões de dólares que interferem no funcionamento do Sistema Único de Saúde (<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/SUS">SUS</a>).
Os exemplos são vários. Artigo publicado no Plastic and Reconstructive Surgery, em 2019, compara pagamentos recebidos por palestrantes de empresas em conferências anuais da Sociedade Americana de Cirurgiões Plásticos (ASPS) e da Sociedade Americana de Cirurgia Plástica Estética (ASAPS), com o pagamento dos demais cirurgiões plásticos.
Os dados gerais de pagamentos foram coletados do banco de dados de pagamentos abertos para os médicos listados como apresentador, moderador, palestrante e instrutor nas conferências anuais da ASPS e da ASAPS, de 2017. A média e a mediana para pagamentos gerais feitas aos palestrantes de conferências da ASPS (n=75) e da ASAPS (n=249) foram de US$ 75.577 e US$ 861, e US$ 27.562 e US$ 1.021, respectivamente.
Em comparação com o pagamento médio geral recebido pelos cirurgiões plásticos (média US$ 4.788, mediana US$ 3.209), essas diferenças foram significativas (ASAPS, p=0,015; ASPS, p=0,0004). Como conclusão, os autores acreditam que pode haver influência sobre alguns dos conteúdos das conferências, por conta da diferença significativa entre os pagamentos.
Uma revisão sistemática de 2017 publicada na BMJ (Fickweiler e cols, 2017) mostrou que interações do representante de vendas de indústrias farmacêuticas podem influenciar as atitudes dos médicos e suas prescrições e comportamentos, aumentar o número de solicitações dos medicamentos da empresa e contribuir para a prescrição irracional desses produtos.
Uma metanálise publicada no JAMA (Wazana, 2000) é uma das mais citadas até os dias de hoje sobre o tema com o sugestivo título: “Os médicos e a indústria farmacêutica: um presente é sempre apenas um presente?”. Ela concluiu que as interações dos médicos com representantes farmacêuticos geralmente começam na faculdade de medicina, que as reuniões com representantes farmacêuticos estiveram associadas a solicitações de médicos para inclusão dos medicamentos no formulário hospitalar e trouxeram mudanças na prática de prescrição. 
A educação médica continuada patrocinada pelas empresas farmacêuticas destacou preferencialmente os medicamentos do patrocinador em comparação com outros programas de educação médica. Participar de eventos patrocinados pelas empresas e aceitar financiamento para viagens ou hospedagem para simpósios educacionais foram associados ao aumento das taxas de prescrição de medicações do patrocinador. Assistir a apresentações feitas por palestrantes da indústria farmacêutica também foi associado à prescrição irracional. 
Também há diversos casos envolvendo prescrição de medicamentos oncológicos. Dentre os médicos integrantes da Rede Nacional Abrangente de Câncer (National Comprehensive Cancer Network, NCCN) dos Estados Unidos, uma pesquisa publicada em 2016 no JAMA mostrou que 86% dos médicos da rede, que participam da elaboração de diretrizes para tratar câncer nos EUA, entram em situações de conflitos de interesse em suas relações com a indústria farmacêutica.
Foram analisadas as ligações da indústria com 125 autores da NCCN, responsáveis por determinar as diretrizes nos tratamentos de câncer nos Estados Unidos. Dos 86% de especialistas que apresentaram ao menos uma situação de conflito de interesse, 84% receberam um ou mais pagamentos da indústria e apenas 47% receberam investimentos só em pesquisa.
O artigo no JOTA lista possíveis problemas da resolução. O principal argumento é que a resolução vai de encontro à Lei Geral de Proteção de Dados (<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/LGPD">LGPD</a>) e que isso só seria possível se fosse previsto em lei. Todas as resoluções do CFM têm um parecer jurídico atrelado por ser uma autarquia federal regida pela legalidade. 
A LGPD no seu artigo 7º diz que: “o tratamento de dados pessoais somente poderá ser realizado nas seguintes hipóteses: inciso II: para o cumprimento de obrigação legal ou regulatória [grifo nosso] pelo controlador”. O poder regulador da ética médica é exatamente o que uma também lei federal dá ao CFM. Importante dizer que a resolução do CFM não impede que médicos recebam quaisquer valores da indústria. Somente determina que os vínculos com as indústrias sejam tornados públicos. 
Como médico, tenho certeza que nenhum médico probo terá qualquer constrangimento que todos saibam que ele tem vínculo com a indústria. Deve ser frisado que a lei federal concede ao CFM exigir obrigações éticas com respaldo em norma regulamentar.
Por exemplo, a resolução de publicidade de 2023 já exige que médicos declarem conflitos de interesse ao darem aulas, participarem de entrevistas e outras situações. E isso não está previsto em lei. O autor do artigo coloca essa interessante frase: “Afinal, se é verdade que uma relação pouco transparente entre médico e indústria pode trazer prejuízos gerais, é igualmente verdade que inibir essa relação, lançando sobre ela um manto de suspeita, pode, por exemplo, dificultar a capacitação dos médicos para a adoção de novas tecnologias.” Interessante porque coloca dois fortes argumentos a favor da resolução. 
Como sobejamente demonstrado, é deletéria a relação indústria e médicos sem transparência. Inclusive para as contas públicas, com médicos pressionando gestores a comprarem medicamentos de custos bilionários com pouca ou nenhuma eficácia, em entrevistas em que não declaram seus conflitos de interesse e acusam os gestores de serem negligentes ao não efetuarem as compras, ou pressionando a Conitec a incorporarem esses medicamentos ao SUS, ou induzindo pacientes a comprarem medicamentos muitas vezes sem utilidade para seus casos que podem levar a problemas graves e mortes.
Muitas vezes isso não é feito porque o remédio é bom, mas porque quem faz a propaganda recebe dinheiro da indústria. E não é verdade que a resolução dificulta o aprendizado de novas tecnologias pelos médicos. As indústrias podem fazer essa capacitação de todos os médicos que quiserem. Absolutamente nenhum ato está proibido pela resolução. Somente se pede a transparência do vínculo de quem recebe dinheiro. 
Nem sequer se exige o valor, já que isso poderia caracterizar quebra de sigilo fiscal. Quem se sentir constrangido por divulgar que recebe de determinada indústria não terá motivo ético para justificar esse receio. Um médico conceituado que defende um medicamento porque acredita nele não terá problema em declarar seu vínculo. Interessante que o artigo inclusive orienta formas de quem se sentir prejudicado com a resolução provocar o Judiciário. Até o momento, não houve nenhuma ação judicial para a derrubar. Fico curioso em saber não o meio jurídico utilizado para tentar revogar a resolução, caso exista alguma ação judicial no futuro, mas sim a fundamentação e, principalmente, quem tentará isso, seja de forma declarada ou oculta. 
O médico tem a autonomia assegurada na prescrição de medicamentos, solicitação de exames e indicação de procedimentos. Mas algumas vezes essa decisão na escolha do medicamento não é obtida somente no seu tirocínio de qual seja a melhor tomada de decisão, mas sim em benefícios recebidos da indústria farmacêutica.
É importante que todos saibam desses possíveis conflitos de interesses ao se consultarem ou ao ouvir a opinião do médico em mídias sociais ou jornalísticas. A transparência não tem nenhum problema para pessoas éticas. Cabe ao CFM regular a ética médica no Brasil e essa resolução é um marco histórico na busca de uma relação saudável entre médicos, indústrias e pacientes.

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JOTA

Conselho Federal de Medicina deve regular ética médica, e norma busca relação saudável entre médicos, indústria e pacientes

Resolução do CFM que dá transparência à relação médico-indústria é marco histórico

CFM deve regular ética médica no Brasil, e resolução busca relação saudável entre médicos, indústria e pacientes