Daniel Carvalho Cardinali

Não é novidade afirmar que, em face da pouca receptividade do Congresso, o movimento LGBT se voltou para o Judiciário – e para o STF em particular – para fazer avançar suas demandas, tendo obtido razoável sucesso, como atestam, por exemplo, as decisões que reconheceram o direito à união homoafetiva e à alteração do registro civil de pessoas trans.
A eleição de um congresso ainda mais conservador em 2018 e, principalmente, de um presidente vocalmente oposto aos direitos de minorias sexuais e de gênero <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/os-direitos-lgbt-o-governo-bolsonaro-e-o-stf-21112018" target="_blank" rel="noopener noreferrer">levantou preocupações quanto ao risco da reversão de conquistas, bem como quanto à capacidade do STF em continuar dando respostas positivas</a>, considerando a miríade de casos relativos aos direitos LGBT em tramitação na corte.
<a href="https://conteudo.jota.info/risco-politico"><img class="aligncenter wp-image-244336 size-full" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2020/04/cta-risco-politico.png" alt="" width="1080" height="1080" /></a>
A verdade, porém, é que a atuação do STF em prol dos direitos LGBT se tornou ainda mais intensa após a eleição de Bolsonaro, podendo ser conjecturado inclusive que esta postura traduz uma estratégia institucional consciente para uma marcar posição – firme e unívoca – no enfrentamento da agenda conservadora do governo.
Com efeito, desde o ano passado – mas especialmente nos últimos meses, <a href="https://www.jota.info/stf/supra/opacidade-plenario-virtual-zika-censura-escolas-12052020" target="_blank" rel="noopener noreferrer">com a ampliação do uso do plenário virtual que permitiu a rápida solução de temas polêmicos</a> – o STF:
(a) <a href="https://www.jota.info/stf/do-supremo/por-maioria-stf-enquadra-homofobia-transfobia-crime-racismo-13062019" target="_blank" rel="noopener noreferrer">determinou que a LGBTfobia deve receber o mesmo tratamento penal do racismo</a>;
(b) <a href="https://www.jota.info/stf/do-supremo/maioria-do-stf-vota-por-derrubar-restricao-de-doacao-de-sangue-por-homossexuais-08052020" target="_blank" rel="noopener noreferrer">considerou inconstitucional as normas que impediam a doação de sangue por homens que tenham feito sexo com outros homens</a>;
(c) <a href="https://www.jota.info/stf/do-supremo/turma-do-stf-reafirma-validade-de-resolucao-do-cfp-contra-a-cura-gay-26052020" target="_blank" rel="noopener noreferrer">revogou a decisão que abria margem para atuação de psicólogos na chamada “cura gay”</a>;
(d) <a href="https://www1.folha.uol.com.br/educacao/2020/04/stf-forma-maioria-para-declarar-inconstitucional-lei-que-veta-discussao-de-genero-nas-escolas.shtml?aff_source=56d95533a8284936a374e3a6da3d7996" target="_blank" rel="noopener noreferrer">declarou inconstitucionais em julgamento definitivo ou cautelar leis de vários municípios que visavam impedir o debate de gênero e sexualidade nas escolas</a>;
(e) <a href="https://www2.stf.jus.br/portalStfInternacional/cms/destaquesClipping.php?sigla=portalStfDestaque_pt_br&amp;idConteudo=425213" target="_blank" rel="noopener noreferrer">afirmou a impossibilidade dos entes federativos dar tratamento diferenciado às famílias homoafetivas</a>.
À primeira vista, portanto, poder-se-ia imaginar que, a despeito da quadra histórica geral, os direitos LGBT estão garantidos e sendo plenamente fruídos. A verdade, porém, é bastante diferente.
O recurso aos tribunais como estratégia de avanço de demandas sociais pode incorrer numa certa superestimação do impacto concreto das vitórias judiciais, que, se por um lado, invariavelmente irão render boas manchetes de jornal, por outro nem sempre têm garantida capacidade de trazer mudanças no mundo real.
Ativistas e juristas muitas vezes incorrem no erro de pensar que uma decisão do STF é o fim da história em relação àquele determinado tema. Esta perspectiva vem sendo questionada academicamente, por exemplo, através da crítica à ideia de “última palavra” e das noções de diálogos constitucionais e correção legislativa.
Assim, as vitórias no STF invariavelmente vieram acompanhadas de iniciativas e projetos que visam a reversão pura e simples das decisões, <a href="https://www.jota.info/paywall?redirect_to=//www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/o-estatuto-da-familia-e-a-voz-do-congresso-01102015" target="_blank" rel="noopener noreferrer">como o chamado “Estatuto da Família”</a> e <a href="https://revistaforum.com.br/direitos/deputado-bolsonarista-cria-projeto-de-lei-que-acaba-com-direitos-de-pessoas-trans/" target="_blank" rel="noopener noreferrer">o recente PL que pretende retroceder direitos trans a partir de uma visão biologizante essencialista de sexo</a>, ou a punição do tribunal e seus membros, como <a href="https://www.jota.info/paywall?redirect_to=//www.jota.info/stf/do-supremo/celso-de-mello-e-superlativa-intolerancia-impeachment-por-voto-sobre-homofobia-23052019" target="_blank" rel="noopener noreferrer">os pedidos de impeachment de ministros após o voto favorável na ação da criminalização da LGBTfobia</a>.
Mas, ainda num momento anterior a estes debates, é preciso destacar que o que uma decisão favorável faz é colocar aqueles que se sagraram vitoriosos na arena judicial em disputa com aqueles que restaram derrotados, cujos mecanismos de resistência, evasão ou pura recusa ao cumprimento muitas vezes são substanciais<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>.
Assim, a auspiciosa narrativa de vitórias em série no tema dos direitos LGBT revela apenas metade da história – e deixa de considerar que todos os casos têm sido objeto de intensa recalcitrância que coloca em xeque o próprio potencial transformador da decisão.
<blockquote class="jota-article__eye">Essa reação que pretende sabotar ou reverter uma dada decisão judicial, quando assume um determinado nível de intensidade e organização, tem sido caracterizada pelo debate constitucional a partir da noção de backlash.</blockquote>
Essa resistência muitas vezes pode ser de baixo para cima. Assim, por exemplo, <a href="http://portal.anvisa.gov.br/resultado-de-busca?p_p_id=101&amp;p_p_lifecycle=0&amp;p_p_state=maximized&amp;p_p_mode=view&amp;p_p_col_id=column-1&amp;p_p_col_count=1&amp;_101_struts_action=%2Fasset_publisher%2Fview_content&amp;_101_assetEntryId=5879663&amp;_101_type=content&amp;_101_groupId=219201&amp;_101_urlTitle=doacao-de-sangue-normas-da-rdc-34-permanecem-em-vigor&amp;redirect=http%3A%2F%2Fportal.anvisa.gov.br%2Fresultado-de-busca%3Fp_p_id%3D3%26p_p_lifecycle%3D0%26p_p_state%3Dnormal%26p_p_mode%3Dview%26p_p_col_id%3Dcolumn-1%26p_p_col_count%3D1%26_3_groupId%3D0%26_3_keywords%3Dstf%26_3_cur%3D1%26_3_struts_action%3D%252Fsearch%252Fsearch%26_3_format%3D%26_3_formDate%3D1441824476958&amp;inheritRedirect=true" target="_blank" rel="noopener noreferrer">a própria Anvisa determinou expressamente a manutenção da normativa</a> – já considerada discriminatória pelo STF – que proíbe a doação de sangue por homossexuais até “o encerramento definitivo do julgamento” o que, de acordo com a agência, aconteceria somente com a futura publicação do acórdão, o que não raro pode levar meses ou mesmo anos, em que pese ser tranquila a jurisprudência do tribunal no sentido de que <a href="http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=293240" target="_blank" rel="noopener noreferrer">bastaria a publicação da ata da sessão de julgamento</a>. Trata-se, portanto, de evidente estratégia de evadir-se ao cumprimento da decisão, mantendo-se tudo como era antes do julgamento<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>.
A resistência ao cumprimento de uma decisão pode também se dar “na ponta de lança”. Assim, apesar da decisão do STF que reconheceu o direito de alteração do registro civil de pessoas trans independentemente de decisão judicial – que foi inclusive regulamentada por <a href="https://atos.cnj.jus.br/files/provimento/provimento_73_28062018_02072018160046.pdf" target="_blank" rel="noopener noreferrer">provimento do CNJ</a> – multiplicam-se <a href="https://oglobo.globo.com/sociedade/dia-internacional-de-combate-lgbtfobia-desde-2018-mais-de-6-mil-pessoas-realizaram-mudanca-de-nome-genero-nos-cartorios-do-brasil-24296858" target="_blank" rel="noopener noreferrer">os relatos de pessoas trans de que os cartórios estariam se recusando a cumprir a decisão judicial</a>.
Alega-se que o direito não existe, cobra-se prova da decisão judicial, exige-se documentos adicionais, nega-se a gratuidade, entre outros artifícios e subterfúgios burocráticos que servem para mitigar a efetividade do pronunciamento do STF.
Neste sentido, o objetivo expresso do STF de simplificar o acesso à alteração a partir da possibilidade de fazê-la diretamente no cartório, tornando desnecessário o recurso ao processo judicial, muitas vezes impeditivo para uma população tão marginalizada, acaba frustrado.
O mesmo vem acontecendo com a decisão da criminalização da LGBTfobia. Embora o tema tenha produzido vivazes debates acadêmicos sobre os limites da atuação do STF e consumido um substancial número de sessões de julgamento, <a href="https://www.huffpostbrasil.com/entry/lgbtfobia-stf-criminalizacao-resultado_br_5e00f394e4b0843d35ffb3e3" target="_blank" rel="noopener noreferrer">o impacto efetivo na vida das pessoas LGBT tem sido tépido</a>.
Assim, por exemplo, as barreiras invisíveis que dificultam a denúncia de casos de discriminação e violência, a falta de políticas públicas efetivas para conscientização e prevenção, o despreparo de delegacias e agentes policiais, entre outros obstáculos parecem apontar para uma vitória que ainda está mais no campo do simbólico do que de uma transformação concreta, crítica semelhante a que é feita à própria criminalização do racismo.
As decisões que declararam inconstitucionais ou suspenderam leis municipais que visam a impedir o debate de gênero e sexualidade em escolas, a partir da ideia de que haveria uma “ideologia de gênero”, apresentam ainda dificuldades adicionais.
A não adoção da teoria dos motivos determinantes e a ausência de vinculação do Poder Legislativo às decisões do STF, somados a multiplicação de legislação idêntica à já rechaçada em dezenas ou mesmo centenas de outros municípios, podem fazer a jurisdição constitucional parecer um interminável jogo de gato e rato.
Ademais, a incapacidade de o STF garantir o cumprimento da sua jurisprudência pelas diversas administrações municipais tem o condão de gerar um “efeito silenciador” (“chilling effect”) e obstar o debate nas escolas de qualquer forma – fazendo a lei produzir os seus efeitos desejados mesmo depois de declarada inconstitucional.
Não por acaso, análises mais positivas acerca da atuação das instituições indicam que o risco de descumprimento de uma decisão é algo sempre levado em consideração pelos juízes na hora de decidir, que procurarão manter-se numa certa “faixa de aceitabilidade” do que os demais agentes institucionais e os mores sociais estão dispostos tolerar.
Por outro lado, pode ser que o tribunal, ao proferir uma decisão sobre um questão polêmica, em alguma medida “lave as mãos” quanto ao seu descumprimento, por meio, por exemplo, de obstáculos ao uso de instrumentos processuais que poderiam forçá-lo a dobrar a rebeldia das instâncias judiciais inferiores, como a reclamação<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>.
Neste sentido, é de se notar que as decisões do STF no tema dos direitos LGBT muitas vezes privilegiam aqueles casos que tratam apenas de uma mudança de status “formal”, não aparente no trato social, e, neste sentido, que não “incomoda”, e, portanto, gera menor risco de descumprimento e consequente exposição da corte.
Assim, por exemplo, é sintomático que o julgamento a respeito da alteração de registro civil de pessoas trans tenha levantado muito menos polêmica dentro do próprio tribunal do que o recurso extraordinária que trata, a partir de negativa do uso de um banheiro num shopping, do tratamento social de acordo com o gênero de autoidentificação, <a href="https://sxpolitics.org/ptbr/o-stf-e-os-direitos-transexuais-alguns-comentarios-sobre-a-polemica-do-banheiro/5562" target="_blank" rel="noopener noreferrer">cuja sessão de julgamento foi marcada pelo desconforto de mais de um ministro com o tema</a>.
Enquanto no primeiro caso as instâncias de resistência são cartórios e o próprio poder judiciário –  para os quais o sistema jurídico já prevê um sistema estruturado de impugnação –, no segundo caso o desafio a uma ordem geral do STF poderia advir de qualquer banheiro público, trocador de loja ou qualquer outro espaço generificado no território nacional, <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/stf-e-direitos-trans-possibilidade-de-alteracao-registral-de-pessoas-transexuais-27022018">ponto que já destaquei neste mesmo espaço</a>.
Em última análise, o reconhecimento pelo Judiciário de um determinado direito é, portanto, apenas o prelúdio na luta pela efetivação e concretização daquela decisão<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>. Juristas de forma geral e ativistas por vezes costumam depositar uma esperança vã na capacidade do Direito e do judiciário produzirem mudanças sociais<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>.
Em verdade, porém, as decisões judiciais transformadoras pouco podem sozinhas, devendo vir acompanhadas de efetivo e enérgico engajamento social para que as suas promessas transcendam o papel e passem a ser vivenciadas concretamente pelas pessoas.
Não é outra, aliás, a lição daquele que é provavelmente o mais famoso julgamento favorável num caso de litígio estratégico do mundo: Brown v. Board of Education, em que a Suprema Corte Estadunidense declarou inconstitucional o sistema “separate but equal” de segregação racial.
Embora a decisão tenha sido tomada em 1954, foi somente a partir do movimento dos direitos civis e da atuação de figuras como Martin Luther King na década seguinte que a mudança social ganhou tração<a href="#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a>.
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Um exemplo dramático neste sentido<a href="https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2020/06/06/apos-stf-proibir-operacoes-policiais-trocam-tiros-no-complexo-do-alemao.htm" target="_blank" rel="noopener noreferrer"> é a realização de operação no Complexo do Alemão</a> no dia seguinte à <a href="https://www.jota.info/stf/do-supremo/fachin-proibe-operacoes-policiais-no-rio-de-janeiro-enquanto-durar-a-pandemia-05062020" target="_blank" rel="noopener noreferrer">decisão do min. Fachin na ADPF 635 que proibiu operações policiais nas comunidades no Rio de Janeiro durante a quarentena em razão da crise da Covid-19</a>.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> Após o <a href="https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/06/10/acoes-no-stf-dizem-que-anvisa-descumpre-decisao-que-autorizou-doacao-de-sangue-por-homens-gays.ghtml" target="_blank" rel="noopener noreferrer">ajuizamento de duas reclamações no STF</a> e de um <a href="https://action.allout.org/pt-br/m/910b1c1e/" target="_blank" rel="noopener noreferrer">abaixo assinado promovido pela All Out ter conseguido mais de 15 mil assinaturas</a>, <a href="https://oglobo.globo.com/sociedade/ministerio-da-saude-orienta-hemocentros-permitir-doacao-de-sangue-por-homens-gays-1-24481249" target="_blank" rel="noopener noreferrer">o Ministério da Saúde expediu ofício</a> orientando os hemocentros de todo o país ao cumprimento imediato da decisão.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> Assim, por exemplo, o min. Lewandowski concedeu habeas corpus coletivo (HC 143.641) em prol de presas cautelares gestantes ou mães de filhos pequenos para determinar que, salvo casos excepcionais, deveria a prisão neste caso ser domiciliar, tomando o cuidado, entretanto, de ser expresso quanto ao descabimento de reclamação no caso de descumprimento. Outro exemplo é o Recurso Extraordinário nº 760.931 em que o STF reafirmou que o descumprimento das obrigações trabalhistas pela empresa terceirizada não transfere automaticamente a responsabilidade para a administração pública. Em que pese a tese a rigor já ter sido fixada na ADC nº 16, o tribunal entendeu que o recurso extraordinário substituiu o primeiro julgado em ação de controle concentrado, o que teve por consequência dificultar a reclamação, ao condicioná-la ao esgotamento das instâncias ordinárias.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> SCHEINGOLD, Stuart A. The Politics of Rights: lawyers, public policy and political change. 2ª Ed. Ann Arbor: University of Michigan Press, 2004, p. 123.
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> Ou uma “esperança oca”, na tradução mais literal do título da famosa obra de Gerald Rosenberg acerca da incapacidade de o judiciário produzir efetiva e duradora transformação social.
<a href="#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a> O brutal assassinato de um homem negro, George Floyd, pela polícia de Minneapolis, e todas as manifestações que se seguiram denunciando a violência policial e o racismo destacam o quanto ainda é necessário avançar.

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JOTA

Decisões transformadoras pouco podem sozinhas, devendo vir acompanhadas de efetivo e enérgico engajamento social

Resistência e descumprimento das decisões do STF sobre direitos LGBT

Decisões transformadoras pouco podem sozinhas, devendo vir acompanhadas de efetivo e enérgico engajamento social