Isabella Henriques

Miriam Pragita

Ainda que um terço da nossa população seja composta por crianças e adolescentes, com aproximadamente 70 milhões de indivíduos, <a href="https://fadc.org.br/noticias/fundacao-abrinq-traca-panorama-da-infancia-e-adolescencia-no-brasil">segundo dados da Fundação Abrinq</a>, seus direitos fundamentais vêm sendo negligenciados. O Brasil tem, sistematicamente, silenciado as suas vozes e desrespeitado a legislação federal, que há mais de três décadas reforça e detalha o comando constitucional que os alçou a sujeitos de direitos. Foi em 13 de julho de 1990, com a promulgação do <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/eca">Estatuto da Criança e do Adolescente</a> (ECA), que se regulamentaram as regras e os princípios estabelecidos pelo artigo 227 da Constituição Federal — dispositivo responsável por romper com o paradigma menorista, que até então tratava meninas e meninos em situação de vulnerabilidade socioeconômica como cidadãos de segunda categoria, submetidos à tutela do Estado.
É verdade que tivemos motivos para comemorar, a exemplo da queda de mais de 68% na taxa de mortalidade infantil entre 1990 e 2015, de acordo com informações do <a href="https://portaldeboaspraticas.iff.fiocruz.br/biblioteca/principais-causas-da-mortalidade-na-infancia-no-brasil-em-1990-e-2015-estimativas/">DataSus</a>, e a quase universalidade da taxa de matrículas nos primeiros anos do ensino fundamental, segundo relatório da OCDE traduzido pelo <a href="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2022/07/a-educacao-no-brasil-uma-perspectiva-internacional-compressed.pdf">Todos pela Educação</a>. Os avanços conquistados ao longo desse período devem ser celebrados, em especial o fato de que todas as crianças e todos os adolescentes passaram efetivamente a serem sujeitos de direitos com a garantia da  “absoluta prioridade”.
Absoluta prioridade que não se confunde com qualquer tipo de privilégio, mas diz respeito à perspectiva ética e humanizadora da legislação, que reconhece e valoriza a condição de pessoa em peculiar fase de desenvolvimento experimentada por cada indivíduo, desde seu nascimento até completar 18 anos, que não encontra paralelo em qualquer outro momento da vida humana.
A primeira infância, que compreende a fase de 0 aos 6 anos, é um momento crucial, pois é quando ocorre o desenvolvimento de estruturas e circuitos cerebrais, além da aquisição de capacidades fundamentais, que contribuirão mais tarde com o aprimoramento de habilidades mais complexas, como mostra o <a href="https://ncpi.org.br/primeira-infancia/">Núcleo Ciência Pela Vida</a>. No <a href="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2022/07/adolescent-brain-a-second-window-of-opportunity-a-compendium-compressed.pdf">relatório “O cérebro dos adolescentes”</a>, a Unicef destaca, ainda, que a adolescência é considerada a segunda janela de oportunidades para o desenvolvimento do jovem e para o seu futuro. Está comprovado, então, que o investimento na vida de crianças e adolescentes é fundamental para o desenvolvimento integral, com impactos positivos para toda a sociedade.
A passagem do 32º aniversário do ECA exige, contudo, que também se denuncie o momento crítico vivido pelas diversas infâncias e adolescências em nosso país. São constantes as violações de direitos, precarizando avanços alcançados em diversas áreas, como o acesso à educação, à saúde, à nutrição adequada, entre outros.
A real dimensão do retrocesso que se abate sobre o Brasil é explicitada pelos 33 milhões de brasileiros que atualmente passam fome. De acordo com <a href="https://olheparaafome.com.br/">relatório da Rede Penssan</a> (Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional), entre os domicílios que sofrem com insegurança alimentar grave e moderada, 25% são compostos por três ou mais pessoas com até 18 anos de idade. Isso, registre-se, em uma nação que poucos anos atrás comemorava ter saído do <a href="https://www.fao.org/3/i4030e/i4030e.pdf">Mapa da Fome da ONU</a>.
Não faltam indicadores a corroborar esse cenário de emergência:
<ul>
<li>contabilizamos quase 170 mil órfãos de 0 a 17 anos de idade, segundo dados compilados no <a href="https://alana.org.br/wp-content/uploads/2022/03/DOSSIE-INFANCIAS-E-COVID-19.pdf">Dossiê Infâncias e Covid-19, do Instituto Alana</a>;</li>
<li>o <a href="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2022/07/nota-tecnica-taxas-de-atendimento-escolar.pdf">relatório do Todos pela Educação</a> aponta que se elevou em 171% a taxa de evasão escolar durante a pandemia;</li>
<li>somente no último ano, o Brasil teve 2.500 crianças assassinadas, destaca o <a href="https://forumseguranca.org.br/anuario-brasileiro-seguranca-publica/">anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública</a>;</li>
<li>ao mesmo tempo, ocorreu aumento de 11% nos casos de abandono de incapaz e de 7,8% nos casos de exploração sexual infantil, segundo o mesmo anuário;</li>
<li>para ilustrar o quanto o setor ambiental também carece de boas notícias, basta lembrar que, de acordo com o <a href="https://www.gov.br/inpe/pt-br">Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe)</a>, no primeiro semestre de 2022 a área sob alerta de desmatamento na Amazônia Legal foi a maior nos últimos sete anos — tragédia que compromete não apenas o presente e o futuro das crianças e adolescentes da região, mas de todo o país.</li>
</ul>
Este é apenas um fragmento do panorama atual: temos um país flagelado por múltiplas crises e pela incapacidade do Estado em tratá-las com empenho e eficácia. Ao invés de desempenhar o papel constitucional de garantidor de direitos, tem se tornado um agente violador. Exemplo disso é o<a href="https://www.inesc.org.br/wp-content/uploads/2022/04/BalancoOrcamento2021-Inesc-1.pdf"> levantamento do INESC, de 2021</a>, que mostra que a categoria orçamentária que mais agrega ações voltadas para a infância e a adolescência tinha 30 ações previstas em 2012, caindo para apenas 3 em 2021. Nos últimos três anos, o orçamento executado na sub-função de assistência à criança e ao adolescente sofreu queda de 28,1%, de R$ 531,6 milhões para R$ 382,2 milhões.
Esses são apenas alguns dos números e dos complexos desafios socioeconômicos e ambientais que requerem uma repactuação da sociedade brasileira e do poder público, visando efetivamente a situar crianças e adolescentes em uma posição de centralidade no contexto dos programas e políticas públicas.
Precisamos urgentemente fazer valer o que a Constituição Federal estabelece no artigo 227: “É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”.
A Agenda 227, movimento que reúne mais de 170 organizações da sociedade civil em prol da infância e da adolescência no Brasil, nasce justamente com o objetivo de resgatar a importância do pacto que fizemos como nação na Constituinte e depois na construção do ECA, e jogar luz ao ponto central para construirmos um país mais justo, democrático, sustentável e inclusivo: não haverá futuro se não cuidarmos do nosso presente.

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JOTA

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