José Vicente Santos de Mendonça
Professor Adjunto de Direito Administrativo da UERJ. Advogado e procurador do estado do RJ. Coordenador do Laboratório de Regulação Econômica da UERJ. - josevicente@josevicentemendonca.com.br
Existem questões clássicas do Direito Público que ainda não encontraram resposta satisfatória. Uma delas é o espaço da lei na Administração. O que deve ser tratado por lei? O que pode ficar para o regulamento? Como um pode triunfar sobre o outro?
Três casos recentes ilustram o ponto. Nas ADI 4093 e 4954, o Supremo entendeu que leis estaduais não podiam exigir que farmácias só vendam medicamentos. Ao afirmar isso, o STF também analisou regulamento da ANVISA que proibia a oferta, pelas farmácias, de artigos de conveniência. A conclusão foi a de que a proibição só poderia vir por lei, e não por regulamento. Seria decisão política, e não técnica. Ora, decisões políticas se tomam por leis.
No segundo caso, o Supremo invalidou lei federal que, contra a proibição da ANVISA, permitia o uso da fosfoetanolamina para a confecção da "pílula do câncer". Um dos argumentos da maioria vencedora no Supremo é o de que, para certas matérias, haveria uma reserva de Administração. Seria a ANVISA, e não o Congresso, o detentor da expertise técnica sobre a substância. Apesar da intenção da lei - garantir esperança a desenganados -, só o Executivo poderia tratar do tema. A técnica (o regulamento) venceria a política (a lei).
O terceiro caso será julgado pelo STF. É a discussão a respeito da proibição, novamente pela ANVISA, de ingredientes (por ex., os que dão sabor característico) nos cigarros. A agência editou regulamento que os proibia; ele foi suspenso cautelarmente pelo STF, e, agora, vai-se julgar o mérito. Um dos principais argumentos da ação é o de que a decisão de proibir o uso de ingredientes é decisão antes de política pública - reduzir a iniciação ao cigarro - do que técnica.
A questão por detrás dessas decisões é: qual o critério para o que é técnico e o que é político? No que consiste o núcleo duro da decisão política? Proibir artigos de conveniência em farmácias, e cigarros mentolados, parecem indicar certa pauta de perfeccionismo moral para a sociedade (evitar o consumo excessivo de remédios; combater o cigarro); é conveniente que fiquem para o Congresso. Mas, e a concessão de esperança aos desesperados? Por que esse tipo de decisão política não vence o dado técnico de que a fosfoletamina é inútil? Em que medida a utilidade da fosfoetanolamina sequer é relevante para uma decisão política com tal conteúdo expressivo?
Em rigor, todas as três decisões podem ser reconstruídas como decisões políticas: são discussões que perpassam, afinal, os níveis aceitos de paternalismo em nossa sociedade. Por outro lado, de modo mais ou menos intenso, premissas técnicas se imbricam em todas elas.
A impressão que se tem é a de que há antes uso retórico dessas categorias - o "técnico" e o "político" - do que reflexão consistente. Talvez seja o caso de se abandoná-las, partindo-se para critério mais simples e direto, e que aparece na Suprema Corte dos Estados Unidos: o critério do "assunto importante" (big deal principle). Há temas em que, graças a seu significado econômico ou moral, não seria razoável imaginar que o legislador haja pretendido delegar para agências. Para muitos outros, é razoável esperar que a existência das agências já seja razão para que presumir que elas possam regular. A ANVISA poderia liberar o uso recreativo da maconha? É discutível. Pode liberar o uso medicinal? Parece que sim.
Enfim: falta-nos tanto uma compreensão mais precisa dos espaços da lei e do regulamento quanto uma teoria do bypass de agências pelo Congresso ou vice-versa. É assunto clássico, importante, está na ordem do dia, e não se resolve do modo casuístico como se tem feito. Eis um tema à procura de um autor.