Artigo

Requisição administrativa para enfrentamento da Covid-19

Recentes medidas possuem importantes impactos na implementação da requisição administrativa

Foto: Marco Santos / Ag.Pará

A pandemia da COVID-19, além de colocar o mundo em alerta, trouxe para o centro da ação administrativa uma série de medidas excepcionais, tais como internações compulsórias, limitações ao direito de ir e vir de locais públicos, determinações relativas ao fechamento de estabelecimentos privados, proibições de celebrações religiosas, fechamento de estradas, entre outras medidas tomadas pelos diversos entes da federação brasileira.

Tais medidas não são desconhecidas dos publicistas brasileiros, estando previstas em leis e manuais há décadas. A grande novidade parece ser a sua aplicação em larga escala, no âmbito de todo o território nacional, por diversas entidades da federação, ao mesmo tempo.

Uma dessas medidas é a requisição administrativa de bens e serviços privados para o atendimento de situações excepcionais, com posterior indenização aos particulares cujos bens ou serviços foram utilizados pelas autoridades públicas. Tal medida não é nova no direito brasileiro, havendo previsão constitucional (art. 5º, XXV, da CF), além de normas infraconstitucionais, tais como o Decreto-Lei 4.812/42, editado durante a II Guerra Mundial, a Lei n. 8.080/90, que trata do SUS, a Lei n. 7.783/89, também conhecida como Lei de Greve e, mais recentemente, o Decreto n. 9.382/18, que tratou de medidas adotadas pelo governo federal em face da greve dos caminhoneiros.

Mais do que uma previsão em tese em decretos e leis que tratam do combate à COVID-19 – tal qual a Lei n. 13.979/20 (art. 3º, inciso VII) –, a medida foi recentemente utilizada por autoridades de importante Estado da federação. Ao que consta das notícias divulgadas[1], autoridades públicas ingressaram em estabelecimento comercial de produtos médico-hospitalares e realizaram a requisição de máscaras descartáveis para serem utilizadas por profissionais do serviço estadual de saúde. Diante da situação que parece se avizinhar, de agravamento da crise da saúde pública – de acordo com as recentes manifestações de autoridades públicas –, é possível afirmar que autoridades de outras entidades da federação podem se sentir compelidas a realizar o mesmo tipo de ação.

Sem querer tomar parte no caso concreto noticiado, cujas informações parecem não permitir a completa análise jurídica do ocorrido, pretendemos nestas poucas linhas refletir a respeito dos requisitos de validade das ações de requisição administrativa para o enfrentamento da COVID-19, consideradas de acordo com as demais medidas legislativas tomadas para a mesma finalidade.

Como resposta à pandemia global, foi editada a Lei n. 13.979/20, que “dispõe sobre as medidas que poderão ser adotadas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus responsável pelo surto de 2019” (art. 1º, caput). Dentre as medidas prevista, além da requisição administrativa, a Lei prevê a expressa dispensa de licitação para a “aquisição de bens, serviços, inclusive de engenharia, e insumos destinados ao enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus de que trata esta Lei.” (art. 4º, caput).

O art. 4º-B, incluído pela Medida Provisória n. 926/20, afirma que, para a dispensa de licitação, presumem-se atendidos os requisitos necessário para autorizar a contratação direta, tais como: (i) a ocorrência da situação de emergência; (ii) a necessidade de pronto atendimento à situação emergencial; e (iii) a existência de risco à segurança de pessoas, obras, prestação de serviços, equipamentos e outros bens públicos ou particulares. Tal dispositivo tem a finalidade de conceder conforto aos gestores públicos envolvidos nas contratações emergenciais, uma vez que dispensa as extensas motivações das situações emergenciais a serem realizadas caso a caso nos processos administrativos de contratação direta, o que contribui para a sua utilização em larga escala.

Além deste, outros dispositivos na mesma Lei estipulam regras especiais a serem seguidas neste momento excepcional, com a finalidade de facilitar a contratação direta, contribuindo para que os trâmites administrativos burocráticos sejam mais céleres para a celebração de tais contratos (cf. arts. 4º-A a 4º-I da mencionada Lei). Assim, é possível afirmar que Lei n. 13.979/20, que possui abrangência nacional, criou verdadeiro regime próprio de dispensa de licitação para as contratações destinadas ao enfrentamento da crise da COVID-19, com a finalidade de permitir que os contratos emergenciais sejam celebrados no tempo necessário para fazer frente à pandemia.

Tais medidas, a nosso ver, possuem importantes impactos na implementação da requisição administrativa, prevista na mesma Lei e em outras normas editadas por entes subnacionais. Ao permitir expressamente a contratação emergencial direta por dispensa de licitação – com requisitos de contratação facilitados em relação às disposições da Lei n. 8.666/93 (art. 24, IV) – parece-nos que foi imposto um ônus argumentativo aos gestores públicos de motivar a eventual requisição administrativa em face da inviabilidade da contratação direta.

Com efeito, a nosso ver, a medida de requisição administrativa, para ser válida, demanda que as autoridades requisitantes da propriedade ou dos serviços alheios motivem as razões pelas quais a contratação direta, com as regras e medidas previstas na Lei n. 13.979/20, não é suficiente para o atingimento das medidas necessárias ao enfrentamento da pandemia no momento em que foi adotada, uma vez que esta medida (contratação direta) nos parece ser preferível à requisição para que a administração pública.

Voltando à análise dos equipamentos médico-hospitalares – e sem entrar na questão específica da notícia acima mencionada – a requisição nos parece legítima, desde que fique expresso que a contratação direta não seria suficiente para o atingimento da finalidade da ação pública autorizada pela Lei (o combate à COVID-19), seja ante a ausência de fornecedores no mercado, seja ante o desinteresse de fornecimento ao Estado, seja por questões ligadas ao tempo necessário ao fornecimento dos bens e serviços etc.

Trata-se, então, de legitimar a ação pública não de acordo com disposições legais isoladas, mas sim consideradas dentro de todas as demais medidas previstas para este momento excepcional, cuja solução depende de medidas da administração que sejam efetivas, restringindo a liberdade e a propriedade no mínimo necessário para o enfrentamento da COVID-19, evitando que medidas legítimas de autoridade se tornem medidas meramente autoritárias.

 

————————–

[1] https://www.diariodepernambuco.com.br/noticia/vidaurbana/2020/03/governo-de-pernambuco-entra-em-loja-e-leva-mascaras-empresario-reprov.html, publicado em 20.03.2020 e acessado na mesma data.