Bernardo Strobel Guimarães

Jordão Violin

"Toda e qualquer vacina registrada, produzida ou importada no país será requisitada, centralizada e distribuída aos estados pelo Ministério da Saúde. Pazuello me informou isso aqui em Goiânia, hoje. Nenhum estado vai fazer politicagem e escolher quem vai viver ou morrer de Covid". A afirmação é de Ronaldo Caiado, governador de Goiás. A publicação, feita em redes sociais na última sexta-feira (11), ocorreu horas depois de Caiado se encontrar com o ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, em evento de inauguração de um hospital.
A postagem foi logo desmentida pelo Ministério da Saúde, que, em nota publicada ainda na sexta-feira, negou a intenção. Mas a negativa não foi suficiente para afastar a insegurança. A disputa política travada torna verossímil a afirmação. Além disso, segundo <a href="https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2020/12/ministerio-da-saude-nega-plano-de-confisco-ou-requisicao-de-vacina-contra-covid.shtml" target="_blank" rel="noopener noreferrer">reportagem do jornal Folha de S. Paulo</a>, interlocutores do governo federal confirmam que se avalia a edição de um decreto ou medida provisória requisitando vacinas. Não é claro se seriam requisitadas apenas vacinas adquiridas por estados ou também aquelas importadas por laboratórios privados.
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Em ambos os casos, todavia, a medida seria inconstitucional. Há pelo menos dois fortes limites à requisição administrativa de vacinas pelo governo federal.
O primeiro deles é a inexistência dos requisitos para a requisição. Nos termos do artigo 5º, XXV da Constituição, “no caso de iminente perigo público, a autoridade competente poderá usar de propriedade particular, assegurada ao proprietário indenização ulterior, se houver dano”. Está expresso na norma que o perigo público deve ser iminente.
A norma constitucional é adensada pelo artigo 15, XIII, da Lei 8.080/90, que autoriza o poder público a requisitar leitos hospitalares da rede privada “para atendimento de necessidades coletivas, urgentes e transitórias, decorrentes de situações de perigo iminente, de calamidade pública ou de irrupção de epidemias”. Nesse enunciado, novamente, está implícito o requisito da imprevisibilidade. O perigo iminente, do qual a irrupção de epidemia é exemplo, é aquele implementável no curto prazo em razão de uma ocorrência imponderável.
<blockquote class="jota-article__eye">Logo, não se caracteriza como perigo iminente aquele cuja implementação decorre de um erro de planejamento ou de atraso da própria administração.</blockquote>
É fato notório que, há meses, três grandes instituições promovem uma corrida contra o tempo para desenvolver uma vacina contra o coronavírus. O avanço das pesquisas foi amplamente divulgado, assim como a superação de etapas. Foi possível à administração pública antever, com meses de antecipação, a possibilidade de adquirir vacinas, insumos e promover uma política pública nacional de vacinação. A ausência de uma política pública nacional – ou a elaboração de uma às pressas, a requerimento do Supremo Tribunal Federal (STF) e sem data de início – não autoriza a administração federal a sabotar as políticas elaboradas pelos estados, nem a interferir na ordem econômica para impedir que particulares ofereçam, no mercado, a utilidade que a União deixou de oferecer por erro de planejamento. Isso consistiria verdadeira tentativa de extrair efeitos benéficos da sua própria omissão.
Isso porque – e eis aqui o segundo limite à cruzada que o governo federal, aparentemente, planeja empreender contra Estados e particulares – o sistema federativo brasileiro prevê que cuidar da saúde pública é competência comum a todos os entes federados: União, Estados, Distrito Federal e Municípios. E prevê ainda que o sistema público convive com o sistema privado: ambos se interlaçam para implementar o direito à saúde. É intuitivo: quanto mais agentes atuarem no sentido de prover saúde, mais se implementa o objetivo “saúde”. Daí a descentralização das estratégias de atendimento à saúde ser uma das premissas da Constituição.
Isso significa que não cabe à União centralizar a distribuição e administração de vacinas, impedindo Estados e Municípios de exercerem sua função constitucional. Competências comuns são marcadas pela redundância: um ente federado pode exercer competência plena, sem esvaziar a competência dos demais. Seria clara usurpação de competência dos estados a hipótese em que que, a pretexto de “centralizar” o tratamento contra o câncer, a União proibisse hospitais estaduais de oferecer esse serviço, requisitando aparelhos e medicamentos. A mesma lógica vale para o oferecimento de vacinas contra a COVID-19.
Recentemente, na ACO 3385, o STF proibiu a União de requisitar respiradores adquiridos pelo estado do Maranhão. No entendimento da Corte, o Estado-membro pode comprar respiradores hospitalares diretamente da China, dada sua competência para prestar o serviço público de saúde. É incabível, assim, o confisco ou requisição administrativa por parte do Presidente em qualquer hipótese, exceto em caso de decretação de estado de sítio ou de defesa, sob pena de afronta ao princípio federativo. A ratio decidendi é extensível à requisição de vacinas adquiridas por Estados e particulares.
Além desses dois limites, que torna ilegal prima facie qualquer tentativa de requisição de vacinas pelo governo federal, há ainda uma incerteza, que recomenda que a União se abstenha dessa medida. É incerto se a requisição administrativa pode recair sobre bens públicos – neste caso, sobre vacinas adquiridas por entes federados.
O sistema federativo brasileiro tem sido continuamente testado desde a explosão da pandemia. A alardeada intenção do governo federal de requisitar vacinas é mais um teste. Que, bem analisado, deve ficar somente no plano da intenção.
O sentido e o alcance do modelo constitucional relativo à saúde é permitir a atuação em diversos níveis, não havendo justo título para se pretender que a União coordene de maneira exclusiva as ações. Descentralização implica atuação de diversos atores. É exatamente isso que impede que a ausência de eficiência da atuação federal seja utilizada como justo título para bloquear outras iniciativas, sejam elas federativas privadas. Em havendo vacinas com eficácia comprovada caberá a Estados e à iniciativa privada as dispensarem.
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O episódio 47 do podcast Sem Precedentes analisa o julgamento do Supremo Tribunal Federal que decidiu pela inconstitucionalidade da reeleição dos presidentes do Congresso. Ouça:
https://youtu.be/roD5SwCzhLI
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JOTA

A inconstitucionalidade de eventual confisco de vacinas pelo governo federal

Requisição administrativa de vacinas pela União: duas ilegalidades e uma incerteza

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