
No dia 4 de julho de 2022, Leonardo N. Heck publicou no JOTA o artigo “A PEC Kamikaze é inconstitucional?”. Seu objetivo era analisar a constitucionalidade da PEC 1/2022, que cria o estado de emergência para ampliar o pagamento de benefícios sociais pelo governo federal até o fim deste ano, já aprovada em dois turnos pelo Senado Federal e, na data de conclusão deste texto, em primeiro turno pela Câmara dos Deputados.
O autor destaca que a PEC é polêmica e suscitou debates na esfera pública, visto que o art. 73, §10º, da Lei 9.504/97, veda a distribuição gratuita de bens, valores ou benefícios por parte da administração pública em ano eleitoral, exceto nos casos de calamidade pública, de estado de emergência ou de programas sociais autorizados em lei e já em execução orçamentária no exercício anterior.
Afirma que a alternativa encontrada pelo relator da PEC, senador Fernando Bezerra (MDB-PE), para viabilizar a sua aprovação, foi o reconhecimento da situação de emergência provocada pelo forte aumento no preço dos combustíveis. Tendo colocado o debate nesses termos, o autor prossegue para analisar a compatibilidade da medida em face da Constituição.
Após listar as cláusulas pétreas do art. 60, § 4º, da Constituição, Heck conclui que a PEC 1/2022 não afronta qualquer dos limites materiais ao poder constituinte derivado reformador daquele dispositivo constitucional. Na sequência, com apoio em reconhecido entendimento doutrinário, afirma que a constitucionalidade da PEC 1/2022 poderia ser verificada à luz de certos limites implícitos à atividade do poder constituinte derivado reformador. Contudo, rejeita essa possibilidade.
Na sua perspectiva, a PEC não pretende substituir a Constituição de 1988 por outro texto constitucional, muito menos propõe uma alteração do próprio processo legislativo de emenda constitucional. Além disso, descarta a possibilidade do manejo das categorias conceituais da estrutura básica da Constituição e da identidade constitucional como limites implícitos ao poder constituinte derivado reformador, por considerá-las indeterminadas e antidemocráticas. Ao final, conclui que, apesar do desconforto que causa, a PEC 1/2022 não seria inconstitucional, mas anticonstitucional.
Segundo o autor, essa classificação seria independente do conteúdo concreto de qualquer dispositivo constitucional, pois a PEC 1/2022 buscaria distorcer o processo de formação da vontade popular, sendo, por isso, incompatível com qualquer concepção viável de democracia, ou, nas suas palavras: “Com aquilo que se encontra no cerne de uma ordem constitucional”. Para Heck, a PEC 1/2022 seria incompatível com qualquer regime em que o poder é exercido democraticamente à luz de certos direitos fundamentais: seria um movimento inválido dentro dessa prática de autogoverno por meio do direito, pois contrário às regras que a constituem. Dessa forma, sustenta que a PEC 1/2022 pode e deve ser barrada pelo STF, por meio de um controle procedimental de constitucionalidade, para garantir a lisura do processo eleitoral.
Se entendemos bem a proposta do autor, a resposta ao título do seu artigo seria, ao mesmo tempo, não e sim. Uma contradição em seus próprios termos. A PEC 1/2022 não seria inconstitucional por não violar nenhum dispositivo concreto da Constituição, mas seria anticonstitucional por violar uma certa compreensão de constitucionalismo e de democracia pressuposta e projetada sobre todas as ordens constitucionais ao redor do globo?
Se as coisas assim o são, em que medida a proposta do autor se distingue da crítica por ele mesmo formulada à categoria conceitual da estrutura básica da Constituição e da identidade constitucional, como limites implícitos ao poder constituinte derivado reformador? A tese da anticonstitucionalidade da PEC 1/2022, ela mesma, também não pressupõe a cristalização de um suposto conteúdo das constituições democráticas pelo autor em detrimento do texto da Constituição, já que independente do conteúdo concreto de qualquer das suas normas, e, portanto, fora do alcance das decisões democráticas?
E mais, em que medida uma suposta defesa da Constituição, independente do conteúdo concreto das suas normas, poderia contribuir para o reforço da sua normatividade? Uma postura como essa seria realmente distinta dos métodos utilizados por líderes autoritários para minar o Estado democrático de Direito que o próprio autor reconhece?
Por fim, se a PEC 1/2022 contraria a própria lógica da “constitucionalidade”, identificada como a vivência em um regime no qual o poder é exercido democraticamente à luz de certos direitos fundamentais, como é possível dizer que ela não violaria o conteúdo concreto de qualquer dos dispositivos constitucionais, mas supostos fundamentos universalmente válidos para todas as democracias constitucionais ao redor do globo?
Se ela viola direitos fundamentais, quais direitos fundamentais são esses? Se ela viola direitos fundamentais e a lisura do processo eleitoral, como o controle de constitucionalidade dessa medida exigido do STF pode ser um controle do tipo procedimental, como defendido pelo autor? Esse controle não seria um controle exercido sobre o próprio mérito da proposta?
Com esses apontamentos, sustentamos a inconstitucionalidade da PEC 1/2022. Para tanto, não nos valemos de um apelo a um suposto ideal normativo subjacente ao constitucionalismo democrático e independente do conteúdo concreto das normas constitucionais atualmente em vigor. Valemo-nos de uma defesa da Constituição com a Constituição. Para isso, adotamos dois argumentos: a violação aos direitos políticos e suas derivações e a violação da forma federativa, ambos conectados à razão de existir da PEC 1/2022.
No caso do primeiro argumento, quando a Lei 9.504/97 veda a concessão de benefícios no ano eleitoral (§10º, art. 73), ela está regulamentando a proteção constitucional da legitimidade e da normalidade das eleições contra o abuso do poder político e econômico. Uma proteção constitucional contra a influência desproporcional na formação da vontade política eleitoral. Não se trata, portanto, de tomar a lei como referência para o controle de constitucionalidade, mas, sim, o que ela visa a regulamentar: a proteção constitucional da legitimidade e da normalidade do processo eleitoral.
Mesmo que o Senado tenha acatado o argumento de emergência, é preciso lembrar que o senador Fernando Bezerra, ao apresentar o substitutivo às PECs 1/2022 (distribuição de benefícios) e 16/2022 (redução do ICMS dos combustíveis), afirmou que o estado de emergência foi criado justamente para driblar a vedação imposta pelo art. 73, § 10º, da Lei 9.504/97. Tanto é assim que, caso aprovada, ela integrará o ADCT, como norma de eficácia exaurível, até dezembro do corrente ano. Uma engenharia legislativa para fraudar tanto a lei quanto a Constituição.
Quanto ao segundo argumento, entendemos que há o desvirtuamento constitucional da forma federativa de Estado. A distribuição de competências no federalismo existe para garantir, em primeiro lugar, a autonomia dos entes federativos, que necessitam, entre outras coisas, da arrecadação para sua autogestão. Essa PEC aumentará os gastos e diminuirá a arrecadação dos municípios. Tanto é assim que a Confederação Nacional dos Municípios, representando mais de mil municípios, foi ao Congresso no último dia 5 para questionar uma série de medidas que aliadas a esta PEC restringirá cerca de R$ 73 bilhões desses entes, fragilizando o exercício de suas autonomias e, consequentemente, o equilíbrio da forma federativa.
Com base nos questionamentos lançados e nos fundamentos apresentados, entendemos que a própria Constituição brasileira oferece fundamentos normativos para que a PEC 1/2022 seja declarada inconstitucional.
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Os autores agradecem a Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira e Robson Gonçalves Valadares Filho pela interlocução.