Ronaldo Pinheiro de Queiroz

A reforma da <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/lei-de-improbidade-administrativa">Lei de Improbidade Administrativa</a>, operada pela <a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2021/lei/L14230.htm">Lei 14.230/21</a>, alterou estruturalmente o sistema de proteção da probidade administrativa, atingindo seus quatro eixos fundamentais: principiológico; direito material; direito processual e direito consensual. Temos, na verdade, uma nova lei, ainda que carregando o mesmo número (<a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8429.htm">Lei 8.429/92</a>).
Com tantas mudanças, muitas delas radicais, esperava-se do legislador, no mínimo, uma vacatio legis estendida e algumas regras de transição para permitir que as partes e o Poder Judiciário se preparassem para aplicar esse novo instrumento normativo.
Descuidadamente, a lei passou a viger na data de sua publicação (25 de outubro de 2021), instalando-se o caos para os milhares de investigações e processos judiciais em curso.
Felizmente, o <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/stf">Supremo Tribunal Federal</a> reconheceu a repercussão geral (no ARE 843.989) para enfrentar o direito intertemporal de dois dos temas mais polêmicos e preocupantes da reforma, relacionados ao elemento subjetivo (dolo e culpa) e às novas regras de prescrição (geral e intercorrente), visando trazer segurança jurídica para essas questões, na medida em que a sua decisão terá caráter vinculante.
O julgamento foi iniciado na última quarta-feira (3) e já conta com dois votos, do ministro <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/alexandre-de-moraes">Alexandre de Moraes</a> (relator) e do ministro <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/andre-mendonca">André Mendonça</a>, cujas decisões têm mais convergência que divergência.
Os votos estão percorrendo a seguinte trilha lógica: natureza jurídica do ato de improbidade; aplicação dos princípios constitucionais do Direito Penal; aplicação retroativa, ou não, das novas regras relativas ao elemento subjetivo (dolo e culpa) e à prescrição.
Vou analisar os votos a partir desses pontos para facilitar a compreensão do julgamento.
<h3>1. Natureza do ato de improbidade administrativa</h3>
O ministro Alexandre de Moraes entendeu que o ato de improbidade administrativa tem natureza civil, na esteira da jurisprudência consolidada do Supremo.
O ministro André Mendonça, no seu voto oral, também reconheceu a natureza civil, dizendo que a responsabilização judicial só comporta natureza penal ou civil e que a natureza administrativa ocorre perante a autoridade administrativa. Porém, no voto escrito (itens 37 e 39), o ministro reconhece a natureza de Direito Administrativo Sancionador.
Entendo que a natureza jurídica do ato de improbidade administrativa é de Direito Administrativo Sancionador. Estamos falando aqui do direito material e, nesse ponto, a improbidade pertence ao ramo do Direito Administrativo. O processo (instrumento) não pode influenciar a natureza do direito material (substância).
De todo modo, não sendo ramo do Direito Penal, permanece o mesmo dilema quanto à incidência, ou não, dos princípios constitucionais.
<h3>2. Aplicação dos princípios constitucionais do Direito Penal</h3>
Ambos os ministros reconheceram que a incidência dos princípios constitucionais do Direito Penal não é automática na esfera da improbidade administrativa, devendo ser analisada essa possibilidade, bem como a sua extensão, no caso concreto.
A divergência dos votos começa justamente na análise da incidência do art. 5º, LX, da Constituição da República (“a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu”).
<h3>3. Elemento subjetivo (dolo ou culpa)</h3>
O ministro Alexandre de Moraes reconhece que nada mudou em relação ao dolo, permanecendo o dolo genérico como regra. Eventualmente, havendo uma finalidade especial dentro do tipo, pode-se falar em dolo específico. Seria uma exceção. Assim, não há que se falar em retroatividade de um ponto que não houve modificação.
O legislador foi redundante falando do dolo em diversas passagens apenas para expressar a impossibilidade de responsabilidade objetiva.
A única novidade com relação ao elemento subjetivo seria a extinção da modalidade culposa, sendo isso uma opção política do legislador, sem mácula de inconstitucionalidade.
Embora não exista mais improbidade culposa, o juiz pode analisar no caso concreto se houve má-fé ou dolo eventual.
Entendeu o ministro Alexandre de Moraes que não se aplica o princípio da retroatividade da norma mais benéfica, por ausência de previsão legal e diante do arcabouço constitucional protetivo da probidade.
Salienta, ainda, que não será permitida a aplicação da redação legal antiga para fatos praticados durante a sua vigência e cuja responsabilização judicial ainda não foi finalizada (não ultra-atividade). Assim, um processo de improbidade culposa transitado em julgado deve ser respeitado. Se ainda não houve responsabilização, deve ser reconhecida a atipicidade com base na lei nova.
O ministro André Mendonça também entende como novidade na reforma apenas a extinção da modalidade culposa, permanecendo o dolo para os arts. 9º, 10 e 11 da LIA.
Porém, reconhece expressamente a aplicabilidade do art. 5º, LX, da CF/88 quanto ao tema do elemento subjetivo, entendendo que os conceitos de culpa e dolo segundo o Direito Penal não apresenta traço distintivo suficiente para afastar a incidência do princípio da retroatividade da lei mais benéfica, em homenagem à isonomia.
Enquanto o ministro Alexandre de Moraes, falando da não ultra-atividade, preserva a coisa julgada das inovações da <a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2021/lei/L14230.htm">Lei 14.230/21</a>, o ministro André Mendonça, com base na retroatividade da lei mais benéfica, entende que os processos já transitados em julgado poderão ser alvo de ação rescisória, nos termos do art. 525, §§ 12 a 15 do CPC.
Entendo que, na prática, embora com fundamentos diferentes, os votos estão mais próximos do que se imagina, pois ficou convencionado que a atipicidade da improbidade culposa deve ser reconhecida nos processos em curso.
A única divergência está relacionada à coisa julgada.
Neste ponto, o ministro André Mendonça aponta um vício rescisório (título declarado inconstitucional)  e com prazo certo para correção (dois anos), sob pena de torna-se coisa julgada soberana.
Caso o vício fosse considerado transrescisório, não haveria meio ou prazo para a desconsideração da coisa julgada, instalando-se uma crise de segurança jurídica sem fim.
De nossa parte, estamos de pleno acordo que o dolo genérico é a regra na improbidade administrativa, mesmo após a Lei 14.230/21, <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/dolo-de-beneficiamento-na-improbidade-administrativa-23052022">conforme já escrevemos aqui</a> neste prestigiado portal.
<h3>4. Prescrição (geral e intercorrente)</h3>
O tema da prescrição foi o de maior convergência entre os ministros, apontando-se que a prescrição pune a inércia do Estado, de modo que não deve ser reconhecida quando o autor agiu tempestivamente, segundo as regras vigentes.
Sendo assim, não admitiram a aplicação retroativa das novas regras de prescrição, ainda que mais benéficas, fundando-se no ato jurídico perfeito, segurança jurídica, acesso à justiça e proteção da confiança.
O ministro André Mendonça fez um adendo importante para analisar o impacto das novas prescrições no caso concreto.
Considerando que a prescrição intercorrente é um instituto inteiramente novo, o seu prazo se iniciou com a vigência da Lei 14.230/21, valendo para todos os processos em curso.
Com relação à prescrição geral de oito anos, há necessidade de um regime de transição para conciliar o prazo antigo com o prazo novo, devendo ser computado o decurso do tempo já transcorrido durante a vigência da norma anterior.  Assim, se já havia transcorrido quatro anos com base na lei anterior, contam-se mais quatro anos a partir da vigência da nova lei. Porém, se antes da reforma já teria decorrido o prazo prescricional inteiro, não há como complementar com o prazo da nova lei, pois o fato já prescreveu.
O ministro Alexandre de Moraes ressaltou que o novo prazo prescricional não interfere na questão da imprescritibilidade do ressarcimento de dano ao erário decorrente de improbidade dolosa, cujo fundamento é constitucional (CF, art. 37, § 5º).
Sem dúvida nenhuma, a tese da retroatividade da prescrição é o ponto mais avassalador da reforma da Lei de Improbidade Administrativa, pois tem o potencial de aniquilar milhares de processos em curso, sendo certo que, até agora, os votos caminham para prestigiar a segurança jurídica e a boa-fé.
O julgamento terá continuidade na próxima sessão plenária (10 de agosto), colhendo-se os votos dos demais ministros.
De nossa parte, torcemos para que o Supremo Tribunal Federal traga segurança jurídica para esses dois pontos fundamentais da reforma, conferindo interpretação que prestigie a proteção eficiente da probidade administrativa, sem esvaziar um dos instrumentos mais importantes de combate à corrupção no Brasil.

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JOTA

Diálogo dos votos dos ministros Alexandre de Moraes e André Mendonça

Repercussão geral da improbidade administrativa

Julgamento no STF sobre a nova Lei da Improbidade Administrativa conta com dois votos, dos ministros Alexandre de Moraes e André Mendonça