Paulo Caliendo

O Brasil adotou, com muita resistência, uma norma para a regularização ativos no exterior, com promulgação da Lei n. 13.254/16. E como soe acontecer, a recepção foi falha, incompleta e incompreendida. Melhor teria sido adotar uma norma originalmente nacional, mas coerente. Novamente optamos por importar modelos sem atentar para a especificidade nacional.
Dentre os diversos pontos controversos listamos um para análise: a determinação da base de cálculo do tributo devido. Muitos outros mereceriam igual atenção, infelizmente não seria possível realizar um estudo completo da norma nos estreitos limites deste artigo.
O Sistema Tributário Nacional estabelece um esquema rígido de repartição de competências com base em conceitos bem definidos. A renda é fato gerador do Imposto sobre a Renda, os serviços implicam na incidência do Imposto sobre Serviços, as doações são tributadas pelo Imposto sobre a Transmissão por Causa Mortis e Doações e assim por diante. E no caso do RERCT? Bem, nesse caso haverá a incidência da alíquota de 15% do imposto sobre a renda omitida, bem como sobre os recursos decorrentes de heranças e doações ocultadas no exterior. Podemos perguntar: tal situação é consistente com o texto constitucional? Cremos que não, mas  como não poderemos responder satisfatoriamente esta questão aqui partiremos do pressuposto de uma aceitação argumentativa provisória. Irresignados, porém conscientes do problema.
Nossa preocupação central orienta-se ao fenômeno específico da tributação da renda omitida conforme o Regime Especial de Repatriação de Recursos no Exterior(RERCT).
A lei, em sua majestática indecisão, nos orienta de modo dúbio. Enquanto o artigo 3o afirma que o regime se aplica a todos os recursos detidos até 31.12.14, o art. 4o afirma que o requerente deve declarar a descrição pormenorizada dos recursos, bens e direitos de qualquer natureza de que seja titular em 31.12.14. Afinal a tributação abrange os recursos detidos em ou até 31.12.14? Trata-se de uma diferença brutal. O texto legal não resolve esta aparente antinomia, gerando nova confusão.
Ao fim, esta dualidade de desentendimentos foi carinhosamente apelidada de polêmica entre o modo de declaração da renda omitida pela “foto” e ou “filme”. Aqui a arte e o Direito Tributário inesperadamente se encontram. Desse casamento híbrido, bons filhos não poderiam surgir. O Direito Tributário em seu modo casmurro de ser exige conceitos claros, repartições rígidas e aplicações fiéis à Lei. A arte, a seu turno, flana em conceitos flexíveis, em esquemas criativos e leves. Apesar de críticos a esses olhares modernos, ou pós-modernos como diriam outros, daremos um voto de confiança aos termos nos quais o debate se firmou. Em uma releitura diríamos que a “tese da foto” compreende que o aspecto quantitativo do RERCT dá-se pelo montante mantido em saldo em 31.12.14, enquanto que os defensores da “tese do filme” defendem um critério dinâmico de composição da base de cálculo.
A “tese da foto” é de uma simplicidade cartesiana: compõe a base de cálculo o saldo dos recursos em data determinada, tão somente. As mutações patrimoniais anteriores não interessam, tampouco os acréscimos ou decréscimos. É uma tese estática, ou como diriam os doutrinadores clássicos: o aspecto temporal realiza-se com um fato gerador instantâneo. As mutações pretéritas pouco interessam.
A “tese do filme” é mais complexa, bem mais complexa. Primeiro ela determina o termo final do filme: até 31.12.14; mas não diz quando o filme iniciou. É como se entrássemos no cinema já com as luzes apagadas e o fiscal nos avise da hora de encerramento da sessão, mas não dê nenhuma ideia momento de início. Dependendo do filme pode ser até algo bom, no caso de uma norma que trata da liberdade e da propriedade o resultado pode ser, com o perdão do exagero ilustrativo, um filme de terror.
Diversos questionamentos podem surgir dessa simples mudança de preposição (em/até), tais como:
a) Qual a base de cálculo do RERCT quando não mais existir saldo ou propriedade em 31.12.2014?
b) Como calcular o montante devido no caso de transferências sucessivas de patrimônio?
c) Como determinar o montante devido no caso de depreciação ou valorização do bem ou direito?
d) Qual o valor devido se houver prescrição do montante total ou parcial sujeito à adesão ao RERCT?
e) Qual o momento a ser utilizado para a determinação da base de cálculo do RERCT: momento de aquisição, momento de maior valorização, em cada exercício fiscal ou no saldo da data de 31.12.2014?
f) Quais as comprovações necessárias para a conformidade perante o RERCT?
Note-se que são perguntas muito difíceis e que exigem um esforço interpretativo enorme, tendo em vista que a legislação não resolveu os presentes dilemas.  Em nosso entendimento somente a lei poderia efetivamente resolver estes, dado que se referem a elementos essenciais do cumprimento da obrigação tributária. Novamente por mero amor ao debate, e desamor ao sistema, deixemos o princípio da legalidade de lado, mais uma vez.
A RFB[1] e a PGFN[2] se posicionaram claramente pelo entendimento de que tributação abrange os recursos detidos até 31.12.14, incluindo-se na base de cálculo os valores eventualmente consumidos nesse período. Estar-se-ia acatando a denominada “teoria do filme” e se excluindo possibilidade da declaração tão somente do saldo existente em 31.12.2014. O principal argumento contrário à tese da foto estaria na alegada violação ao princípio da igualdade, dado que haveria um possível benefício ao contribuinte que houvesse consumido toda a renda omitida, perante outro que tivesse poupado ou reinvestido o valor. Em face desse posicionamento oficial, nenhum consultor prudente cometeria a imprudência de indicar o preenchimento da declaração (DERCAT) pela “tese da foto”, por mais amor que tenha pela lógica jurídica.
Esse entendimento gera tamanha insegurança que as mais diversas teses proliferaram sobre cada uma das questões acima. O correto seria que o governo editasse nova Lei, esclarecendo os pontos obscuros, superando as inconstitucionalidades e salvando o espírito dessa norma de regularização de ativos, que foi utilizada em diversos países do mundo.
Enquanto isso não ocorre trabalha-se com diversas formas de compreender corretamente a “tese do filme”: pelos princípios da tributação da renda, do patrimônio, pela contabilidade e pelo Direito Comparado. (In)felizmente foram excluídas a quiromancia e a teoria do cinema.
A utilização dos critérios de determinação da base de cálculo pela tributação da renda é exigida nos termos do art. 6o. do Lei do RECRT: (“Art. 6o. Para fins do disposto nesta Lei, o montante dos ativos objeto de regularização será considerado acréscimo patrimonial adquirido em 31 de dezembro de 2014...”)
O conceito legal de renda, previsto no CTN, tem por critério quantitativo a incidência sobre os acréscimos patrimoniais do contribuinte, ou seja, dos resultados líquidos positivos. O art. 6o. permite o entendimento da possibilidade da tributação sobre a renda mesmo que inexista saldo ou título de propriedade no dia 31 de dezembro de 2014, ou seja, sobre a “renda consumida”. Tal entendimento não foge inteiramente à natureza da tributação da renda, afinal, haverá a tributação sobre determinado período mesmo que tenha ocorrido o consumo desta. A base de cálculo do imposto sobre a renda envolve os acréscimos patrimoniais, com as adições, deduções e exclusões permitidas em lei. Não há previsão da redução de base de cálculo por meio do consumo. Contudo, esse entendimento no caso em tela, sem nenhuma mediação, pode gerar resultados absurdos. Imagine-se a aplicação desse conceito às rendas omitidas dos últimos 16 anos[3], em muitos casos poderia atingir 30% do patrimônio algum dia detido.
Igualmente draconiano seria o caso da tributação dos bens omitidos pelo “pico de valorização” ou “média dos últimos anos”. Nenhuma das regras da legislação do imposto sobre renda estabelece este critério, nem tampouco a Lei n. 13.254/16, que exige a avaliação pelo valor de mercado em 31.12.16. Tal orientação além de não prevista é muitas vezes impraticável, pois exige a demonstração de momento de maior valorização do ativo.
Poderíamos utilizar a metodologia contábil e verificar o valor presumido do valor existente até a sua saída da esfera patrimonial do declarante, aplicar a taxa Selic, se for o caso, e proceder ao pagamento o tributo devido. Mas, mesmo nesse caso não se pode considerar como renda a totalidade dos recursos omitidos, por ofender ao conceito constitucional de renda. O STJ já se posicionou no sentido de que o fisco não pode arbitrar como lucro líquido o total das receitas omitidas quando o contribuinte tem escrita organizada e presumiu em só 50% do mesmo valor na hipótese de inexistirem registros contábeis ou estes serem desclassificados por se apresentarem inidôneos. Nesse caso, entendeu ser razoável que o lucro corresponda a 50% da receita omitida, e sobre esse montante é que incidirá o imposto e seus acessórios, (REsp 639057/MG, 1ª Turma, Rel. Ministro José Delgado, decisão unânime, publicada no DJ de 13.09.2004, p. 186). Antes que alguém afirme, esclarecemos que não se estamos a justificar o critério dos 50%, mas afastar a incidência sobre os 100% do patrimônio.
Não há como se admitir pacificamente que os rendimentos dos ativos ocultos sejam reconhecidos e integrados à base de cálculo da repatriação e o mesmo não ocorra com o necessário arbitramento da renda líquida. Tributar a totalidade da renda omitida e seus acréscimos posteriores de valor implica em tributação do patrimônio e não da renda. Estaríamos criando um novo tributo, não previsto em lei e que não obedeceu os requisitos do art. 154, I da CF.
A interpretação correta da Lei n. 13.254/16 exige o respeito ao texto legal, especialmente quando o art. 6o determina que o conceito de “acréscimo patrimonial adquirido em 31 de dezembro de 2014” deve ser compreendido nos estritos termos do regime especial. Quando o dispositivo afirma “para fins do disposto nesta Lei” está a considerar o conceito de renda em sentido diverso do RIR/99, mas como uma ficção jurídica de “renda”, para os fins da anistia penal ínsita ao regime benéfico.
A interpretação pelos fins não pode desvirtuar o real objetivo da norma, que é o de regularizar os ativos no exterior da forma mais razoável e simplificada possível. Desse modo, não há como aceitar a proposta dada pela PGFN que incorreria em uma solução obscurum per obscurius[4], ou seja, solucionar a obscuridade legal com uma interpretação ainda mais obscura. Esta deve ser útil, finalística, sistemática e legal. Qualquer outra forma é arbitrária e casuística. Talvez fosse aconselhável a edição de uma nova lei tornando claro o estabelecimento da base de cálculo no RERCT, especialmente afastando os modelos híbridos de tributação da renda considerando o conjunto do patrimônio oculto. 
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[1] Para responder a alguns destes questionamentos RFB publicizou o seu entendimento em seu documento denominado de “Perguntas e Respostas”. Lê-se na Pergunta n. 26 a seguinte formulação: “qual valor deverá constar na declaração de regularização, em relação aos bens de que não tenha mais saldo ou propriedade, posse ou titularidade em 31 de dezembro de 2014? O valor presumido em 31 de dezembro de 2014, apontado por documento idôneo que retrate o bem ou a operação a ele referente, tais como os valores e comprovantes apontados na questão 25”. (Art. 4º, §8º, VI da Lei nº 13.254, de 13 de janeiro de 2016 e Art. 7º, § 3º, V da IN RFB 1.627, de 11 de março de 2016) (Nota 1: Vide Nota de nº 1 da Pergunta de nº 38 e Pergunta de nº 46). (Nota incluída em 15/06/2016).
[2] A PGFN emitiu o Parecer PGFN/CAT 1.035, de 1o de julho de 2016, que trata da interpretação da Lei n. 13.254/2016. Sobre o assunto assentou o Parecer que: “Dos comandos legais vistos até o momento, parece-nos claro que a Lei 13.254, de 2016, trouxe a previsão de que a base de cálculo da tributação sobre a renda deverá abranger também os ativos total ou parcialmente consumidos anteriormente a essa data. Nessas situações, o declarante deverá descrever as condutas praticadas que se enquadrem nos crimes previstos no  § 1o do art. 5o da Lei. Reitera-se que disposição literal pode ser conferida no caput e no inciso V  do §1o do art. 4. Do Estatuto Legal”.
[3] Prazo prescricional dos crimes previstos na lei sobre lavagem de dinheiro.
[4] “obscuro pelo mais obscuro”.

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JOTA

Melhor teria sido adotar uma norma originalmente nacional, mas coerente

Repatriação de Recursos do Exterior e polêmica da base de cálculo

Melhor teria sido adotar uma norma originalmente nacional, mas coerente