Alex Ribeiro Bernardo

Em uma reportagem publicada no início do mês passado, foi noticiado mais um episódio no qual autoridades criminais apontam no sentido de que Medida Provisória teria sido “comprada” a fim de viabilizar a aprovação de normas de cunho tributário destinadas a favorecer contribuintes específicos detentores de elevada capacidade contributiva, o que lhes teria proporcionado economia bilionária no recolhimento dos valores devidos.
No caso, a matéria em questão assevera que investigações realizadas no âmbito da Operação Zelotes evidenciam que a empresa Amil estaria envolvida no pagamento de vultosas propinas a intermediários e parlamentares diversos, cujo esquema teria sido engendrado com o propósito de viabilizar a aprovação de emendas parlamentares que propiciaram diminuição substancial dos tributos devidos pelo setor de planos de saúde.
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Conforme informações prestadas pelo antigo Ministério da Fazenda, somente a Amil teria sido beneficiada com a redução de R$ 4,9 bilhões no pagamento de tributo destinado ao financiamento da Seguridade Social (Cofins).<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>
Veja-se, no entanto, que o fato em questão – suspeita de relações espúrias firmadas entre agentes públicos e privados para obtenção de benesses tributárias – não é inédito no cenário nacional, já tendo sido deflagradas inúmeras outras investigações de natureza similar nas esferas federal e estadual, com foco sobretudo na identificação de benefícios de ordem tributária indevidamente instituídos.
A título ilustrativo, cabe aqui registrar que apurações realizadas no âmbito da mesma Operação Zelotes apontam no sentido de que atos ilícitos foram praticados durante a edição e aprovação das Medidas Provisórias de nº 471/2009 e 627/2013, as quais prorrogaram o crédito presumido do IPI em favor de empresas ligadas ao setor automobilístico.<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>
De acordo com informações extraídas dos Demonstrativos Governamentais Indiretos de Natureza Tributária, projeta-se que tal benefício representou perda estimada de valor superior a R$ 4 bilhões de reais aos cofres públicos.
Note-se que as hipóteses antes arroladas estão inseridas em um contexto de ilegalidade, visto que relacionadas com a prática de atos de corrupção e tráfico de influência.
No entanto, não se pode ignorar que a obtenção pontual e desarrazoada de benefícios tributários pode estar igualmente atrelada à influência de estratégias lícitas e desproporcionais de defesa de interesses, consubstanciadas no financiamento privado de campanhas eleitorais e na prática do lobbying por contribuintes detentores de elevada capacidade econômica, faceta que ainda não foi devidamente explorada pela doutrina nacional.
Embora diversos autores já tenham destacado a importância de se conferir maior controle e transparência à concessão de tais benefícios, de modo a inviabilizar eventuais favorecimentos indevidos a grupos seletos e bem relacionados, o tema não foi objeto do aprofundamento desejado.
Na verdade, os poucos trabalhos que foram produzidos com tal objetivo podem ser encontrados na literatura da ciência política. Mancuso, Maetê Pedroso Gonçalves e Fabrizio Mencarini, por exemplo, abordaram a concessão de benefícios a setores empresariais específicos, tendo concluído no sentido de que a política de concessão de benefícios tributários concernentes ao PIS, CSLL e Cofins, praticada no período entre a promulgação da Constituição Federal e 01/01/2007:
[...] pode ser comparada a uma colcha de retalhos, pois consistiu em um agregado de decisões ad hoc, voltadas para fins diversos e marcadas por intensa pressão política pontual dos beneficiários, em vez de consistir em uma política estruturada de apoio aos empreendedores.<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>
Carazza, por sua vez, conseguiu demonstrar mediante o cruzamento de dados de financiamento eleitoral e tramitação legislativa que mais de 54% das Medidas Provisórias setoriais analisadas em seu estudo foram relatadas por parlamentares que receberam doações de alguma empresa que seria afetada pela nova norma.
Diante deste quadro, concluiu no sentido de que se mostra bastante improvável que tais relatores tenham se valido da isenção necessária para colocar o interesse público acima dos empresariais.<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>
Do mesmo modo, referido autor constatou que mais da metade das emendas apresentadas durante o processo de aprovação das MPs editadas entre setembro de 2001 e dezembro de 2014 foram propostas por parlamentares que receberam doações eleitorais das empresas que seriam beneficiadas por tais medidas, revelando igualmente que a atuação parlamentar, na maioria dos casos, não se mostrou desinteressada, mas sim movida pela defesa dos interesses dos financiadores de campanha, sob a perspectiva de uma lógica clientelista.
<blockquote class="jota-article__eye">Dentre esses inúmeros atos normativos, muitos deles tratavam, justamente, da concessão de benefícios tributários.</blockquote>
Entretanto, como se percebe, tais pesquisas tiveram uma abordagem mais panorâmica, não tendo sido esmiuçadas hipóteses específicas e pontuais, nem analisados eventuais descumprimentos das balizas normativas que norteiam a concessão de benefícios tributários.
Nesse contexto, mostra-se ainda de extrema relevância salientar que o sistema tributário talvez seja um dos ramos do ordenamento jurídico mais suscetíveis à prática do rent seeking<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a> por parte de interesses estreitos e privilegiados, em detrimento dos segmentos subrepresentados, o que se justifica basicamente por duas razões.
Primeiro porque o sistema em questão disciplina a aplicação de princípios e regras que impactam diretamente o status patrimonial e de renda dos contribuintes, de modo que qualquer tratamento benéfico e diferenciado representa não só um meio de perpetuação e/ou aumento da concentração de riqueza, como também constitui importante ferramenta no ambiente de competição empresarial, viabilizando maior expansão dos negócios privados.
Segundo, quando se trata da discussão e aprovação de normas de cunho tributário, existem certas condições que favorecem a atuação desses grupos privilegiados, pois i) os temas discutidos nesta seara geralmente não possuem tanta visibilidade; ii) a alta complexidade da matéria envolvida, mais técnica e especializada que política, acaba restringindo o debate a um círculo muito restrito de burocratas, especialistas e interesses especiais muito bem informados; iii) e, no caso específico da política de concessão de benefícios tributários, por ser essencialmente distributiva, com benesses concentradas e custos difusos, geralmente se estimula a movimentação dos grupos de interesse favorecidos e nem sempre há mobilização fiscalizadora do restante da sociedade, que acaba pagando a conta desta política viciada.
Sendo assim, considerando a importância do tema e a necessidade de se estabelecer maior diálogo entre a ciência do direito e demais ciências sociais – inclusive política –, é necessário que sejam investigados não apenas os aspectos jurídicos correlatos à concessão desarrazoada dos benefícios de ordem tributária, devendo-se estimular, de igual modo, a produção de estudos científicos destinados a perquirir de que forma a influência desproporcional do poder econômico pode estar refletindo negativamente neste processo, privilegiando indevidamente poucos agentes detentores de alta capacidade contributiva, em prejuízo dos demais segmentos subrepresentados da sociedade.
A título de conclusão e no intuito de reforçar a relevância da matéria, vale lembrar que a prática em questão impacta diretamente na concepção do sistema tributário, que tem sido moldado sob uma perspectiva altamente complexa e regressiva, além de contribuir para o aumento da própria desigualdade de recursos econômicos, a qual tem se revelado, por sua vez, como o principal fator de desequilíbrio na distribuição dos recursos políticos, agrura que tem maculado a noção de igualdade política consagrada formalmente nos artigos 5º e 14 da Constituição Federal de 1988.
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O episódio 48 do podcast Sem Precedentes faz uma análise sobre a atuação do Supremo Tribunal Federal (STF) em 2020 e mostra o que esperar em 2021. Ouça:
https://youtu.be/-hMj5lwWXEE
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Disponível em: &lt;https://oglobo.globo.com/brasil/pf-investiga-possivel-compra-de-medidas-provisorias-pela-amil-para-reducao-bilionaria-de-dividas-tributarias-24790632&gt;. Acesso em: 14 de dezembro de 2020.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> Disponível em: &lt;<a href="http://www.mpf.mp.br/df/sala-de-imprensa/docs/denuncia-zelotes-mmp">http://www.mpf.mp.br/df/sala-de-imprensa/docs/denuncia-zelotes-mmp</a> e <a href="http://www.mpf.mp.br/df/sala-de-imprensa/docs/denuncia-zelotes">http://www.mpf.mp.br/df/sala-de-imprensa/docs/denuncia-zelotes</a>&gt;. Acesso em: 05 de março de 2020.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> MANCUSO, Wagner Pralon; GONÇALVES, Maetê Pedroso; MENCARINI, Fabrízio. Colcha de Retalhos: a política de concessão de benefícios tributários ao empresariado no Brasil (1988-2006). In: MANCUSO, Wagner Pralon; LEOPOLDI, Maria Anthonieta Parahyba; IGLECIAS Wagner (org.). Estado, empresariado e desenvolvimento no Brasil: novas teorias, novas trajetórias. São Paulo: Editora de Cultura, 2010, p. 214.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> CARAZZA, Bruno. Dinheiro, eleições e poder: As engrenagens do sistema político brasileiro. São Paulo: Companhia das Letras, 2018, p. 162.
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> Trata-se de expressão cunhada inicialmente pela economista norte-americana Anne Krueger e que retrata basicamente as hipóteses nas quais indivíduos ou grupos de interesse se utilizam de recursos variados para obter privilégios governamentais mediante lobbying junto a parlamentares e membros do Poder Executivo, prejudicando o livre mercado, consumidores e demais contribuintes, que acabam arcando com os custos dessa política viciada. Tullock, por sua vez, definiu rent seeking como sendo “o uso de recursos por um ator para obter privilégios especiais por meio do processo político. O ganho obtido pelo autor é menor do que o prejuízo resultante para a sociedade”. Neste sentido, Cf. TULLOCK, Gordon. Rent Seeking. London: Eduard Elgar, 1993.

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JOTA

Uma relação perniciosa que ainda carece de maior investigação

Rent seeking e produção legislativa em matéria tributária

Uma relação perniciosa que ainda carece de maior investigação