Thiago Magalhães Pires*

As eleições têm suscitado um grande debate sobre a interferência da religião na política. Afirma-se que certas opiniões são sustentadas por esse ou aquele candidato apenas por sua convicção religiosa ou (o que se parece considerar pior) porque desagradariam certos grupos de eleitores. No centro desses debates, situam-se duas noções centrais do constitucionalismo contemporâneo – a liberdade religiosa e a laicidade do Estado – e sua convergência na situação específica dos candidatos a mandatos eletivos.
A liberdade religiosa alcança três planos complementares [1]. O primeiro é o da liberdade de crença – i.e., a faculdade de tomar uma decisão autônoma em matéria de religião, seja para adotar certa doutrina, seja para acolher uma visão agnóstica ou ateia. Cabe a cada um definir o objeto da sua crença, sendo irrelevante que ela pareça estranha, ilógica ou repugnante aos olhos de terceiros. O segundo plano é o da liberdade de culto, que – apesar do nome – não se limita aos rituais e cerimônias, mas corresponde genericamente ao direito de viver segundo um credo (e.g., adotando cuidados alimentares, vestuário específico, preceitos comportamentais etc.), e de expressá-lo e manifestá-lo [2], inclusive pela prática do proselitismo [3]. Por fim, há a liberdade de organização religiosa que se traduz no direito de estruturar e conduzir a comunidade de fiéis e corresponde, assim, à dimensão coletiva da liberdade religiosa [4]. Esse conjunto de faculdades se associa, ainda, ao direito que cada um tem de não ser prejudicado ou beneficiado apenas por sua religião (CRFB, art. 5º, VIII). Em princípio, portanto, todas as pessoas devem ter o mesmo conjunto de direitos e deveres, qualquer que seja a sua orientação em matéria de religião.
A laicidade, por sua vez, diz respeito à postura do Estado em relação aos discursos religiosos. Laico é o Estado que não se pronuncia nessa matéria, seja para questionar, seja para afirmar a validade de uma crença específica ou da religiosidade em geral [5]. Nas palavras do Ministro Marco Aurélio, do Supremo Tribunal Federal, “a Constituição, ao consagrar a laicidade, impede que o Estado intervenha em assuntos religiosos, seja como árbitro, seja como censor, seja como defensor”, além de obstar “que dogmas da fé determinem o conteúdo de atos estatais” [6].
Não se trata de minimizar ou rechaçar a importância da religião; adotar o ateísmo é tomar posição no debate – coisa que o Estado laico não pode fazer [7]. Tampouco se cuida de ser tolerante, já que a tolerância é uma concessão em favor de quem se considera estar errado, e esse é um juízo que o Estado laico se abstém de promover. O que a laicidade reitera é a ideia elementar de que o Estado serve e deve contas a todos os seus cidadãos, a quem deve tratar com igual respeito e consideração [8]. Uma decisão do Poder Público em matéria de religião enviaria uma mensagem incompatível com a igual dignidade das pessoas, na medida em que dividiria o povo entre os “certos” e os “errados” [9]. A definição de uma verdade oficial marginalizaria os discursos divergentes, produzindo, assim, um efeito simbólico bastante negativo.
Embora as ideias de liberdade religiosa e laicidade convivam em certa harmonia, elas põem os agentes públicos em uma situação delicada. Por um lado, eles são cidadãos como quaisquer outros e, por isso, têm o direito de adotar um credo e se orientar por ele. Por outro lado, quem exerce função pública não fala por si, nem se dirige somente a comunidades parciais, como as denominações religiosas; representa e deve prestar contas a todos os brasileiros. Quando está em causa o desempenho de um mandato eletivo, prevalece esse segundo ponto. Assim é que, segundo John Rawls, as autoridades, os candidatos a cargos públicos e, especialmente, os tribunais supremos, se submetem ao dever jurídico de invocar apenas argumentos de razão pública em favor de suas decisões [10]. Na mesma linha, Ronald Dworkin afirma não caber às autoridades invocar o poder coletivo para moldar a cultura religiosa coletiva segundo seus gostos [11].
Exige-se, portanto, alguma separação entre a vida pública e a vida privada de um agente do Estado, a fim de que sua convicção pessoal não seja veiculada como expressão da vontade coletiva. Assim, o Presidente da República pode fazer uma oração privada em sua residência, mas certamente não se admitiria que impusesse a mesma conduta a todos os alunos da rede pública de ensino – o que ele faz no exercício da sua liberdade religiosa ofende a laicidade do Estado (e a liberdade religiosa de terceiros) quando se torna uma obrigação geral [12].
No entanto, nem sempre é possível promover uma divisão estanque entre esses dois domínios. Isso ocorre principalmente no plano da moral, que apresenta problemas igualmente sensíveis para as religiões e para o pensamento secular. Tome-se, por exemplo, a proibição do aborto, defendida e criticada com argumentos religiosos e não-religiosos. A partir do que se expôs acima, não se poderia admitir que um modelo de conduta baseado exclusivamente em uma religião pudesse ser imposto pelo Estado. Havendo, porém, outros fundamentos para isso, a situação muda de figura: pode-se questionar, entre os interesses/direitos envolvidos (da mãe e do embrião/feto [13], no caso do aborto), qual deve preponderar, mas a ninguém ocorreria excluir a defesa de qualquer deles por parte do Estado. Tutelar a autonomia da mulher e proteger a vida humana são dois fins legítimos à luz do princípio da laicidade. O que se pode discutir – e esse é outro debate – é se a convicção religiosa não serviria, na prática, como um fundamento “oculto” na defesa de um lado ou outro do debate. Voltando ao exemplo, a alegação em favor da vida do feto seria apenas um disfarce secular para uma orientação religiosa de seu defensor.
O ponto é relevante, mas exige um esclarecimento. Além de um problema prático – como identificar precisamente a real intenção de alguém? –, não se pode perder de vista que as posturas de um indivíduo são sempre influenciadas por sua personalidade, sua história e suas relações [14]. Isso assume especial relevância nos casos difíceis, como o aborto, que envolvem pretensões razoáveis em sentidos diversos. Em situações como essa, a escala de valores de cada um assume um papel decisivo no embate entre argumentos contrapostos. Como não decidir não é uma opção, mesmo para o legislador – nada fazer é manter o status quo normativo –, precisamos viver com o fato de que, muitas vezes, a formação particular de uma autoridade interferirá nas decisões que tomar. Assim como a sua perspectiva como mulher pode fazer uma deputada dar peso maior à autonomia da mãe em um debate sobre o aborto, uma vida como evangélico pode levar um parlamentar a atribuir maior proteção ao feto.
O que interessa, portanto, não é – nem poderia ser – a intenção íntima do agente. Importa o reconhecimento de que, “além do limiar institucional que separa a esfera pública informal dos parlamentos, dos tribunais, dos ministérios e das administrações, só contam argumentos seculares” – como afirma Jürgen Habermas [15]. Em outras palavras, qualquer que seja a crença pessoal de quem decide, é necessário que a manifestação do Estado se sustente em fundamentos não-religiosos autônomos. Do contrário, o processo democrático perderia seu caráter igualitário, privando quem não professasse aquele credo do direito de participar em bases justas e contra-argumentar em terreno neutro, com uma linguagem comum. Como os agentes públicos devem se dirigir ao povo como um todo, seus argumentos devem remeter a razões que todos possam compreender e avaliar.
Padrões religiosos de conduta invocam fundamentos que nem todos aceitam e, por isso, não servem, sozinhos, para embasar normas gerais e abstratas – notadamente quando prejudicam ou negam benefícios a quem não compartilha de uma convicção ou prefira viver de outra forma. Um exemplo claro de polêmica deslocada é a que envolve as uniões homoafetivas: jamais ouvi um argumento não-sectário para negar a algumas pessoas um direito que todos os outros já têm. Não se trata de favorecer ou estimular, mas simplesmente de não negar proteção jurídica a quem deposita seu afeto em alguém e com ela(e) constitui uma vida em comum. Se a união estável ou o casamento de uma pessoa afetasse a sociedade, em vez de juiz de paz, precisaríamos de um plebiscito; não sendo esse o caso, cabe a cada um escolher o seu parceiro, homem ou mulher.
Qualquer que seja a sua fé, um agente público deve evitar a tentação de usar a força, material e simbólica, da coletividade para impor padrões de perfeição acolhidos por apenas alguns. Esse dever, como visto, se aplica igualmente aos candidatos aos mandatos eletivos. Prometer em campanha o que não se pode cumprir no cargo é manipular os eleitores, tratando-os como simples meios de obter um mandato. Isso, que é ruim em si mesmo, fica ainda pior quando o que se usa são as crenças mais sinceras das pessoas. Transformar a fé em grilhão e a igreja em curral eleitoral é o pior desserviço, e talvez a pior profanação, que se pode fazer a uma religião.
* Mestre e doutorando em Direito Público no UERJ. Professor da EMERJ (2014). Sócio de Barroso Fontelles, Barcellos, Mendonça &amp; Associados – Escritório de Advocacia.
1 Nesse sentido, v. José Afonso da Silva,Comentário contextual à Constituição, 2010,pp. 95-97; Paulo Gustavo Gonet Branco. Liberdades. In: Gilmar Ferreira Mendes e Paulo Gustavo Gonet Branco,Curso de Direito Constitucional, 2011, p. 356 e ss.; Konrad Hesse,Elementos de Direito Constitucional da República Federal da Alemanha, 1998, p. 298.
2 Emerson Garcia, A religião entre a pessoa humana e o Estado de Direito,De Jure: Revista Jurídica do Ministério Público do Estado de Minas Gerais15:127-144, jul. 2010.
3 Corte Europeia de Direitos Humanos, Kokkinakis v. Grécia, nº 14307/88, julg. 25 maio 1993.
4 Naturalmente, a liberdade religiosa – como, de resto, qualquer outro direito – não é absoluta, mas antes admite restrições a fim de acomodar os direitos de outras pessoas e a satisfação de fins públicos relevantes. O mais comum é que essas limitações incidam sobre as manifestações exteriores da crença, que podem afetar a vida de terceiros. Assim, e.g., a realização de procissões em uma via pública movimentada pode ser contida em uma das faixas para permitir o tráfego nas outras, e os cultos devem reduzir o som durante a madrugada para que os vizinhos possam descansar.
5 Nas palavras precisas da Suprema Corte do Canadá, “o Estado não está em posição para ser, nem deve se tornar, o árbitro de dogmas religiosos” (Syndicat Northcrest v. Amselem, [2004] 2 S.C.R. 551, § 50; tradução livre). A mesma orientação foi adotada pela Corte Europeia de Direitos Humanos, para quem “o dever de neutralidade e imparcialidade do Estado é incompatível com qualquer poder por parte do Estado no sentido de aferir a legitimidade de crenças religiosas ou das formas nas quais tais crenças são expressas” (Leyla Şahin v. Turquia [GC], nº 44774/98, julg. 10 nov. 2005, § 107; tradução livre).
6 STF, DJ 30 abr. 2013, ADPF 54/DF, Rel. Min. Marco Aurélio (trecho do voto do Relator).
7 Como aponta o Tribunal Constitucional português, “esta posição traduz mais rigorosamente uma forma de confessionalismo de sinal contrário, mas ainda confessionalismo, uma vez que a adopção do ateísmo constitui uma postura não neutral sobre o fenómeno religioso” (Acórdão nº 423/87, Rel. Cons. Monteiro Dinis).
8 Daniel Sarmento, O crucifixo nos tribunais e a laicidade do Estado, Revista Eletrônica PRPE, maio 2007. Disponível em &lt;http://www.prpe.mpf.mp.br/internet/content/download/1631/14570/file/RE_%20DanielSarmento2.pdf&gt;. Acesso em: 15 set. 2014.
9 É histórico o registro feito pela Justice O’Connor da Suprema Corte dos EUA: “O endosso [governamental de uma religião] envia uma mensagem aos não-aderentes no sentido de que estão à margem [outsiders], não são membros integrais da comunidade política, e uma mensagem simultânea aos aderentes de que são incluídos [insiders], são membros favorecidos da comunidade política. A rejeição passa a mensagem oposta” (Lynch v. Donnelly, 465 U.S. 668, 687-688 (1984), O’Connor, J., concurring; tradução livre).
10John Rawls, The idea of public reason revisited,The University of Chicago Law Review, v. 64, n. 3, Summer 1997, pp. 768-769.
11 Ronald Dworkin,Is democracy possible here? Principles for a new political debate, 2006, p. 76.
12 Em Engle v. Vitale, 370 U.S. 421 (1962), a Suprema Corte dos EUA declarou inconstitucional uma norma que exigia que os alunos fizessem uma oração no início de cada dia letivo.
13 Assim como, no caso do Brasil, um problema social importante: o corte censitário. É de conhecimento geral que a criminalização do aborto não impede a sua ocorrência, mas apenas o acesso dos mais pobres a procedimentos de boa qualidade técnica, já que o SUS não pode ajudá-los.
14 Isto é: por sua pré-compreensão. Sobre o tema, v. Jane Reis Gonçalves Pereira,Interpretação constitucional e direitos fundamentais, 2006, p. 47; Karl Larenz,Metodologia da Ciência do Direito, 1989, p. 244.
15 Jürgen Habermas, Religião na esfera pública. Pressuposições cognitivas para o “uso público da razão” de cidadãos seculares e religioso. In: Entre naturalismo e religião: estudos filosóficos, 2007, p. 147.
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