Cristina Bichels Leitão

Chama atenção como o Direito brasileiro apresenta retrocessos. É natural que determinados institutos novos – por sua complexidade intrínseca – possam demorar a viabilizar na lei e a se consolidar na doutrina. A arbitragem coletiva é exemplo ululante disso.
Nossa querida, arrojada e saudosa processualista Ada Pellegrini Grinover propunha, em 2006, que determinados litígios transindividuais pudessem ser resolvidos por meio da arbitragem coletiva. Segundo a autora, direitos indisponíveis possuem um campo de patrimonialidade em que a arbitragem pode ser utilizada.<a href="#_edn1" name="_ednref1">[1]</a>
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A arbitragem – cabe tomar nota – é forma privada de resolução de conflitos, por meio da qual um árbitro ou tribunal arbitral da confiança das partes profere uma sentença a compor o litígio. Trata-se de meio heterocompositivo de resolução de disputas, tal qual o processo judicial. Mas na arbitragem o terceiro imparcial a resolver a causa é o árbitro, não o juiz togado. A arbitragem é jurisdição privada.
Há algumas vantagens em se optar pela arbitragem, “abrindo-se mão” do Poder Judiciário, sendo as mais relevantes a celeridade, a especialidade e a possibilidade de escolha do árbitro.
Geralmente processos arbitrais são muito mais rápidos do que aqueles que tramitam no Judiciário, já que nas arbitragens comumente não há recursos e o calendário processual estabelecido entre as partes e o árbitro confere prazos mais exíguos para a prática dos atos, inclusive para a prolação da sentença arbitral.
Caso as partes não convencionem, o prazo para a prolação da sentença arbitral será de seis meses a partir da instauração da arbitragem (<a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9307.htm">Lei de Arbitragem</a>, art. 23). Em média, procedimentos arbitrais duram cerca de 18,8 meses (LEMES, Selma. Pesquisa Arbitragem em números, 2020), enquanto processos judiciais têm duração média de três anos e dois meses em primeiro grau e nove meses em segundo grau (Conselho Nacional de Justiça. Justiça em números 2021, p. 205).
Ademais, como os árbitros são escolhidos pelas partes diante da confiança que elas nutrem no profissional, a nomeação leva em conta o conhecimento que o árbitro ou a árbitra possui na matéria que será julgada, o que confere expertise aprofundada na matéria.
Por exemplo, causas decorrentes de litígios originários de contratos imobiliários são preferencialmente dirimidas por profissionais que tenham conhecimento especializado nessa área, o que reduz a margem de erro.
Para que o litígio possa ser submetido à arbitragem, conforme o artigo 1º da Lei de Arbitragem, é necessário que verse sobre direitos patrimoniais disponíveis (arbitrabilidade objetiva) e que as partes sejam capazes (arbitrabilidade subjetiva). Causas que envolvem menores e direitos indisponíveis (como da personalidade) não podem ser submetidas à arbitragem.
Neste ponto pode-se retomar o tema mais específico da arbitragem coletiva, que une os sistemas arbitral e da tutela coletiva.<a href="#_edn2" name="_ednref2">[2]</a>
Basicamente, a tutela coletiva viabiliza que determinados entes autorizados por lei (como o Ministério Público, União, estados e municípios) demandem direito alheio transindividual ao Judiciário, em nome próprio. Um sindicato, por exemplo, tem legitimidade para impetrar mandado de segurança coletivo pleiteando direito de seus filiados sem que estes precisem participar do processo como partes. Assim, uma única sentença judicial proferida num único processo poderá viabilizar o direito de várias pessoas.
Há um conjunto de leis que dispõem sobre a tutela coletiva no Brasil, denominado microssistema da tutela coletiva. A Lei da Ação Civil Pública, o Código de Defesa do Consumidor e a Lei da Ação Popular, dentre outras, compõem o microssistema.
Pois bem. A arbitragem coletiva consiste na junção da jurisdição privada com a tutela coletiva. Significa dizer que determinados conflitos transindividuais possam ser submetidos a julgamento por meio de processo arbitral coletivo.
Quanto à arbitrabilidade subjetiva, os entes legitimados para a defesa dos direitos coletivos em geral e a parte adversa precisam ser capazes e, relativamente à arbitrabilidade objetiva, é necessário que o conflito verse sobre direito patrimonial disponível.
Os direitos coletivos são classificados pelo artigo 81, parágrafo único do CDC como difusos, coletivos stricto sensu e individuais homogêneos. Embora haja divergência, nem todos os direitos coletivos são indisponíveis, além do que direitos indisponíveis podem ter repercussão patrimonial disponível. Assim, há margem para a arbitragem de direitos coletivos. Por exemplo: a violação do direito (difuso) ao meio ambiente pode gerar uma indenização; a infringência de direito (coletivo) de determinada categoria profissional pode gerar tutela ressarcitória; e defeito de produtos fornecidos a consumidores pode viabilizar tutela para reparar danos patrimoniais e morais frente à inobservância de direito individual homogêneo.
No último exemplo citado, surgindo violação do direito do consumidor, a questão pode ser levada à arbitragem coletiva por meio de compromisso arbitral entre associação representativa dos consumidores e a empresa fornecedora do produto defeituoso. Caso a associação represente adequadamente os interesses dos consumidores que não participem do procedimento arbitral coletivo, é perfeitamente possível a arbitragem coletiva. Como a lei prevê o vínculo dos terceiros à sentença coletiva apenas em caso de procedência do pedido, nenhum prejuízo haveria a eles, além do que seu consentimento seria efetivado de forma postecipada, quando do cumprimento individual da sentença arbitral coletiva.
Sem olvidar de vários aspectos cuja complexidade impede a análise neste breve ensaio, não se pode deixar de notar a ausência da previsão da arbitragem coletiva nos Projetos de Lei <a href="https://www.camara.leg.br/propostas-legislativas/2279806">1.641/2021</a>, <a href="https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2263651">4778/2020</a> e <a href="https://www.camara.leg.br/propostas-legislativas/2261966">4441/2020</a>, que visam disciplinar a tutela coletiva de forma atual.
O PL 1.641/2021, mais recente, traz vários dispositivos de estímulo à resolução consensual dos litígios coletivos, prevendo expressamente no artigo 38 que “os conflitos envolvendo direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos poderão ser objeto de autocomposição parcial ou total”. E o § 4º do mesmo artigo permite “a celebração de autocomposição coletiva por adesão dos titulares de direitos individuais”.
Avançou-se muito no que tange à transacionalidade dos direitos coletivos em geral, mas retrocedeu-se ao não contemplar a arbitragem coletiva, que, diga-se de passagem, tem previsão constitucional: o artigo 114, §§ 1º e 2º da Constituição Federal contemplam a arbitragem para a solução de litígios coletivos do trabalho.
Se Ada Pellegrini já defendia o instituto da arbitragem coletiva em 2006; se o <a href="https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=432485">PL 5139/2009</a>, que tinha como objeto a disciplina da ação civil pública para a tutela de interesses difusos, coletivos ou individuais homogêneos, previa expressamente a arbitragem no artigo 19, § 1º; no mínimo o projeto mais recente deveria dispor da mesma forma.
Para se vislumbrar a adequação, pense-se em um caso que envolva inúmeras pessoas, como os estouros de barragens em Mariana (MG) e Brumadinho (MG), que lançaram lama tóxica e soterraram comunidades, com mortes e destruição de casas, indústrias e empresas. Tais tragédias demandam a resolução dos conflitos de forma tempestiva e especializada. Iniciada demanda perante o Poder Judiciário, é perfeitamente possível ser deslocada por compromisso à arbitragem coletiva.
Por esses motivos é crucial a reinserção da arbitragem coletiva nos projetos de lei de tutela coletiva.
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<a href="#_ednref1" name="_edn1">[1]</a> GRINOVER, Ada Pellegrini; GONÇALVES, Eduardo Damião. Conferência sobre arbitragem na tutela dos interesses difusos e coletivos. Revista de Processo, v. 136, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, pp. 249-267.
<a href="#_ednref2" name="_edn2">[2]</a> Ver NERY, Ana Luiza. Arbitragem coletiva. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016; MARIANI, Rômulo Greff. Arbitragens Coletivas no Brasil. São Paulo: Editora Atlas, 2015 e ROQUE, André Vasconcelos. Arbitragem de direitos coletivos no Brasil: admissibilidade, finalidade e estrutura. Tese (Doutorado). Faculdade de Direito da Universidade o Estado do Rio de Janeiro, 2014.

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JOTA

Se o PL 5139/2009 previa expressamente a arbitragem, no mínimo o projeto mais recente deveria seguir o mesmo caminho

É crucial a reinserção da arbitragem nos projetos de lei de tutela coletiva

Se o PL 5139/2009 previa expressamente a arbitragem, no mínimo o projeto mais recente deveria seguir o mesmo caminho