Thiago Brazileiro Vilar Hermont

Caroline Stéphanie Francis dos Santos Maciel

Dentro do campo da Legística, a busca pela sistematização legislativa permeia grande parte da discussão acerca do que vem a ser a qualidade da lei. Muito mais do que simplesmente criar novas normas para tratar questões sensíveis à comunidade, é preciso verificar em que medida a quantidade e qualidade de atos já criados devem ser revistas de forma a facilitar a visibilidade e, consequentemente, a transparência do assunto por todos os impactados.
Tal situação de desordem legislativa perpassa vários campos, muitos já notoriamente caóticos. De um lado, por exemplo, quando se pensa na criação de quase duas normas tributárias por hora durante os primeiros 30 anos da <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/constituicao-1988">Constituição de 1988</a>, é possível imaginar a enorme necessidade de condensação legislativa de um arcabouço jurídico considerável.
Porém, do outro lado do espectro, o que se nota é uma enorme carência legislativa com relação a temas marcados por desinformação, abusos de poder econômico e sub-hierarquização normativa quando por fim discutidos em nível legiferante. A ausência de legislação e de uma autoridade com poderes regulatórios pode, ainda, contribuir para a concentração de mercado e redução da inovação, gerando danos relevantes. Entre os temas mais discutidos atualmente, a regulamentação de psicotrópicos no Brasil é digna de menção.
O tema alcança maior destaque em um momento em que pesquisas nacionais e internacionais lançam novas e promissoras luzes sobre o tratamento de distúrbios mentais por meio do uso de substâncias psicotrópicas. Entre elas, ressalta-se a psilocibina, princípio ativo presente nos cogumelos do gênero Psilocybe, a ayahuasca, beberagem criada a partir da combinação da videira Banisteriopsis caapi e outras plantas amazônicas, além dos próprios avanços já aprovados pelo Conselho Federal de Medicina (CFM) com relação ao uso do canabidiol, que, embora não seja um psicoativo como os demais, também se encontra imerso no tabu da proscrição e restrição fitoterápicas<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>.
No ordenamento jurídico brasileiro, as normas que mais pormenorizadamente tratam da questão encontram-se na Portaria nº 344, de 1998, acerca da aprovação de regulamento técnico de substâncias e medicamentos sujeitos a controle especial, e na Resolução RDC nº 372 de 2020, que vem justamente atualizar o rol de entorpecentes, psicotrópicos, precursores e sob controle especial da portaria mencionada. Com enorme potencial revisor e passados mais de 20 anos da publicação inicial, somando-se ao progresso e análise científica do uso de psicotrópicos para tratamentos psiquiátricos<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>, o que se nota é a paupérrima inclusão pela resolução de uma única substância, a nitazoxanida, na Lista C1 (Substância sob Controle Especial), e absolutamente nenhuma reconsideração sobre as que se encontram na Lista F de uso proscrito no Brasil.
A problemática se aprofunda quando percebemos que um assunto de repercussão global é tratado no Brasil em nível de resolução e portaria, incapazes de dar o alcance necessário ao tema, a validação em termos de segurança jurídica e a abertura ao diálogo por meio parlamentar e de audiências públicas<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>. Além disso, cabe ponderar por que em um país com o potencial territorial brasileiro, em toda a sua pluralidade geográfica, ainda prepondera a necessidade de trâmites burocráticos para importação de substâncias para fins de pesquisa e tratamento, e a quem essa prática de fato interessa em termos políticos, econômicos e comerciais, em detrimento de uma maior autonomia doméstica.
Quando consideramos a Legística como a ferramenta através da qual o saneamento legislativo pode ser pensado, em termos amplos, torna-se possível abordar a questão da regulamentação do uso de psicotrópicos no Brasil tanto em nível de pesquisa quanto mercadológico. O uso de legislação experimental, sendo esta entendida como normas implementadas em caráter temporário para analisar seus efeitos e consequentes impactos em caráter retrospectivo (ex post), como possível passo em prol de uma normatização mais permanente<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>, assim como a revisão do poder hierárquico normativo, além dos elementos da tradição da boa elaboração legislativa, trariam todos possibilidades de abordagem do tema com mais cientificidade e compromisso, em contraposição a opiniões e lobbies divergentes e claramente imbuídos de vieses partidários e eleitoreiros.
Assim, talvez por meio das ferramentas acima, e também pela contínua investigação e questionamento acerca do como legislar, poderemos enfim realizar a jornada do aprimoramento normativo como forma de se superar estigmas e mitos que cercam os psicotrópicos e seus potenciais usos terapêutico-medicinais. Afinal, como disse William Blake, inspirando Aldous Huxley em sua célebre e precursora obra sobre o uso de alucinógenos, “se as portas da percepção estivessem limpas, tudo apareceria para o homem tal como é: infinito”. Em outras palavras, a legislação e a regulação podem funcionar como ferramentas para percepções mais claras e inovadoras de temas sociais relevantes. Com o uso de instrumentos legislativo-regulatórios apropriados, consumidores e varejistas seriam beneficiados com um contexto de regulamentação sadia também em psicotrópicos.
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA. Resolução nº 2113/2014, de 16 dezembro de 2014. Aprova o uso compassivo do canabidiol para o tratamento de epilepsias da criança e do adolescente refratárias aos tratamentos convencionais. Disponível em: <a href="https://sistemas.cfm.org.br/normas/visualizar/resolucoes/BR/2014/2113">https://sistemas.cfm.org.br/normas/visualizar/resolucoes/BR/2014/2113</a>. Acesso em: 13 mar. 2022.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> DANTAS, Carolina. Substâncias psicodélicas: estudos mostram avanços no tratamento contra a depressão e outras doenças psiquiátricas. G1, 2021. Disponível em: <a href="https://g1.globo.com/bemestar/saude-mental/noticia/2021/05/25/substancias-psicodelicas-estudos-mostram-avancos-no-tratamento-contra-a-depressao-e-outras-doencas-psiquiatricas.ghtml">https://g1.globo.com/bemestar/saude-mental/noticia/2021/05/25/substancias-psicodelicas-estudos-mostram-avancos-no-tratamento-contra-a-depressao-e-outras-doencas-psiquiatricas.ghtml</a>. Acesso em: 13 mar. 2022.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> SOARES, Fabiana de Menezes. Simplificação e elaboração da legislação tributária infralegal: notas sobre o acesso ao direito vigente e a gestão da elaboração legislativa pelo Executivo. Caderno de Finanças Públicas, n. 12, dez.2012, p. 219-245. Disponível em: <a href="http://www.esaf.fazenda.gov.br/assuntos/biblioteca/cadernos-de-financas-publicas">http://www.esaf.fazenda.gov.br/assuntos/biblioteca/cadernos-de-financas-publicas</a>. Acesso em: 13 mar. 2022.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> BAR-SIMAN-TOV, Ittai. Temporary Legislation, Better Regulation and Experimentalist Governance: An Empirical Study (July 10, 2016). 12 Regulation and Governance 192-219 (2018), Bar Ilan University Faculty of Law Research Paper No. 18-13. Disponível em: <a href="https://ssrn.com/abstract=2807564">https://ssrn.com/abstract=2807564</a>. Acesso em: 13 mar. 2022.

Cannabis

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JOTA

Uma revisita normativa aos psicotrópicos sob a luz de uma regulamentação sadia

Para além de uma psicodelia legislativa

Com instrumentos apropriados, consumidores e varejistas se beneficiariam de uma regulamentação sadia dos psicotrópicos