Felipe Freire da Costa

Impossível precisar se em 1687, ao publicar seu “Philosophiae Naturalis Principia Mathematica”, Isaac Newton tinha noção de que o Princípio da Ação e Reação tivesse aplicação sobre relações sócio-político-institucionais.
O <a href="https://www.camara.leg.br/propostas-legislativas/2268069">PL 3819/2020</a> decorre da aplicação da 3ª Lei de Newton em uma dessas relações, em que os poderes políticos, representando interesses de franjas de grupos econômicos, reagiram a um lapso de lucidez da autoridade reguladora em seu esforço de cumprir a vontade da lei no setor de transporte rodoviário interestadual de passageiros, o famoso TRIP.
<a href="https://www.jota.info/produtos/tributos?utm_source=Banner%20site&amp;utm_medium=Artigos&amp;utm_campaign=CTA_Tributos_materias"><img class="aligncenter cta-tributos size-full" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2021/09/cta-jota-pro-tributos.png" width="688" height="688" /></a>
O PL 3819 é isso, princípio da regulação e reação em essência.
A resposta ao movimento da agência reguladora de imprimir concorrência no setor de TRIP, reconhecendo a limitação de sua delegação normativa para obstaculizar a expressa vontade do legislador ordinário, deu-se em etapas, sucessivas e infrutíferas.
Àquela altura a agência contava com o apoio da pasta ministerial, de forma que a primeira onda de pressão política indireta – quando se insta o ministério a intervir na entidade reguladora – se mostraria ineficaz.
Ato contínuo, as forças contrárias à janela de autoafirmação da autonomia decisória da agência avançaram para a segunda onda, a ocorrer fora dos limites da arena regulatória, na forma de múltiplas ações judiciais, em diferentes localidades e sob objetos diversos.
A solidez desse novo momento da regulação setorial se consubstanciou em múltiplas decisões favoráveis à abertura do setor de TRIP à concorrência, em evidente homenagem ao princípio da deferência administrativa.
Enquanto o mundo discutia e tentava entender como seria o novo normal em razão dos efeitos da pandemia de Covid-19, um inesperado novo normal se consolidava na regulação setorial de transporte rodoviário de passageiros.
Teve início a terceira onda, comum quando entidades reguladoras se negam a conferir uma chancela supostamente técnica aos movimentos contrários aos contornos normativos vigentes.
É a hora em que as forças políticas precisam se expor, sujeitando-se aos riscos de se abraçarem a causas espinhosas àqueles que dependem da aceitação popular para sobreviver politicamente.
Na esteira desse movimento de aceitação do risco político como resposta última ao novo normal regulatório, surge o PL 3819, uma resposta definitiva, proporcional à ameaça à efetividade da política de rent-seeking responsável por uma das mais longevas oligarquias estatais.
Forçoso reconhecer a virulência da reação. O rol de comandos normativos da proposição legislativa divide-se em três grupos principais: as disposições negativas ao interesse público, as que aviltam o direito matemático e as inócuas.
O primeiro grupo é composto por medidas como exigência de frota própria, capital social mínimo, vedação à operação conjunta com os serviços intermunicipais – nos casos em que a empresa possua as outorgas federal e estadual –, remuneração de gratuidades, anistia de multas, imposição dos procedimentos do Código de Trânsito Brasileiro ao processamento de infrações e a suspensão de autorizações conferidas na forma da lei, posto que essas “desequilibrariam o sistema”.
Muito além de negativas, essas medidas interferem diretamente no modelo de standards legais que conferem os contornos de atuação técnica das autoridades reguladoras, possibilitando que essas entidades possam tentar fazer frente à dinamicidade dos mercados por elas regulados.
Ou seja, esse conjunto de disposições viola diretamente a autonomia da agência, engessando a regulação setorial em temas que, para além de tudo, produzirão externalidades negativas e antinomias, gerando insegurança jurídica.
O segundo grupo de medidas afronta o que ouso chamar de direito matemático. Não me referi ao direito econômico propositalmente, posto que direito e economia são ciências sociais, e os conceitos de inviabilidade técnica e econômica trazidos pelo PL 3819 se constituem em inevitável fonte de violação de pressupostos elementares de matemática.
O fato de o direito não ser uma ciência exata não implica que suas disposições se deem ao arrepio da lógica. Em outros termos, dois mais dois jamais será igual a cinco, nem na forma da lei.
<blockquote class="jota-article__eye">Ao trazer conceitos estranhos a uma mínima racionalidade matemática, e buscar lhes conferir ares de legalidade, a proposição legislativa avança sobre um terreno minado, com efeitos imprevisíveis não somente sobre a regulação de transporte rodoviário de passageiros, abrindo um precedente que pode se espraiar por outros mercados regulados, a depender da força de seus agentes econômicos.</blockquote>
Já tive a oportunidade de analisar uma dezena de estudos que se propuseram a fixar parâmetros dessa inexistente inviabilidade econômica. Todos, com maior ou menor sofisticação, resultaram em uma espécie de tabela de fretes composta por geradores de números aleatórios, voltada a conferir imunidade concorrencial às empresas incumbentes do mercado de transporte rodoviário de passageiros.
O terceiro grupo de medidas configura-se como um movimento voltado a limitar os efeitos positivos da inovação e da tecnologia sobre a atividade de transporte rodoviário de passageiros. Configuro-as como medidas inócuas.
Não me refiro à impossibilidade de se opor à evolução natural das atividades econômicas, posto que a história do direito já presenciou movimentos mais ousados de renúncia à realidade material.
Trato de uma proposição normativa vazia, incapaz de produzir os efeitos jurídicos dela esperados.
Ao propor a vedação à intermediação e venda individual de bilhetes de passagens na “prestação não regular de serviços de transporte terrestre coletivo de passageiros” de que trata o art. 13, V, “a”, da <a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/leis_2001/l10233.htm">Lei 10.233/2001</a>, o autor do substitutivo aprovado no Senado Federal e em exame na Câmara dos Deputados buscou inviabilizar o serviço de fretamento colaborativo, mas acabou direcionando sua ação a um grande vazio legal.
Inexistem outorgas de prestação não regular de serviços de transporte terrestre coletivo de passageiros no âmbito da Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT). O serviço de fretamento não se constitui em atividade econômica titularizada pelo Estado, tampouco sua autorização tem natureza regulatória, derivada do art. 21, XII, “e”, da Lei Maior.
As autorizações de serviço de fretamento decorrem diretamente do parágrafo único do art. 170 da Constituição Federal, e competem à ANTT por força dos incisos II e III do art. 26 da Lei 10.233/2001.
A vedação à intermediação e venda individual de bilhetes, uma espécie de capítulo contra a inovação dentro do PL 3819, ainda que aprovada, não produziria efeitos.
Há de se atentar, contudo, à efemeridade do lapso de lucidez da autoridade reguladora. A demora na aprovação no PL 3819 provocou o disparo de novas ondas – a quarta e a quinta –, as quais têm se mostrado mais efetivas em restabelecer a antiga e duradoura sociedade entre a regulação e o atraso.
Tem-se com isso que diante da aparente volta do antigo normal na regulação de transporte rodoviário de passageiros, em que se mostra natural conferir chancela regulatória à limitação da vontade da lei, não parece desarrazoado temer que sejam conferidos efeitos legais em caso de aprovação da vedação à intermediação e venda individual de bilhetes, ainda que decorrentes de medida inócua.
De forma geral, exceção à discussão sobre a cobrança da taxa de fiscalização, que poderia trazer resultados positivos se conduzida de forma a não comprometer a capacidade de fiscalização e monitoramento da prestação de serviço por parte da entidade reguladora, as disposições do PL 3819 não se mostram positivas, sob qualquer prisma.
O texto em apreciação na Câmara dos Deputados colima beneficiar donatários de linhas de ônibus interestaduais, eternizando o modelo de capitanias hereditárias na regulação setorial, que sempre privou os usuários desse serviço público de escolherem como exercer seu direito de ir e vir.

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JOTA

Texto em apreciação na Câmara visa a beneficiar donatários de linhas de ônibus interestaduais

Regulação e reação: o PL 3819 e a 3ª Lei de Newton

PL 3819 em apreciação na Câmara visa a beneficiar donatários de linhas de ônibus interestaduais