Diogo R. Coutinho

Mario G. Schapiro

No artigo “<a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/publicistas/tensoes-entre-estado-desenvolvimentista-e-agencias-reguladoras-20122022?utm_campaign=jota_info__ultimas_noticias__destaques__20122022&amp;utm_medium=email&amp;utm_source=RD+Station">Tensões entre Estado desenvolvimentista e agências reguladoras</a>”,  nossa colega e coautora Mariana Mota Prado manifesta preocupação com o retorno, no governo eleito em 2022, de certas políticas associadas ao Estado desenvolvimentista. Para Prado, política industrial, incentivos fiscais, subsídios diretos e controle acionário podem distorcer “dinâmicas de mercado na busca de um objetivo econômico pré-determinado”.
Ela mostra-se reticente quanto à efetividade dessas medidas e de outras políticas desenvolvimentistas e lembra que esse modelo de Estado, embora também condizente com regimes democráticos (ressalva por ela feita), esteve tantas vezes associado a regimes autoritários. Em seu texto, nossa parceira acadêmica preocupa-se, em especial, com o que alguns, pejorativamente, descrevem como política de “campeões nacionais”.
Em oposição ao desenvolvimentismo Prado refere-se ao Estado regulador, cuja emergência associa às mudanças políticas e institucionais catalisadas pelo neoliberalismo. Para a autora, há uma tensão que soa incontornável entre esses dois tipos ideais de Estado. Com toda a admiração que temos por seu trabalho, questionamos algumas de suas premissas, bem como questionamos seu argumento principal – que opõe agências reguladoras e desenvolvimentismo – por algumas razões que aqui sintetizamos.
Inicialmente, seria importante estabelecer de qual dimensão institucional se trata. O cientista político inglês Peter Hall, em um trabalho importante em que discute mudanças institucionais, sugere a existência de três camadas nas relações entre políticas e instituições. A primeira é a camada das configurações, que enseja mudanças e conflitos pontuais nos arranjos institucionais, como é o caso das disputas em torno de mudanças orçamentárias. Nessas mudanças, os diversos interesses e preferências são combinados, sem oposições definitivas.
A segunda camada é a dos instrumentos, que refletem os mecanismos de ação do Estado, como a criação de novas políticas e ferramentas de ação. Trata-se de uma mudança mais importante no arranjo institucional, mas que ocorre em um plano operacional das políticas públicas, âmbito no qual estas ferramentas são compatibilizáveis pelos formuladores e gestores das ações governamentais.
A terceira camada é a que tensiona diferentes paradigmas de Estado, como no caso estudado por Hall, entre os paradigmas keynesiano e o monetarista. Nesta terceira camada, as relações entre os diferentes arranjos de Estado e economia são rivais – o paradigma monetarista dos anos 1980 suplantou o keynesianismo do pós-guerra como norte de organização das relações econômicas.
Ao lermos o texto de Prado, no entanto, entendemos que seu argumento não se referia a esta terceira camada – ou seja, a autora não sugere uma derrocada no paradigma desenvolvimentista diante da hegemonia neoliberal, uma troca de paradigmas. O argumento do texto, nos parece, é mais voltado a questionar a possibilidade de combinação de instrumentos de intervenção – a segunda camada de mudança institucional de que trata Hall.
Sendo esse o plano de análise, é importante assinalar que a literatura especializada em governança econômica (fazemos referência a David Levi-Faur) já avançou para admitir que o Estado é polimórfico, isto é, reúne simultaneamente diferentes formas e mecanismos de ação. Esta combinação de mecanismos e instrumentos lembra um coral, na bonita imagem apresentada por Knudsen &amp; Rothstein, em que sedimentos sobrepostos conferem formas e cores diferentes a um mesmo organismo. Segue assim que a atuação reguladora do Estado transcende a existência de agências reguladoras independentes, superando, dessa forma, a ligação necessária entre regulação e neoliberalismo. <a href="https://www.researchgate.net/publication/256050456_The_Odyssey_of_the_Regulatory_State_From_a_'Thin'_Monomorphic_Concept_to_a_'Thick'_and_Polymorphic_Concept">Levi-Faur</a> aponta, por exemplo, que alguns dos problemas teóricos ligados à noção de regulação residem justamente em sua descrição como algo monomórfico, ou seja, como uma construção institucional formal e única, como se a regulação não variasse, em termos de conformação e função, no tempo, no espaço e, ainda, em sua imbricação com os objetivos substantivos de economia política de cada contexto.<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>
A governança econômica, neste plano dos instrumentos (a segunda camada de Hall), em outras palavras, é polimórfica e tem mais a ver com o tipo de instrumento empregado para promover objetivos tidos como de interesse público do que com paradigmas, visões de mundo ou ideologias a respeito do papel do Estado na economia. Vale dizer: a regulação pode coexistir como ferramenta do desenvolvimentismo, da liberalização ou mesmo do processo de <a href="https://www.jota.info/tributos-e-empresas/regulacao/disque-denuncia-regulatorio-30032021">autocratização</a> pelo qual muitos países vêm hoje passando. Aliás, a regulação também pode “distorcer dinâmicas de mercado”. Tudo depende de como e com que grau de efetividade e legitimidade isso é feito.
Ao opor as duas coisas, a nosso ver, Mariana Prado oblitera o que pode ser uma combinação virtuosa, na caixa de ferramentas de que se vale o Estado, de meios articulados e coordenados pelos quais certos fins podem ser definidos e alcançados. Tudo depende, vale repetir, de como isso é, na prática, concebido e posto em marcha. Ademais, nesse curto texto Prado deixa de reconhecer que o modelo de agências reguladoras também pode ser falho, não se podendo dele presumir (tomar como dadas) certas virtudes que, tanto quanto no caso das políticas desenvolvimentistas, dependem de como, para que e com que competência técnica e transparência se implementa a ação reguladora.
Como as vemos, regulação e políticas industriais não só servem a objetivos distintos, como desempenham funções instrumentais diferentes. Isso entre outras coisas significa dizer que a <a href="https://www.jota.info/tributos-e-empresas/regulacao/agencias-reguladoras-para-frente-e-que-se-anda-18122018">regulação</a> não necessariamente é mais transparente, imparcial ou legítima que políticas industriais, ou que o desenvolvimentismo seja, em sua essência, mais dado à opacidade e à captura que o modelo das agências.
Embora possa haver evidências aqui e ali, o contexto importa e o sucesso ou fracasso de cada um dos modelos tem relação complexa com decisões políticas, embates de grupos de interesse, capacidades estatais de implementação, soluções jurídicas mais ou menos efetivas. Regulação e políticas industriais não apenas podem como devem ser combinadas, podendo, inclusive, haver um regime de governança regulatória da política industrial. Nesse sentido, vale lembrar que a própria noção de “falha de mercado” (que dá lastro tanto à regulação, quanto à política industrial) é uma ideia que, no fim das contas, não deixa de ser histórica, contextual e em alguma medida política. Não é uma puramente técnica, unívoca, consensual ou transcendente.
Importa ainda frisar que a literatura contemporânea sobre política industrial é relevante para o debate aqui travado. Isso porque importantes economistas e estudiosos como <a href="https://drodrik.scholar.harvard.edu/publications/industrial-policy-dont-ask-why-ask-how">Rodrik</a>, <a href="https://www.amazon.com/Public-Purpose-Industrial-Governments-Prosperity/dp/194651165X">Mazzucato</a> e <a href="https://onlinelibrary.wiley.com/doi/abs/10.1111/dech.12570">Chang</a> e outros mostram que políticas industriais não são nem foram exclusivamente adotadas pelos países em desenvolvimento, tendo os países da OCDE sido pródigos em seu uso para fortalecer suas cadeias industriais e sistemas de inovação em busca da construção (algo intencionalmente forjado, vale sublinhar) de vantagens comparativas.
É nesse contexto que devem ser compreendidas as chamadas políticas de “campeões nacionais”. Tecnicamente falando, elas consistem em esforços de internacionalização de empresas por meio de mecanismos de estímulo à exportação de serviços. Prado as descreve como “totalmente equivocadas” e, para tanto, baseia sua afirmação na opinião de um acadêmico brasileiro competente, porém conhecidamente liberal e avesso às políticas industriais.
O apoio ao fortalecimento e à internacionalização de grupos empresariais no Brasil não implicou a escolha discricionária de alguns poucos e privilegiados. Não consta que o Brasil tenha “escolhido” um ou outro grupo nacional para ser campeão em detrimento de seus competidores, nacionais ou estrangeiros. Grupos internacionais (não apenas nacionais) também foram criteriosamente apoiados pelo <a href="https://www.bndes.gov.br/wps/portal/site/home/conhecimento/publicacoes/livros/livro-verde-final/!ut/p/z1/04_iUlDg4tKPAFJABpSA0fpReYllmemJJZn5eYk5-hH6kVFm8T6W3q4eJv4GPv6eLpYGji5hgQFuAR6Ofj5m-l5gjQj9IBPw64iA6oAqh1P6kUZFvs6-6fpRBYklGbqZeWn5-hE5mWVF-bplqUUpqbppmSAXFWRHRQIALhiL2w!!/">BNDES</a> entre 2001 e 2016 em setores como energia, automotivo, telecomunicações e mineração. Há um debate sobre isso e pode haver críticas e defesas, mas há, também, má compreensão sobre o papel da internacionalização de empresas, bem como sobre a importância do fomento à exportação de serviços, que de resto são, como dito acima, parte da estratégia de desenvolvimento de países ricos e industrializados.
Por fim, concordamos com Mariana Prado quanto à importância de que a independência e autonomia decisória e financeira das agências reguladoras sejam <a href="https://www.jota.info/tributos-e-empresas/regulacao/agencias-reguladoras-para-frente-e-que-se-anda-18122018">preservadas</a>. A regulação, como instrumento do Estado brasileiro, deve ser constantemente aperfeiçoada e fortalecida, não sabotada e debilitada. Mas isso não impede que outros instrumentos de desenvolvimento sejam agregados e empregados simultaneamente. Tampouco impede a necessária conexão – que também existe nas políticas industriais – entre a regulação e definição de estratégias de desenvolvimento. Nesse tipo de mosaico criativo, inovador e virtuoso é que, em nossa opinião, se estruturam as relações de coordenação público-privada de que é feito o capitalismo, coordenação essa que não se dá de forma espontânea e sim por meio de uma ação planejadora autoconsciente do Estado.
<hr />
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Para Levi-Faur, a noção de Estado regulador tem um núcleo duro, que não se resume ao modelo de agências, que “pode se aplicar a qualquer Estado que se apoia na elaboração de leis (rulemaking), no monitoramento dessas leis (rule monitoring) e a aplicação dessas leis (rule enforcement)”.

impacto da reforma tributária na industria

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Regulação não necessariamente é mais imparcial que políticas industriais

Uma resposta a Mariana Prado