
O noticiário dos últimos dias dá conta da existência de, ao menos, dois projetos de lei (PL 96/2011 e PL 2567/2022) em tramitação na Câmara dos Deputados com a finalidade de disciplinar a realização e divulgação de pesquisas eleitorais, bem como criminalizar os autores de levantamentos com números divergentes, acima da margem de erro, tendo por base os resultados oficiais das eleições, coisa que um dos PLs qualifica como “pesquisa fraudulenta”.
Com efeito, todos reconhecem a importância de, em alguma medida, haver maior regulação das pesquisas de intenção de voto, à vista dos seus incontestáveis reflexos junto ao eleitorado. Para um candidato, aparecer à frente ou atrás em determinados momentos da campanha política pode ser determinante para o resultado das eleições, pelo que maiores rigores e critérios técnicos e científicos devem orientar a atuação dos institutos de pesquisa na realização dos seus levantamentos.
Trate-se de erro ou fraude, o fato é que não podem ser minimamente toleráveis discrepâncias que, no limite, têm aptidão para influir na vontade dos eleitores e, por conseguinte, no destino dos eleitos ou não eleitos em uma democracia representativa e complexa, como a brasileira, com mais de 156 milhões de eleitores distribuídos em um vasto território, e em que a adequada escolha da amostra estatística, a partir de considerações de gênero, idade, grau de instrução e nível econômico dos entrevistados, não sendo algo aleatório, se torna sobremodo relevante.
A pergunta, porém, é: qual a melhor forma de “regular” a realização de pesquisas eleitorais e a atuação dos institutos correspondentes? Será por meio de lei de iniciativa parlamentar, com viés criminalizante? Lei de iniciativa do Legislativo, com supostos elementos de caráter técnico e científico, seria a via mais apropriada? Num cenário em que novas tecnologias podem orientar a realização de levantamentos, enquetes e pesquisas de mercado, não seria mais acertado que uma regulação técnica, por especialistas, tivesse lugar? Planejamento estatístico, amostra probabilística e previsões de erro devem mesmo constituir matéria de lei ou ficar a cargo de técnicos e cientistas de dados, insulados em entidades reguladoras? Em uma sociedade cada vez mais conectada e presente nas redes sociais, quais as melhores metodologias para captar uma manifestação de vontade fidedigna? Enfim, de que maneira aprimorar a realização de pesquisas no Brasil e a captação de informações verdadeiras e íntegras?
Ousa-se dizer que a edição de lei para disciplinar os aspectos acima relacionados, além de insuficiente, seria inconveniente, e isso por uma principal e fundamental razão: a influência indiscriminada das maiorias políticas, especialmente no calor dos acontecimentos, tendo por pano de fundo uma sociedade fortemente polarizada. Um tema dessa natureza deve estar a salvo das lutas partidárias de ocasião. Em tal sentido, uma regulação levada a cabo por entidade dotada de autonomia orgânica e funcional, inclusive normativa, e orientada genuinamente por critérios técnicos e científicos, devidamente apetrechada para tanto, parece melhor atender aos anseios por uma disciplina desinteressada, sem ira, nem paixão, em assuntos marcados por forte cariz político.
Ora, pesquisas de intenção de voto lidam com informações sensíveis dos cidadãos, dados que, como visto, definem destinos de políticos e os rumos de uma nação. Não parece haver dúvida de que as informações e os levantamentos realizados por institutos de pesquisas ocupam-se, portanto, de dados pessoais, a denotar uma manifestação de vontade individual sobre uma determinada enquete. E, como dado pessoal, é merecedor da correlata custódia constitucional, na forma do inciso LXXIX do art. 5º da Constituição Federal, que qualifica a proteção dos dados pessoais, inclusive nos meios digitais, como direito, liberdade e garantia fundamental individual, a partir de acréscimo realizado pela Emenda Constitucional nº 115/2022.
Assim, parece ser do passado a ideia de que autoridades administrativas independentes se limitariam à regulação de setores meramente econômicos ou de serviços públicos delegados a particulares. Tal como na França, também no Brasil é expectável que direitos fundamentais constantes do texto constitucional reivindiquem proteção e regulação técnica, jurídica e científica, como o são os dados pessoais. É preciso, portanto, superar a ideia de que a regulação, por atuação de autoridades independentes, vincula-se apenas a assuntos de Direito Administrativo Econômico. O art. 174 da Constituição, longe de estabelecer vedações, consubstancia uma leitura válida do texto constitucional, não porém a única, de modo tal que novas miradas e abordagens podem validamente ter lugar. A recente aprovação, pelo Senado, do projeto de conversão em lei da Medida Provisória nº 1.124, de 13 de junho de 2022, a transformar a Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD) em autarquia de natureza especial, parece ser o prelúdio para o que aqui se sustenta, relativamente ao cabimento e à pertinência para que entidades da regulação dotadas de independência e autonomia possam se imiscuir em temas relativos a direitos fundamentais.
A propósito, da exposição de motivos da referida medida provisória editada pelo Executivo federal, colhe-se que a autonomia administrativa assegurada pela criação de uma autarquia especial trará maior confiabilidade ao sistema regulatório brasileiro de proteção de dados, maior compatibilidade frente a outros regimes regulatórios semelhantes e harmonização internacional, com benefícios potenciais para a economia de dados brasileira. Na espécie, a ANPD assume ares de verdadeira autoridade da regulação, em desenho que, para os fins aqui propostos — regulação de institutos e de pesquisas eleitorais — deverá, por certo, ser bastante aprimorado.
Assim, em comparação com a “regulação” levada a cabo pelo legislativo, em ambiência marcada pelos interesses político-partidários e pelas maiorias conjunturais de momento, mais apropriada parece ser uma regulação que tenha por base e fundamentos uma especialização técnica, estabilidade jurídica e proteção contra interferências políticas, com autonomia administrativa e poderes de supervisão, fiscalização e normatização de atividades de pesquisas de opinião, com o fim de garantir a sua confiabilidade e reputação. De capacidade institucional se está aqui a tratar, a partir da percepção de que ela, como instrumento contrafático, indica limites funcionais da atuação do poder público, nas palavras do professor Gustavo Binenbojm (BINENBOJM, Gustavo. Uma teoria do direito administrativo: direitos fundamentais, democracia e constitucionalização. 3 ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006).
E, a propósito disso, como bem observa o professor Alexandre Santos de Aragão, em texto que examina as agências reguladoras no direito comparado, o reforço da autonomia de gestão para melhor implementação de valores albergados pela Constituição pode ser alcançado, protegido e satisfeito se a sua gestão for colocada a salvo das lutas partidárias (ARAGÃO, Alexandre Santos de. Agências reguladoras e a evolução do Direito Administrativo Econômico, 3 ed. rev e atual. Rio de Janeiro: Gen/Forense, 2013), com neutralização das interferências e das idiossincrasias e (ir)racionalidades inerentes ao jogo político, partidário e eleitoral.
Enfim, imune às influências e aos colorados políticos variados, sejam eles extremados ou não, notadamente em cenário de “pouco pacto”, porque, no limite, esquerda e direita aqui, Republicanos e Democratas nos EUA, fazem — ou tendem a fazer — leis excludentes uns dos outros, o cometimento a autoridades administrativas independentes do papel de regular setores sensíveis da vida social, não necessariamente econômicos, a exemplo da confiança e reputação dos institutos e das correspectivas pesquisas eleitorais de intenção de voto, pode significar algum avanço no tratamento do assunto, em debate que, ao cabo e ao resto, há de requerer discussão e participação do Legislativo, universidades, sociedade civil, imprensa e Justiça Eleitoral. O caminho não é fácil; o horizonte, porém, pode ser promissor.