Anuidade

Registro em conselho profissional pode ser fato gerador da contribuição?

Sobre o artigo 5º da Lei nº 12.514/2011

inscrição profissional
Crédito: Procon-SP/Divulgação

Não é inédita a discussão em torno da legitimidade das cobranças realizadas pelos conselhos profissionais ou, mais precisamente, é conhecida a sanha arrecadatória dos mesmos que tentam cobrar anuidades ainda que de pessoas que exercem atividades muito distantes das submetidas ao espectro de sua fiscalização. Basta a menção à administração de bens próprios no contrato social de alguma empresa e lá já estará o Conselho Regional de Administração (CRA) pronto para exigir o registro da empresa no Conselho e o pagamento de anuidade.

Sem adentrar na discussão acerca da necessidade e conveniência de tais conselhos, notadamente em razão do disposto no artigo 5º, incisos II e XX, da Constituição Federal (CF), muitas são as vezes em que o Judiciário é chamado a declarar que a cobrança da anuidade é indevida, na medida em que a empresa ou profissional não exercem a atividade exclusiva ou típica da profissão sob a fiscalização do conselho.

O Judiciário já foi chamado em casos bastante esdrúxulos, como, por exemplo, de uma empresa dedicada à prestação de serviços de portaria, zeladoria, limpeza e recepção que vinha sendo “requisitada” a realizar o registro no CRA, mesmo sendo nítido que tais atividades não seriam privativas de técnicos de administração (TRF 4ª Região, Apelação Cível nº 5012163-22.2017.4.04.7100), assim como o caso de um analista de Recursos Humanos que também vinha sendo compelido por tal Conselho a efetuar o cadastro1.

Historicamente, as Cortes de Justiça sempre se mostraram muito razoáveis nessas demandas, declarando sempre que o fato gerador da obrigação de pagar anuidade aos conselhos profissionais seria a efetiva realização de profissão ou atividade sujeita à fiscalização dos mesmos2.

Com efeito, sempre se prestigiou o disposto no artigo 1º da Lei nº 6.839/80, segundo o qual o registro de empresas e a anotação dos profissionais legalmente habilitados serão obrigatórios nas entidades competentes para a fiscalização do exercício das diversas profissões, em razão da atividade básica ou em relação àquela pela qual prestem serviços a terceiros.

Referido artigo, em conjunto com as disposições legais que listam as atividades sob a fiscalização de cada conselho, e o conjunto probatório do caso concreto quanto às reais atividades prestadas pela sociedade e/ou profissional, sempre foram o norte das decisões para definir a legitimidade da exigência do registro perante dado conselho e, consequentemente, da cobrança de anuidades.

Pois bem. Em 2011, sobreveio a Lei nº 12.514, que, dispondo sobre as contribuições devidas aos conselhos profissionais em geral, passou a prever em seu artigo 5º que “o fato gerador das anuidades é a existência de inscrição no conselho, ainda que por tempo limitado, ao longo do exercício”. Essa previsão parece afrontar a ordem constitucional e se passa a elencar as razões de tal assertiva.

Primeiramente, os conselhos profissionais são autarquias federais (STF, ADI nº 641) e a natureza jurídica das anuidades foi considerada tributária, precisamente, de contribuições sociais de interesse das categorias profissionais ou econômicas conforme previsto pelo artigo 149 da CF (STF, MS nº 21.797).

Por serem uma espécie de tributo, tais contribuições estão sujeitas a algumas normas e princípios constitucionais.

O próprio artigo 149 da CF menciona que tais contribuições devem observar o disposto nos artigos 146, inciso III3, e 150, incisos I e III4. Ou seja, e na parte que interessa a esse breve estudo, deveria ser uma lei complementar a prever o fato gerador dessas contribuições, além de ser impossível a cobrança em relação a fatos geradores ocorridos antes do início da vigência da lei que os houver instituído ou aumentado. Com efeito, as hipóteses para tanto já encontram previsão no Código Tributário Nacional, em seu artigo 1065.

Há, ainda, que se considerar a necessidade do fato gerador ser vinculado à finalidade dos conselhos para que a própria existência da contribuição encontre-se justificada.

Sobre a exigência de lei complementar, embora o disposto no artigo 149 seja bastante claro, o Supremo Tribunal Federal (STF) conferiu uma interpretação própria ao dispositivo e acabou concluindo pela desnecessidade da mesma (RE nº 451.915 e RE nº 396.266).

Resta-nos, portanto, avaliar o princípio da irretroatividade tributária e a necessidade de vinculação do fato gerador à finalidade da contribuição.

Quanto à irretroatividade, parece claro que, com a interpretação que será exposta abaixo, o registro somente poderia configurar fato gerador da anuidade para as pessoas (físicas e jurídicas) que o efetuarem a partir da entrada em vigor da Lei nº 12.514/2011. E quanto às pessoas que tiverem realizado o registro antes de 2011, mas que, ao tempo da entrada em vigor da Lei, já não mais exerciam qualquer atividade sujeita ao conselho?

Nessa hipótese, parece-nos que não se justifica a cobrança da anuidade pelo simples fato de o registro não ter sido cancelado após ter se tornado fato gerador com o advento da Lei nº 12.514/2011. Afinal, ao tempo em que praticaram o ato (o registro), o mesmo não era fato gerador da contribuição parafiscal. Entendimento diverso seria admitir a violação ao princípio da irretroatividade tributária, princípio basilar do direito tributário pátrio.

Façamos um exercício com outro tributo a fim de se confirmar a tese ora defendida. Imagine-se que o fato gerador do IPTU deixe de ser a existência de propriedade predial e territorial urbana (artigo 156, inciso I, da CF) e passe a ser a existência de cadastro do contribuinte nos sistemas do Município. Seria legítimo cobrar IPTU em 2018 de algum contribuinte que tivesse feito tal cadastro no ano de 2000, pelo fato de à época ser proprietário de algum imóvel, somente pelo simples fato de não ter solicitado o cancelamento de tal cadastro até a entrada em vigor da nova lei? A resposta parece ser negativa.

Deve-se adicionar um argumento de ordem prática, já que o cancelamento do registro em tais conselhos não é tarefa fácil. São exigidos inúmeros documentos e, muitas vezes, o pagamento de anuidades até o pedido de cancelamento, o que fere, inclusive, o princípio da liberdade de associação, o que também já levou o Judiciário a se manifestar diversas vezes pela ilegalidade desses atos dos conselhos (TRF 4ª Região, Processo nº 5002027-07.2010.4.04.7101, julgado em 16/04/2012; TRF 4ª Região, Processo nº 5003094-73.2011.4.04.7100, julgado em 09/06/2011).

Quanto ao terceiro ponto desse estudo, ou seja, a necessidade de o fato gerador guardar relação com a finalidade da contribuição, parece-nos que esta seja a terceira razão pela qual a disposição do artigo 5º da Lei nº 12.514/2011 afronta a ordem constitucional (permitindo-nos destoar do entendimento do STF que entende pela desnecessidade de lei complementar para instituição dos elementos dessa incidência tributária).

A nosso ver, a existência de um fato gerador meramente formal, desvinculado de um critério material, que, no caso, seria o exercício da própria atividade, afasta-se da finalidade que justifica a existência da própria contribuição. Com efeito, as contribuições parafiscais exigem que seu fato gerador seja qualificado pela finalidade. E se a finalidade do conselho profissional é supervisionar o exercício de determinadas atividades profissionais, somente o efetivo exercício de tais atividades pode e deve ensejar o pagamento de anuidade aos mesmos.

Como destacado por Hamilton Dias de Souza:

Ocorre que, na verdade, a hipótese de incidência das contribuições tem configuração especial, pois não se caracteriza apenas pela descrição de um determinado fato. A este fato agrega-se a circunstância de a ação estatal ser desenvolvida para atender a uma determinada finalidade (…). Porém, como ressaltado, para que ocorra a obrigação de pagar contribuição é necessário que se verifiquem, concorrentemente, não só o fato abstratamente previsto na norma, mas também a atividade estatal que enseja a cobrança da contribuição. Neste sentido, pode-se dizer, com Miguel Reale, que o fato gerador não atua como mera causa da exação, como acontece com os impostos, mas sim como causa qualificada pela finalidade que lhe é inerente(…) a obrigação só nasce se verificados, concomitantemente, a atividade estatal em determinada área de particular relevância e o fato descrito na norma6”. (g.n.)

Repise-se, se a arrecadação da exação deve ser destinada ao custeio da atividade desenvolvida, somente a atividade sujeita ao conselho pode custeá-la. Essa foi, inclusive, uma das razões de decidir acatadas pelo ex-Ministro do STF Carlos Velloso por ocasião do julgamento do RE nº 396.266, embora tal recurso tratasse da chamada contribuição ao SEBRAE, considerada como contribuição de intervenção no domínio econômico:

“As contribuições de interesse das categorias profissionais ou econômicas destinam-se ao custeio de entidades que tem por escopo fiscalizar ou regular o exercício de determinadas atividades profissionais ou econômicas, bem como representar, coletiva ou individualmente, categorias profissionais, defendendo seus interesses. Evidente, no caso, a necessidade de vinculação entre a atividade profissional ou econômica do sujeito passivo da relação tributária e a entidade destinatária da exação”.

 Diante do exposto, tem-se que a única forma do dispositivo em comento se coadunar com a ordem constitucional é interpretá-lo no sentido de que somente os registros realizados a partir da entrada em vigor da Lei nº 12.514/2011 podem significar a sujeição à anuidade, sendo que, uma vez comprovada a não realização da atividade, deve-se admitir o cancelamento do registro e restar impossibilitado qualquer ato de cobrança das anuidades. Em outras palavras, o registro gera uma presunção juris tantum de que a pessoa ou sociedade exerce tais atividades. Todavia, uma vez elidida tal presunção, a existência do registro por si só não pode justificar a cobrança, especialmente quando efetivado antes da entrada em vigor do dispositivo em comento.

Já se verificam algumas decisões caminhando nesse sentido (TRF 4ª Região, Processo nº 5035115-43.2013.4.04.7000, julgado em 08/04/2015; TRF 4ª Região, Processo nº 5030657-71.2013.4.04.7100, julgado em 03/06/2014; e TRF 4ª Região, Processo nº 5001833-22.2015.4.04.7104, julgado em 14/06/2016).

Por fim, vale dizer que diversos dispositivos da Lei nº 12.514/2011 foram objeto de ações diretas de inconstitucionalidade (ADI nº 4.697 e ADI nº 4.762). As referidas ações foram ajuizadas pela Confederação Nacional das Profissões Liberais (CNPL) e pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde (CNTS) em face dos artigos 3º, 4º, 6º, 7º, 8º, 9º, 10 e 11 da Lei nº 12.514/2011, tendo o STF concluído pela constitucionalidade dos mesmos.

Embora o artigo 5º tenha sido mencionado no voto do Ministro Relator, o mesmo não foi objeto de análise mais aprofundada pela Corte.

Em conclusão, pela natureza jurídica das anuidades cobradas pelos conselhos profissionais, tem-se que a previsão do artigo 5º da Lei nº 12.514/2011, segundo o qual o fato gerador das anuidades é a existência de inscrição no conselho, não encontra amparo na ordem constitucional brasileira diante das próprias limitações impostas pelo artigo 149, ao menos, até que se altere a Constituição. A única interpretação viável do mesmo para que se possa concluir pela sua constitucionalidade é no sentido de que o registro gera uma presunção juris tantum de que a pessoa ou a sociedade exerce tais atividades. Todavia, o registro por si só não pode ser considerado fato gerador da contribuição, especialmente quando efetivado antes da entrada em vigor do dispositivo legal em comento.

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1 Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2017-abr-23/analista-rh-nao-obrigado-ficar-conselho-administradores>. Acesso em 18.10.18.

2 Veja-se, exemplificativamente, TRF 2ª Região, Processo nº 0012353-54.2010.4.02.5101, julgado em 29.01.15.

3Art. 146. Cabe à lei complementar:

(…)

III – estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária, especialmente sobre:

a) definição de tributos e de suas espécies, bem como, em relação aos impostos discriminados nesta Constituição, a dos respectivos fatos geradores, bases de cálculo e contribuintes;

b) obrigação, lançamento, crédito, prescrição e decadência tributários”.

4Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:

I – exigir ou aumentar tributo sem lei que o estabeleça;

(…)

III – cobrar tributos:

a) em relação a fatos geradores ocorridos antes do início da vigência da lei que os houver instituído ou aumentado;

b) no mesmo exercício financeiro em que haja sido publicada a lei que os instituiu ou aumentou;                               

c) antes de decorridos noventa dias da data em que haja sido publicada a lei que os instituiu ou aumentou, observado o disposto na alínea b”.         

5 “Art. 106. A lei aplica-se a ato ou fato pretérito:

I – em qualquer caso, quando seja expressamente interpretativa, excluída a aplicação de penalidade à infração dos dispositivos interpretados;

II – tratando-se de ato não definitivamente julgado:

a) quando deixe de defini-lo como infração;

b) quando deixe de tratá-lo como contrário a qualquer exigência de ação ou omissão, desde que não tenha sido fraudulento e não tenha implicado em falta de pagamento de tributo;

c) quando lhe comine penalidade menos severa que a prevista na lei vigente ao tempo da sua prática.”

6 Disponível em: <https://www.dsa.com.br/artigos/hamilton-dias-de-souza-contribuicoes-especiais/>. Acesso em 18.10.18.