Victor Aguiar de Carvalho

Em comparação à Lei no 8.666/93, o Projeto de Lei no 4.253/2020, que dará origem à nova lei geral de licitações e contratos, reduz consideravelmente a discricionariedade sancionatória ao estabelecer, em seus arts. 154 e 155, uma correlação entre as infrações administrativas e as sanções que deverão incidir em cada hipótese.
Na Lei no 8.666/93, utiliza-se o verbo “poderá” no caput do art. 87, indicando haver um leque de possíveis sanções, a serem aplicadas à luz da proporcionalidade. No entanto, o Projeto de Lei no 4.253/2020 vale-se dos verbos “será” e “serão” no art. 155, o que denota, a princípio, que a incidência dessas sanções seria uma decorrência impositiva ao gestor público caso sejam praticadas determinadas infrações administrativas.
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Pela literalidade da lei, parece que o legislador pretendeu criar uma certa vinculação sancionatória, que se aplicará inclusive às medidas de exclusão dos procedimentos de compras e contratações públicas, quais sejam, a declaração de inidoneidade e o impedimento de licitar e contratar.
<blockquote class="jota-article__eye">Sanções existem para atender alguma finalidade de interesse público, notadamente para incentivar comportamentos socialmente desejáveis. Não são um fim em si mesmas.</blockquote>
Ocorre que, no que concerne à exclusão dos procedimentos de contratações públicas, a pretendida vinculação entre infração e sanção suscita um verdadeiro trade-off para o Poder Público, que precisa ser devidamente administrado.<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>
Por um lado, a imposição vinculada de uma sanção de exclusão, na hipótese de cometimento de uma infração administrativa grave, poderá aumentar a objetividade e a transparência do sistema sancionatório, ensejando benéfico incremento do efeito dissuasório da sanção administrativa.
Por outro, a necessária imposição de uma sanção de exclusão pode acarretar efeitos adversos, notadamente em hipóteses fáticas em que a exclusão de licitantes de procedimentos futuros de contratações públicas se revele uma medida inconveniente ou excessivamente gravosa.
Com efeito, a exclusão de atores econômicos pode afetar a concorrência em um determinado mercado, suscitando o risco de incremento de preços pela menor competição ou de facilitação na formação de cartéis, sem falar na inviabilidade de contratar um fornecedor que eventualmente seja imprescindível em um mercado muito restrito. Recentemente, na Lei no 13.919/2020, o legislador mostrou-se atento a esse fato, autorizando que, para o enfrentamento do coronavírus, na excepcionalidade de haver uma única fornecedora de bem ou serviço, a sua contratação fosse possível, a despeito da existência de sanção de impedimento ou de suspensão de contratar.
O ponto se torna ainda mais sensível porque o art. 155, § 4º, do Projeto de Lei no 4.253/2020, dispõe que o impedimento de licitar e contratar “será aplicado” mesmo em hipóteses menos graves, como a inexecução parcial do contrato, a não manutenção da proposta ou a não celebração do contrato, o que poderá dar ensejo à exclusão de muitos potenciais fornecedores.
Se o aprovado projeto pretendia a incidência vinculada de medidas de exclusão, como disposto pela literalidade do art. 155, essa norma deveria, então, ter sido ser acompanhada do estabelecimento de critérios que permitissem o prévio autossaneamento do infrator.
Assim, conceder-se-ia ao licitante ou ao contratado a oportunidade de adotar providências reparadoras do ilícito perpetrado, justificando o afastamento da declaração de inidoneidade ou do impedimento de licitar e contratar.
Contudo, o Projeto de Lei no 4.253/2020 não versou sobre autossaneamento do infrator. Limitou-se a prever (i) a sua possível reabilitação, posteriormente à aplicação da sanção, mediante o cumprimento de determinados requisitos, inclusive temporais; (ii) que a celebração de um acordo de leniência, com fulcro na dita Lei Anticorrupção, poderia isentar sanções previstas no art. 155.
Porém, as hipóteses de aplicação das sanções de exclusão são tão amplas que, em muitos casos concretos, sequer se adequarão aos estreitos requisitos para a celebração de um acordo de leniência.
Para suprir a lacuna normativa, um possível caminho seria interpretar que o art. 155, § 1º, ao estabelecer elementos que devem ser considerados quando da incidência das sanções, autorizaria a aplicação de uma punição menos grave do que a estabelecida na correlação sancionatória presente nos demais parágrafos do art. 155, caso as circunstâncias fossem favoráveis ao infrator. Não parece o melhor entendimento, uma vez que acaba por retornar, por via transversa, a modelo muito próximo ao de ampla discricionariedade sancionatória da Lei no 8.666/93, que restou afastado pelo legislador.
Outro caminho – que nos parece mais compatível com o espírito do Projeto de Lei – seria construir soluções negociais para o eventual autossaneamento dos infratores, com fulcro na permissivo genérico do art. 26 da LINDB, plenamente aplicável às licitações e contratos, conforme dispõe o art. 5º do Projeto de Lei no 4.253/2020. Assim, mediante a demonstração do cumprimento de certos requisitos e a assunção de determinadas obrigações, o infrator e a Administração poderiam negociar o afastamento das sanções de exclusão.
As experiências estrangeiras com o autossaneamento de infratores podem iluminar o caminho a ser percorrido pela Administração. Embora em contexto diferente do Brasileiro, nos Estados Unidos, o corporate self-cleaning, presente no Federal Acquisition Regulation (FAR), permite que empresas evitem a exclusão dos procedimentos de compras e contratações públicas demonstrando a adoção de determinadas providências para remediar malfeitos perpetrados<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>. Na União Europeia, há uma figura de autossaneamento no item 6 do art. 57 da Diretiva 2014/24/EU, a permitir, desde que cumpridos determinados requisitos, o afastamento das medidas de exclusão.
De toda sorte, o Projeto de Lei no 4.253/2020 já poderia ter antecipado as possíveis consequências não intencionais de seu aparente novo regime sancionatório e disposto sobre os parâmetros para o prévio autossaneamento de licitantes ou contratados infratores, a possibilitar o afastamento das sanções de declaração de inidoneidade ou de impedimento de licitar e contratar.
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O episódio 48 do podcast Sem Precedentes faz uma análise sobre a atuação do Supremo Tribunal Federal (STF) em 2020 e mostra o que esperar em 2021. Ouça:
https://youtu.be/-hMj5lwWXEE
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Tratando dos trade-offs a serem ponderados na utilização de mecanismos de exclusão, v. AURIOL, Emmanuelle; SØREIDE, Tina. An economic analysis of debarment. International Review of Law and Economics, vol. 50, p. 36-49, 2017, p. 37.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> FAR 9.406-1. Sobre o self-cleaning no direito americano, v. PEREIRA, Cesar; SCHWIND, Rafael Wallbach. Autossaneamento (self-cleaning), inidoneidade e suspensão do direito de licitar: lições do direito europeu e norte-americano. Fórum de Contratação e Gestão Pública – FCGP, ano 14, n. 165, p. 23-29, set. 2015, pp. 27-28.; e WILLIAMS-ELEGBE, Sope. Fighting Corruption in Public Procurement: A Comparative Analysis of Disqualification or Debarment Measures. Oxford: Hart Publishing, 2012, pp. 268-269.

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JOTA

Ao reduzir a discricionariedade na aplicação de sanções, PL nº 4.253/2020 pode produzir consequências indesejadas

Regime sancionatório da nova Lei de Licitações e autossaneamento dos infratores

Ao reduzir a discricionariedade na aplicação de sanções, PL nº 4.253/2020 pode produzir consequências indesejadas