Marcelo Marchesini

Natalia Pires de Vasconcelos

Após muitos ensaios e longa demora, o governo Bolsonaro apresentou as linhas gerais da sua reforma administrativa, chamada de Nova Administração Pública. Alguns analistas nos últimos dias já apontaram como, de “nova”, a reforma tem quase exclusivamente o nome<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>. Neste artigo trazemos um ponto adicional: esta nova roupagem ignora que a natureza de muitos dos problemas da administração pública brasileira não está relacionada a marcos regulatórios, mas a deficiências na gestão.
Em primeiro lugar, vale retomar o questionamento sobre o nome fantasia adotado. Apesar de faltar detalhamento em diversos pontos, muito do que a proposta apresenta é nova embalagem e pequenas variações para medidas que já existem. Um exemplo são os tipos de vínculos propostos. Ao contrário do que o governo anuncia, não há apenas servidores estatutários no governo atualmente. Os cargos de direção e assessoramento, bem como a contratação temporária, já existem na administração pública. A diferenciação do regime de cargos típicos de Estado e a criação de um vínculo de experiência após o estágio probatório são, efetivamente, as novidades. Mas aqui já se revela o maior problema que queremos destacar: a reforma proposta busca soluções legais para problemas que são, eminentemente, de gestão.
<a href="https://conteudo.jota.info/risco-politico" target="_blank" rel="noopener noreferrer"><img class="aligncenter wp-image-244336 size-full" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2020/04/cta-risco-politico.png" alt="" width="1080" height="1080" /></a>
O estágio probatório existe para todos os cargos públicos efetivos desde 1988 e tem como função exatamente avaliar o desempenho dos novos servidores, identificando eventuais inadequações. O governo federal aponta – com razão – que atualmente o estágio probatório é uma mera formalidade, com apenas 0,4% dos servidores sendo desligados após esse período. E qual é a solução proposta pelo governo? Criar um período adicional de experiência com a obrigatoriedade de desligamento de parte dos aprovados inicialmente no concurso. O que garante que aqui as avaliações vão funcionar?
A proposta negligencia a importância de melhorias de gestão para que as avaliações sejam bem conduzidas. Por que gestores que não são competentes ao avaliarem o estágio probatório serão competentes ao analisar o período de experiência? Sem abordar esse elemento, há um grande risco de que as escolhas pela efetivação ocorram por afinidade pessoal ou política com a chefia de ocasião nos órgãos públicos. Além disso, a obrigatoriedade de cortes pode levar à perda de bons servidores e servidoras após investimento público no seu treinamento.
A mesma crítica se aplica à instituição de avaliações de desempenho ao longo da carreira, com a possibilidade de desligamento dos servidores com má performance. É importante notar que, no mérito, pode ser benefício a uma instituição avaliar o desempenho de seus servidores. O problema da proposta de reforma é não apontar, desde o seu momento inicial, que a gestão é central para o sucesso dessa medida. A literatura é ampla no sentido de apontar que avaliação de desempenho pode ser positiva, mas os seus ganhos só ocorrem de fato com um efetivo sistema de gestão<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>.
Outro ponto genérico e desnecessário da proposta é a mudança na governança do Estado. A reforma propõe maior colaboração entre órgãos públicos e desses com organizações privadas. Os estudos sobre governança colaborativa mostram que é de fato importante um marco regulatório adequado para parcerias.  No Brasil temos várias possibilidades, como consórcios, PPPs, concessões, MROSC, entre outros. A efetivação de melhores parcerias hoje no Brasil depende, contudo, mais de lideranças políticas engajadas e que não se acusem mutuamente do que novos marcos regulatórios.
Para além destes pontos, a reforma traz novos princípios ao artigo 37 da Constituição, que norteariam esta “nova” administração pública. Se a atual redação prevê legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência como princípios, a proposta adiciona “imparcialidade”, “transparência”, “inovação”, “responsabilidade”, “unidade”, “coordenação”, “boa governança pública”, e “subsidiariedade”. Estes princípios só são citados no caput da proposta para o artigo 37 uma vez, não há qualquer especificação do que eles significam dentro desta “nova” administração.
Resumem uma lista de ideias que na falta de detalhamento servirão de base para controvérsias judiciais ao estilo de tantos outros princípios constitucionais. E, como nos demais exemplos, trazem pontos genéricos cuja efetividade precisa menos de novas normas e mais de gestão. É preciso reconhecer que, em alguns aspectos da reforma proposta, as medidas institucionais são adequadas. Não é possível, realmente, se corrigir só com melhoria de gestão a existência de um sistema de cargos fragmentado e com salários desiguais para funções semelhantes.
Também é positiva a vedação de benefícios exagerados a servidores públicos, ainda que se dirija apenas às novas contratações de servidores e, o que é muito mais grave, deixe de fora a elite de burocracia como juízes e militares. Enquanto não houver uma reforma que atinja esses setores ultraprivilegiados, é questionável exigir sacrifícios somente de professoras, médicas, policiais e outras carreiras centrais para o funcionamento dos serviços públicos.
Mesmo com alguns pontos positivos na proposta apresentada, o receio é que estes se percam na longa negociação política que deve ocorrer para a aprovação da reforma. Isso é um risco especialmente concreto por ser esta uma proposta construída sem diálogo com  os diversos setores envolvidos. Esta falta de diálogo, que marca boa parte das medidas propostas pelo governo, não só já gera resistência política e da sociedade civil em relação a reforma, mas deixa de fora outros elementos importantes que poderiam se beneficiar de alterações regulatórias, como o atual sistema caro, demorado e ineficaz de concursos públicos, que poderia ter ingressado na proposta.
<blockquote class="jota-article__eye">Já outros pontos da proposta não parecem se justificar em nenhuma necessidade prática ou evidência empírica, como a maior concentração de poder na Presidência da República para extinguir órgãos e reformar a administração indireta. Por que a opinião do presidente torna desnecessária a análise legislativa sobre a extinção de uma empresa pública?</blockquote>
Vale lembrar que mesmo as boas práticas de governança em organizações privadas preveem processos mais amplos de discussão e análise, envolvendo, por exemplo, aprovações em Conselho de Administração no caso de extinção de subsidiárias. Uma governança pública democrática e responsável com o país precisa envolver outros representantes da população em decisões tão relevantes.
Esta primeira versão da proposta, em resumo, traz mais do mesmo em um pacote que se diz “novo”, mas que emprega as velhas generalidades e princípios que não resolvem problemas regulatórios tampouco se traduzem em medidas concretas de gestão. A tentativa do governo de gerar um fato político relevante para si se sobrepôs à busca por soluções efetivas e de longo prazo.
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Ver, por exemplo, o artigo de Carlos Ari Sunfeld disponível em https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2020/09/efeito-de-pec-e-adiar-mudancas-e-reforma-continua-na-estaca-zero.shtml
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> Ver meta-análise sobre estudos de gestão de desempenho: GERRISH, Ed. The impact of performance management on performance in public organizations: A meta‐analysis. Public Administration Review, v. 76, n. 1, p. 48-66, 2016.

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JOTA

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