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O que a reforma trabalhista na Espanha citada por Lula pode oferecer ao Brasil?

Diálogo social e reconhecimento de direitos dos trabalhadores para fortalecer mercado pautaram mudanças

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O ex-presidente Lula se reúne com o premiê da Espanha, Pedro Sánchez, em Madri em novembro de 2021. Crédito: Ricardo Stuckert

A reforma trabalhista recentemente introduzida na Espanha foi trazida ao debate brasileiro pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), citada por ele como modelo para o Brasil em uma possível revisão da reforma trabalhista ocorrida aqui em 2017. Mas o que se tratou especificamente nessa reforma? Qual sua natureza e significado? O que ela tem de especial? Até onde ela realmente avançou? O que a reforma espanhola pode oferecer ao Brasil como modelo?

A reforma laboral de 2021, também conhecida como Reforma Díaz, em homenagem à sua hábil negociadora Yolanda Díaz, segunda vice-presidenta e ministra do Trabalho e Previdência Social da Espanha, vem sendo tratada pela doutrina e por atores sociais do país ibérico como um giro de Copérnico ou mudança de paradigma.

Isso se dá por dois motivos básicos: 1) a reforma, ou as reformas, como será visto mais à frente, estão sendo realizadas com base no diálogo social, com normas negociadas previamente entre trabalhadores e empregadores sob a batuta mediadora do Estado, ultrapassando o unilateralismo que era a regra nas reformas anteriores; 2) ao contrário do que acontecia desde 1980, esta reforma não propõe resolver os problemas do mercado de trabalho ceifando direitos dos trabalhadores, mas, ao contrário, entende que o reconhecimento e a garantia de direitos será elemento favorável ao fortalecimento desse mesmo mercado.

Estes dois pontos têm sido realçados como os de maior importância na reforma espanhola, que vem sendo bastante elogiada por trabalhadores, empregadores e juristas, à exceção de alguns doutrinadores que a entenderam “descafeinada”, por não ter avançado em diversos pontos necessários para estancar a precariedade do trabalho naquele país. Essa crítica, no entanto, é rebatida pelos sindicatos e por doutrinadores como sendo esse o resultado possível dentro da realidade e do modelo de negociação com a classe empregadora.

A Espanha, cuja última reforma de retirada de direitos ocorreu em 2012, não teve, nas décadas que se seguiram às mudanças iniciadas em 1980, redução dos níveis de desemprego, que sempre foi a promessa que envelopava cada alteração legislativa. Ao contrário, a taxa oscilou sempre pelo alto, deixando, no entanto, um nível absurdo de precariedade no mercado de trabalho, baseado em contratos temporários (alcançando cerca de 25% do total de contratos de trabalho) e altíssima rotatividade, ocasionando baixo crescimento e produtividade nas empresas espanholas.

Como foi adiantado acima, trata-se de um conjunto de reformas que vem atender a um plano de transformação, recuperação e resiliência, a partir de vários admoestações da União Europeia, como explicita a exposição de motivos do Real Decreto-Ley 32/2021, de 28 de dezembro de 2021, a parte principal do conjunto que modifica dispositivos do Estatuto dos Trabalhadores.

As reformas começaram em 2020 com a regulação do trabalho à distância e o teletrabalho, igualdade entre homens e mulheres, revogação da legalidade de dispensa por doença e a previsão de vínculo empregatício para os trabalhadores em plataformas de entrega, que concede também acesso dos sindicatos ao algoritmo (Ley Riders). Junto a esse diploma, que tem vigência imediata, mas é submetido a convalidação pelo Parlamento, foram introduzidas leis sobre contratação no serviço público (Ley 20/2021), orçamentárias (Ley 21/2021) e no sistema de aposentadorias (Ley 22/2021), sempre com a intenção de reforçar a proteção aos trabalhadores.

O Real Decreto-Ley 32/2021, base das reformas, tem basicamente seis eixos.

O primeiro trata dos contratos formativos, semelhantes ao contrato de aprendizagem brasileiro. Reduziram-se o número de contratos possíveis para dois: formação profissional com trabalho com emprego e contrato de trabalho para aquisição de prática. A pretensão foi preservar o elemento formativo e profissionalizante no contrato, que vinha sendo deixado de lado, e garantir os direitos trabalhistas das pessoas jovens. A reforma prevê ainda a criação em prazo definido do Estatuto del Becario, para regular o estágio e garantir direitos a esses trabalhadores.

O segundo ponto foi a modificação da regulação da contratação por tempo determinado. Suprimiu-se o contrato por obra e serviço, que alcançou um número assustador de mais de 8 milhões em um só ano. Diminuíram-se as hipóteses de contratação temporária, o que resulta em redução da discriminação de mulheres e jovens, que são os que mais são contratados nessa modalidade. Fixaram-se regras restritas para a possibilidade de utilização do “fijo discontinuo”, semelhante ao trabalhador intermitente brasileiro. Para a contratação do “fijo discontinuo” é necessária a presença de pelo menos uma dessas hipóteses: 1) natureza sazonal do trabalho ou atividade econômica de temporada; 2) atividades intermitentes; 3) trabalhadores de empresas terceirizadas durante o período de transição entre contratos; 4) necessidades temporárias da empresa.

A reforma espanhola traz o óbvio: o contrato intermitente só pode ser utilizado em circunstância real de hipótese que o justifique, para trazer os que estão fora da proteção para dentro, e não para precarizar os que já são alvo da lei trabalhista. No entanto, o óbvio muitas vezes é o mais importante a ser dito expressamente.

Em terceiro lugar, realizou-se a modernização da “subcontratación”, que corresponde ao nosso contrato de prestação de serviços, que de forma atécnica e vulgar chamamos aqui de terceirização. O objetivo foi evitar a utilização do instituto para mero barateamento dos custos às expensas dos trabalhadores, o que vai em sentido contrário ao que o Supremo Tribunal Federal (STF) expressou recentemente de forma assustadora em tese, fixada no sentido de que isonomia de remuneração geraria uma lesão à livre iniciativa de reduzir custos (sic).

De fato, a nova legislação espanhola impõe à contratada que siga, em relação aos seus trabalhadores, as normas, inclusive negociadas coletivamente, da categoria pertencente à atividade econômica efetivamente realizada. Também neste ponto a preocupação foi a discriminação de mulheres subcontratadas com remuneração e garantias inferiores.

A quarta questão reformada foi a continuidade de regras utilizadas para a preservação do emprego durante a pandemia da Covid-19, desta feita de forma permanente, propondo uma flexibilização interna do tipo “flexisegurança socialmente responsável”.

O quinto eixo foi a reforma das regras da negociação coletiva. Uma das medidas foi o retorno do princípio da ultratividade, retirado no Brasil pela reforma de 2017, cuja ausência representa uma “espada de Dâmocles” na cabeça dos sindicatos de trabalhadores. Assim, o instrumento coletivo anterior passa a vigorar enquanto continuar a negociação de novo convênio. Em outro ponto, a reforma impede a prevalência de acordo coletivo em detrimento da convenção coletiva em relação a salários, que vinham sendo reduzidos a nível de empresa em detrimento de conquistas da categoria.

O sexto ponto trata da busca da efetividade das medidas estabelecidas, pela previsão do caráter de infração grave da transgressão ou desvio de objetivo de qualquer modalidade contratual. A fraude recebe agora punição pela Inspeção do Trabalho de até € 10 mil por trabalhador e situação encontrada.

Obviamente, mais do que os importantes pontos que este conjunto de reformas veio resolver até agora, a relevância do movimento está tanto no abandono da espiral decrescente e recessiva das reformas anteriores quanto no instrumento do diálogo social, essencial para uma sociedade realmente democrática.

A Espanha, fazendo-se um paralelo com o filme “Não Olhe para Cima” (EUA, 2021), viu e compreendeu a ameaça do “cometa” e resolveu tomar efetivas providências. Abandonou o discurso negacionista e falacioso da geração de empregos pela retirada de direitos trabalhistas e resolveu olhar para cima. Mas não só para cima: olhou para os lados. Viu o movimento que vêm fazendo tanto os Estados Unidos quanto a Coreia do Sul de reversão da precarização de seus mercados de trabalho. Olhou para os lados e conversou com os atores sociais de seu país e por meio do diálogo buscou soluções negociadas. Com isso vai poder olhar para frente, planejar seu futuro, e não ser escrava de um eterno presente acorrentado por um passado para o qual alguns insistem em tentar retornar.