Luiza Machado de O. Menezes

Tathiane Piscitelli

Uma mulher terá cerca de 400 a 500 ciclos menstruais durante sua vida<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>. Isso significa que gastará, pelo menos, 13 mil absorventes durante sua existência<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>, em razão de um processo natural, fisiológico e sem equiparação com o sexo masculino. Nesse contexto, 1 a cada 4 meninas deixará de ir à escola pela falta de acesso a produtos de higiene menstrual<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>.
De outro lado, análise dos dados da Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF 2017-2018) demonstra que lares chefiados por mulheres negras gastam 36,3% mais em alimentação, 43,2% menos em aquisição de veículos e 76,5% menos em aquisição de imóveis do que lares chefiados por homens brancos<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>. Assim, produtos como fraldas infantis, fraldas geriátricas, bombas de amamentação, talco, pomada para assaduras são produtos necessários, ligados à saúde e que precisam ter sua essencialidade reconhecida também em âmbito tributário.
Essas rápidas referências são suficientes para concluir que, atualmente, a tributação brasileira discrimina as mulheres tanto no que se refere à tributação de produtos ligados à fisiologia feminina, como absorventes, anticoncepcionais e dispositivos intrauterinos, quanto em relação aos produtos ligados ao cuidado, tais como talcos e pomadas, fraldas infantis e geriátricas. Ambas as categorias estão sujeitas a alíquotas consideravelmente mais altas em relação a produtos não essenciais voltados ao uso masculino ou tradicionalmente menos utilizados por mulheres. Atualmente, os absorventes, anticoncepcionais e DIUs são três vezes mais tributados que a camisinha masculina, e as bombas para amamentação são três vezes mais tributadas que bombas para pneus de carro e as pomadas para assaduras de bebês são mais tributadas que as ceras lustra-veículos<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>.
Não é novidade que a <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/analise/reforma-tributaria-relator-tenta-driblar-ciclo-politico-com-regra-de-transicao-23062023">base da reforma tributária sobre o consumo</a> em discussão no Congresso Nacional é a unificação de tributos, com a imposição de alíquota uniforme sobre todos os bens e serviços, independentemente da essencialidade. Como contraponto a essa ideia, na semana passada, o deputado federal Aguinaldo Ribeiro apresentou um texto substitutivo à <a href="https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2196833">PEC 45/2019</a> e, dentre outras alterações, previu um rol de produtos que estariam sujeitos a reduções de alíquotas dos novos tributos criados – os então denominados IBS, imposto sobre bens e serviços, e CBS, contribuição sobre bens e serviços.
O ponto, porém, é que nem os produtos de higiene menstrual, nem aqueles relacionados à economia do cuidado estão contemplados nesse rol. O cenário atualmente posto, portanto, indica a possibilidade de menor tributação para agrotóxicos e alimentos ultraprocessados, e tributação padrão (elevada) para bens cujo consumo relaciona-se diretamente com a dignidade e o direito à saúde das mulheres.
Na Colômbia, depois de anos de mobilização feminista por uma menstruação livre de impostos, o governo realizou, em 2016, reforma tributária que reduziu o IVA incidente sobre absorventes de 19% para 5%<a href="#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a>. Ainda assim, em 2018, a Suprema Corte declarou inconstitucional tal cobrança sobre absorventes<a href="#_ftn7" name="_ftnref7">[7]</a> e esse mesmo racional foi aplicado aos coletores menstruais<a href="#_ftn8" name="_ftnref8">[8]</a> em 2021. Segundo a decisão, a tributação, “independente da alíquota fixada pelo legislador”, viola o princípio da igualdade tributária ao impor uma carga irrazoável e desproporcional para as mulheres e outras pessoas que menstruam em decorrência do consumo de um produto de uso obrigatório e insubstituível em virtude de uma função biológica<a href="#_ftn9" name="_ftnref9">[9]</a>.
A Corte ainda ressaltou que:
<blockquote class="jota-article__citation">[...] a política fiscal não é um assunto alheio às questões de gênero. Pelo contrário, é um cenário em que as discussões sobre a existência de medidas com impacto diferenciado entre mulheres e homens são essenciais, não só pelas implicações econômicas que tem em si, mas também pela sua capacidade de projetar consequências prejudiciais ao gozo efetivo dos direitos das mulheres à igualdade e à dignidade humana.(...)</blockquote>
<blockquote class="jota-article__citation">Instituir um imposto sobre os produtos menstruais significa que são artigos de luxo que, por isso, são tributados a uma taxa superior aos considerados como bens necessários ou da cesta básica familiar. Assim, é discriminatório toda vez que tributa um produto destinado a suprir uma necessidade básica e primária de mulheres ou pessoas que menstruam.<a href="#_ftn10" name="_ftnref10">[10]</a></blockquote>
Voltando-se os olhos para o Brasil, a se seguir com esse texto substitutivo em sua integralidade, estaremos perdendo a oportunidade de considerar as dimensões de gênero e raça na formulação da reforma tributária e, pior, viabilizando que o direito tributário siga sendo instrumento que intensifica as desigualdades.
Não há qualquer sentido em se prever um rol de produtos que seriam beneficiados com uma tributação favorecida à luz de sua essencialidade, mas não contemplar nesse rol bens que estão diretamente ligados à preservação da dignidade da pessoa humana, acesso à saúde e à educação, como são os produtos de higiene menstrual. Em relação aos produtos relacionados à economia do cuidado, uma cesta bem delimitada de bens de higiene pessoal, que englobasse fraldas infantis e geriátrias e outros produtos consumidos por mulheres em razão do trabalho doméstico de cuidado, não remunerado, seria suficiente para inserir os marcadores de gênero e raça no debate.
Justamente em razão desse fato, o grupo de pesquisas Tributação e Gênero, do Núcleo de Direito Tributário da FGV Direito SP, enviou, à Secretaria da Mulher da Câmara dos Deputados, presidida pela deputada federal Benedita da Silva (PT-RJ), ofício apresentando sugestões de alterações no texto do substitutivo à PEC 45/2019. Dentre as alterações, além da inserção de itens de higiene menstrual e relacionados à economia do cuidado no mesmo inciso que traz os medicamentos, sugere-se modificação ao artigo 150 da Constituição, para que haja a previsão, ex ante, do impacto de gênero e raça na formulação de políticas tributárias, como forma de assegurar que os sistemas tributários não incorram em discriminações implícitas ou explícitas de gênero.
Nos termos da justificativa apontada, o resultado de uma determinação como essa seria a "incorporação desses marcadores [de gênero e raça] de modo transversal à elaboração de políticas que envolvam a alocação de recursos públicos".
A existência de um dispositivo constitucional nesses termos colocaria o Brasil em consonância com as tendências mundiais, que não mais ignoram os impactos que as decisões tributárias geram na ampliação das desigualdades aqui tratadas. E, ironicamente, mitigaria a discussão central deste texto: caso tivesse havido qualquer análise de gênero na formulação da lista constante do artigo 8º do texto do substitutivo, jamais os produtos de higiene menstrual e outros básicos ligados ao cuidado teriam ficado de fora. Apenas um olhar alienado para as questões nacionais de gênero e raça permite tal descompasso com o texto constitucional.
<hr />
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Segundo o Tratado de Fisiologia Médica: “Os anos reprodutivos normais da mulher se caracterizam por variações rítmicas mensais da secreção dos hormônios femininos, e correspondem a alterações nos ovários e nos outros órgãos sexuais. Esse padrão rítmico é denominado ciclo sexual mensal feminino menstrual. (...) Durante todos os anos reprodutivos da vida adulta, entre cerca de 13 e 46 anos de idade, 400 a 500 folículos primordiais se desenvolvem o bastante para expelir seus óvulos – um por mês” (HALL, 2011, p. 1041).
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> Considerando a indicação dos fabricantes de trocar o absorvente a cada 4 horas e pressupondo um ciclo mínimo de 5 dias, com 6 absorventes/dia por 450 ciclos menstruais, tem-se 13.500 absorventes nos anos de fertilidade de uma mulher.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> FUNDO DE POPULAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS; FUNDO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA A INFÂNCIA. Pobreza menstrual no Brasil: desigualdades e violações de direitos. [UNFPA;UNICEF], 2021. Disponível em: <a href="https://www.unicef.org/brazil/relatorios/pobreza-menstrual-no-brasil-desigualdade-e-violacoes-de-direitoshttps:/www.unicef.org/brazil/relatorios/pobreza-menstrual-no-brasil-desigualdade-e-violacoes-de-direitos-de-direitos">https://www.unicef.org/brazil/relatorios/pobreza-menstrual-no-brasil-desigualdade-e-violacoes-de-direitoshttps://www.unicef.org/brazil/relatorios/pobreza-menstrual-no-brasil-desigualdade-e-violacoes-de-direitos-de-direitos</a> . Acesso em: 30 jun. 2023.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> MENEZES, Luiza Machado de Oliveira.  Tributação e desigualdades de gênero e raça: vieses de gênero na tributação sobre produtos ligados ao trabalho de cuidado e à fisiologia feminina. 2023. 135 f. Dissertação (Mestrado em Direito) - Faculdade de Direito, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2023. Disponível em: <a href="https://repositorio.ufmg.br/handle/1843/53343">https://repositorio.ufmg.br/handle/1843/53343</a>.
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> MENEZES, Luiza Machado de Oliveira.  Tributação e desigualdades de gênero e raça: vieses de gênero na tributação sobre produtos ligados ao trabalho de cuidado e à fisiologia feminina. 2023. 135 f. Dissertação (Mestrado em Direito) - Faculdade de Direito, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2023. Disponível em: <a href="https://repositorio.ufmg.br/handle/1843/53343">https://repositorio.ufmg.br/handle/1843/53343</a>.
<a href="#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a> Disponível em:
<a href="https://www.semana.com/corte-constitucional-tumba-el-iva-en-las-toallas-higienicas-y-tampones/590722/">https://www.semana.com/corte-constitucional-tumba-el-iva-en-las-toallas-higienicas-y-tampones/590722/</a>
<a href="#_ftnref7" name="_ftn7">[7]</a> Decisão na íntegra em: <a href="https://www.corteconstitucional.gov.co/relatoria/2018/C-117-18.htm">https://www.corteconstitucional.gov.co/relatoria/2018/C-117-18.htm</a>
<a href="#_ftnref8" name="_ftn8">[8]</a> Cf. <a href="https://www.corteconstitucional.gov.co/relatoria/2021/C-102-21.htm">https://www.corteconstitucional.gov.co/relatoria/2021/C-102-21.htm</a>
<a href="#_ftnref9" name="_ftn9">[9]</a> Na íntegra: […] la imposición del gravamen indirecto, con independencia de la tarifa general establecida por el legislador, constituye una carga irrazonable y desproporcionada para las mujeres particularmente de escasos recursos o más pobres, lo cual repercute en el principio de equidad tributaria en la faceta horizontal. Atendiendo que el consumo de otros productos menstruales resulta ineludible para las mujeres en edad fértil (además del carácter de insustituibles, función biológica) [...].
<a href="#_ftnref10" name="_ftn10">[10]</a> Tradução livre de: “En suma, la política fiscal no es un asunto ajeno a las cuestiones de género. Se trata, por el contrario, de un escenario en el que las discusiones acerca de la existencia de medidas con impacto diferenciado entre mujeres y hombres resulta esencial no solo por las implicaciones económicas que en sí misma tiene, sino debido a su capacidad para proyectar consecuencias nocivas en el goce efectivo de los derechos a la igualdad y a la dignidad humana de las mujeres.”

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JOTA

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