Sarah Merçon-Vargas

Marcos Vinícius Pinto

Heitor Vitor Mendonça Sica

A <a href="https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/lei-n-14.230-de-25-de-outubro-de-2021-354623102">Lei n.º 14.230/2021</a> alterou profundamente aspectos processuais e materiais da Lei de Improbidade Administrativa e trouxe à tona intrigantes questões, ao retirar a moldura punitiva de condutas antes previstas como ímprobas. Dois exemplos eloquentes são os seguintes: a) a extinção da modalidade culposa do ato ímprobo causador de dano ao erário previsto no art. 10; b) a extinção do tipo aberto de ato ímprobo por violação a princípios da Administração Pública, outrora previsto no caput do art. 11.
Nesse cenário, surgem duas questões fundamentais: essas inovações se aplicariam a fatos anteriores à promulgação da lei, para excluir a tipificação de atos que antes seriam ímprobos, de modo análogo à abolitio criminis do Direito Penal? O novo regime jurídico, se mais benéfico, aplica-se a fatos ocorridos antes da Lei n.º 14.230/2021, a exemplo do que, no penal, se denominaria novatio legis in mellius? E ainda. Se afirmativas as respostas, de que meios disporiam os réus para reconhecimento dessa abolitio criminis ou da novatio legis in mellius em processos pendentes ou findos?
<a href="https://www.jota.info/produtos/poder?utm_source=Banner%20site&amp;utm_medium=Artigos&amp;utm_campaign=CTA_Poder_materias"><img class="size-medium wp-image-292717 aligncenter" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2021/01/jota-pro-poder.jpg" alt="" width="688" height="688" /></a>
Qualquer análise em torno do direito intertemporal – e aquela relacionada às modificações da Lei de Improbidade não foge dessa regra – deve partir da constatação de que, diante da lei nova, há fatos pretéritos (factos praeterita), fatos pendentes (facta pendentia) e fatos futuros (facta futura)<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>.
Um dos modelos pelos quais o ordenamento jurídico lida com a aplicação de normas jurídicas novas a situações jurídicas pendentes é o da retroatividade da norma nova para atos ou fatos pretéritos. Trata-se de modelo excepcional, face ao comando do art. 5º, XXXVI, da CF/88<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>. Por isso, a retroatividade da lei depende de dois fatores, quais sejam, a existência de previsão normativa a respeito, e a criação de situação jurídica mais favorável para o cidadão em relação ao Estado. Exemplo de retroação in utilibus da lei nova se encontra no art. 5º, XL da CF/88, que prevê a possibilidade de a lei penal nova retroagir para beneficiar o réu, seja pela abolitio criminis, seja pela novatio legis in mellius.
Tal garantia vale para o acusado em face de qualquer poder sancionador estatal, não apenas penal. Com isso, afirma-se, aqui, que as alterações da Lei de Improbidade favoráveis aos réus produzem efeitos retroativos. A adoção desse posicionamento se justifica porque o art. 1º, § 4º da Lei de Improbidade prescreve a aplicação dos princípios constitucionais do direito administrativo sancionador e, para este ramo do Direito, os efeitos retroativos das normas mais benéficas (e a vedação à retroação das mais gravosas) constituem realidade.<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>
Apesar de existirem julgados em sentido contrário,<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a> é amplamente adotado o posicionamento do Superior Tribunal de Justiça de que “o princípio da retroatividade da Lei Penal mais benéfica, insculpido no art. 5º, XL, da Constituição da República, alcança as Leis que disciplinam o direito administrativo sancionador”.<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>
Esse entendimento alinha-se à teoria de que, nos processos judiciais punitivos, em que a pretensão constitui exercício do ius puniendi estatal, o catálogo de garantias deve pautar-se pelo referencial de cota máxima de garantias: o direito/processo penal. Nesse campo, a regra da retroatividade in mellius, assim como a irretroatividade in pejus, tem como fundamento jurídico-político o princípio geral da liberdade e o caráter excepcional de sua restrição. <a href="#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a>Ademais, as normas do art. 5º da CF/88 não apenas têm eficácia imediata (§1º), como devem ser interpretadas de forma ampliativa, porquanto instituem direitos fundamentais do cidadão em face do Estado.<a href="#_ftn7" name="_ftnref7">[7]</a>
Fixada a premissa da retroação em benefício do réu da Lei n.º 14.230/2021, chega-se às seguintes conclusões quanto às questões acima referidas.
Em relação aos processos pendentes, o advento da Lei n.º 14.230/2021 constitui ius superveniens que influi decisivamente no julgamento da causa e que pode ser alegado pelo réu mesmo após a contestação (art. 342, I, CPC) – e inclusive em grau recursal<a href="#_ftn8" name="_ftnref8">[8]</a> – e pode ser conhecido ex officio pelo juiz (arts. 342, I, 493 e 1014, do CPC), conforme entendimento do Superior Tribunal de Justiça<a href="#_ftn9" name="_ftnref9">[9]</a>.
Uma vez alegada a abolitio criminis, a ação em que se imputa a prática de atos de improbidade que se tornaram atípicos deve ser extinta, por decisão de mérito<a href="#_ftn10" name="_ftnref10">[10]</a> de natureza declaratória, em razão da extinção da punibilidade dos réus. Não se trata de extinção sem resolução do mérito por “perda superveniente do objeto”, pois essa seria uma “falsa sentença de carência de ação”<a href="#_ftn11" name="_ftnref11">[11]</a>. Afinal, o que fica assentado é que, diante do efeito da retroação da lei, o agente não poderá ser punido por não ter violado, sequer em tese, a norma cível sancionadora.
Extinto o processo, não poderá ser ajuizada nova ação, fundada nos mesmos fatos, embora com enquadramento diverso (artigo 17, §19, III, da Lei de Improbidade), por força da garantia do ne bis in idem e da coisa julgada material, que se opera sobre a totalidade do evento natural, independentemente do recorte dado no processo ou da qualificação jurídica.
Da mesma forma, as normas que abrandam sanções devem ser aplicadas aos feitos pendentes, de modo que o julgador fique impedido de considerar norma que não mais esteja vigente.
Em relação aos processos findos, a formação da coisa julgada poderia induzir ao raciocínio de que seria necessária sua rescisão para a extinção da punibilidade. Contudo, estendida à improbidade administrativa a garantia do art. 5º, XL, da CF/88, os efeitos sancionatórios podem ser excluídos por decisão na própria ação, a exemplo do processo penal, em que nem mesmo a revisão criminal é necessária; basta simples requerimento destinado ao juiz da execução, conforme se depreende do art. 66 da Lei de Execução Penal e Verbete n.º 611 da Súmula do STF.<a href="#_ftn12" name="_ftnref12">[12]</a>
O art. 65 da Lei n.º 9.784/1999 e o art. 174 da Lei n.º 8.112/1990 ilustram bem essa temática no direito administrativo sancionador, por autorizarem a revisão, a qualquer momento, desde que surjam fatos novos ou circunstâncias relevantes que justifiquem a inadequação da sanção aplicada.
Assim, por força da aplicação dos princípios constitucionais do direito administrativo sancionador (art. 1o, § 4º da LIA), a coisa julgada condenatória em ação de improbidade administrativa constitui simples estabilidade, passível de questionamento a qualquer tempo. São muitas as normas do sistema punitivo (e não apenas do sistema administrativo sancionador) que abrem a porta para a impugnação da condenação, mesmo após a estabilização máxima, no caso dos processos administrativos, ou do trânsito em julgado, no caso dos processos jurisdicionais. São exemplos dessas normas o art. 84.1 do Estatuto de Roma (Decreto n.º 4.388/2002), art. 622 do CPP, art. 65 da Lei n.º 9.784/1999 e o art. 174 da Lei n.º 8.112/1990.
Não é necessário, portanto, rescindir a sentença condenatória em improbidade administrativa, sucedida por alteração legislativa mais favorável; a sistemática do direito administrativo sancionador é incompatível com tal exigência e com a limitação ao biênio previsto no artigo 975, do CPC. A extinção da punibilidade pode ser requerida por simples petição e decretada pelo próprio juízo da execução. No campo da redução das sanções, essa mesma diretriz se põe.
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> A respeito, confira-se a título de exemplo Fernando Fontoura da Silva Cais, Direito processual civil intertemporal, Tese (Doutorado). Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. São Paulo, 2010, p. 11-12.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> “A lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> OSÓRIO, Fábio Medina. Direito administrativo sancionador. São Paulo: RT, 2019. p. 286 (n. 4.1.2).
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> TRF 4ª R., AC 5002295-49.2019.4.04.7003 PR, Terceira Turma, Rel. Des. Fed. Sérgio Renato Tejada Garcia, Julg. 01/09/2020, Publ. PJe 30/09/2020. No mesmo sentido: TRF 4ª R., APL-RN 5053301-12.2016.4.04.7000 PR, Terceira Turma, Relª Desª Fed. Vânia Hack de Almeida, Julg. 08/06/2021, Publ. PJe 08/06/2021.
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> STJ, RMS 37.031, Proc. 2012/0016741-5 SP, Primeira Turma, Relª Minª Regina Helena Costa, Julg. 08/02/2018, DJE 20/02/2018, Pág. 2342. “Tal norma inovou a realidade jurídica até então vigente e alterou o patrimônio jurídico do Servidor que, beneficiado pela anistia, não poderia mais ter sido alcançado pela pena de demissão. Considerando o princípios do Direito Sancionador, a novatio legis in mellius deve retroagir para favorecer o apenado.” STJ, AR 1304 / RJ, Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, Rel. P/ o acórdão Min. Napoleão Nunes Maia Filho, 3a seção, julgado em 14/05/2008, Dje  26/08/2008. No mesmo sentido: STF, 1ª Turma, RE 391.033 AgR, Rel. Min. Eros Grau, julgado em 29/06/2005, DJ 19/08/2005, p. 36; STF, AI 868.090, Rel. Min. Marco Aurélio, julgado em 16/10/2018, publicado em DJe-223 divulgado em 18/10/2018, publicado em19/10/2018 (decisão monocrática em que se manteve acórdão que invocava a retroatividade da norma mais benéfica ao processo administrativo).
<a href="#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a> CARVALHO, Américo A. Taipa de. Sucessão de leis penais. 3. ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2008, p. 133-134.
<a href="#_ftnref7" name="_ftn7">[7]</a> PIOVESAN, Flávia Cristina. Constituição e transformação social: a eficácia das normas constitucionais programáticas e a concretização dos direitos e garantias fundamentais. Revista da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo. São Paulo. n.37. p. 63-74. 1992.
<a href="#_ftnref8" name="_ftn8">[8]</a> Desde que tenha havido juízo positivo de admissibilidade. Veja-se a respeito o seguinte julgado recente: AgInt no AREsp 1596432/RJ, Rel. Min. Assusete Magalhães, Segunda Turma, julgado em 14/06/2021, DJe 17/06/2021.
<a href="#_ftnref9" name="_ftn9">[9]</a> “De acordo com a expressa disposição do art. 462 do CPC [de 1973, equivalente ao art. 493 do CPC de 2015], pode o julgador, de ofício, tomar em consideração a existência de alteração legislativa superveniente que afaste a ilicitude da conduta questionada na ação” (STJ, REsp 813.626/MG, Rel. Min. Eliana Calmon, Segunda Turma, julgado em 01/10/2009, DJe 04/11/2009).
<a href="#_ftnref10" name="_ftn10">[10]</a> Nesse sentido, em relação ao processo penal: BADARÓ, Gustavo Henrique. Processo penal. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016, p. 531. Trata-se, para o autor, de uma sentença de mérito em sentido lato.
<a href="#_ftnref11" name="_ftn11">[11]</a> DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de Direito Processual Civil. II. vol. 7.ed. São Paulo: Malheiros, 2017. p. 371-372 (n. 645).
<a href="#_ftnref12" name="_ftn12">[12]</a> Súmula 611 do STF: “Transitada em julgado a sentença condenatória, compete ao juízo das execuções a aplicação de lei mais benigna".

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JOTA

Inovações aplicariam a fatos anteriores à promulgação da lei para excluir a tipificação de atos que antes seriam ímprobos?

Reforma da lei de improbidade

Inovações aplicariam a fatos anteriores à promulgação da Lei de Improbidade para excluir a tipificação de atos que antes seriam ímprobos?