Eugênio Pacelli

No ano de 2009, logo após a minirreforma do Código de Processo Penal (CPP) do ano anterior (Leis 11.689, 11.690 e 11.719, todas de 2008), e por honroso convite que nos feito pelo então senador Renato Casagrande (hoje governador do Estado do Espírito Santo), compusemos Comissão de Juristas com objetivo bem mais ambicioso: um anteprojeto de novo CPP. Em tempo curto, mas justificado pela recente legislação que já impunha, deu-se ao conhecimento público o PLS 156/09, a cuidar, então, de um novo Código. Aprovado naquela Casa (Senado) também rapidamente, o Projeto foi encaminhado à Câmara dos Deputados no ano de 2010 – PL 8045/10 – e lá se encontra até hoje.
Nem tudo, porém, foi morosidade. No ano seguinte, por exemplo, aprovou-se a Lei 12.403, sobre as medidas cautelares pessoais, e que tinha como base o PL 4208, do longínquo 2001, obra apresentada por Comissão de Juristas comandada pela saudosa professor Ada Pellegrini Grinover. Aliás, também a minirreforma de 2008 se assentava em projetos resultantes daqueles trabalhos do início da década do novo século.
<a href="https://www.jota.info/produtos/poder?utm_source=Banner%20site&amp;utm_medium=Artigos&amp;utm_campaign=CTA_Poder_materias"><img class="size-medium wp-image-292717 aligncenter" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2021/01/jota-pro-poder.jpg" alt="" width="688" height="688" /></a>Como se nota pela cronologia, a gestação de projetos legislativos de largo alcance, caso de toda legislação codificada, é extremamente longa, o que, quando não se ultrapassa os limites do razoável, é até positivo, quando fundado no amadurecimento dialógico das propostas. Mas não parece ser esse o caso do PL 8045/10, embora seja irrecusável o amplo debate que se iniciou a partir de 2009, já ao tempo da elaboração do PLS 156/09. O Senado da República, de fato, recebeu centenas de propostas, encaminhadas à Comissão de Juristas, além da realização de inúmeras audiências públicas para o aprimoramento do projeto. Nada justifica, porém, o longo período de hibernação que se seguiu depois disso.
Mas esse não é o ponto do que se pretende alinhar por aqui. Que todo projeto de lei padece de defeitos de berço já o sabemos, posto que obra humana. Nem cabe alargar o espaço para eleger o que seria defeito, e quem estaria mesmo em condições de apontá-lo. Eles existem como premissas inerentes à dialética que deve enriquecer o debate.
Mas o que logo se revelou, e de modo surpreendente, porém, foi certa resistência ao novo que se propunha. Nem foi tanto a divergência quando ao sistema escolhido, ou à construção dogmática a ele inerente, mas a novidade parece ter incomodado de modo mais sensível.
Destaque-se, ao propósito, a figura do juiz das garantias, criado no PLS 156/09, mantido na Câmara dos Deputados no PL 8045/10, e já introduzido na Lei 13.964/19, embora suspensos seus efeitos por decisão liminar do Ministro Luiz Fux. À margem: por que será que até hoje não se pautou matéria de tão amplo interesse jurídico, se naquela Corte Suprema se verbaliza, sempre que possível, a necessidade de se prestigiar a colegialidade?
O fato é que boa parte da magistratura brasileira, senão a sua maior parte, pareceu profundamente incomodada com a ideia. É que, não bastasse a criação do juiz das garantias, o projeto adequava a fase de instrução à perspectiva acusatória, reservando ao magistrado a relevante missão de depuração e de esclarecimentos das provas produzidas pelas partes. Ciente a Comissão da realidade nacional, propôs-se a vedação expressa da atuação judicial em favor de eventual desleixo ou descuido da acusação no campo probatório, o que, convenhamos, nada tem de extraordinário ou de impertinente.
Na realidade, isso significava e significa apenas que o compromisso do juiz não pode e nem deve ser com a luta pela verdade real. Esse grandioso ônus não pode lhe pesar nas costas. Não por incapacidade pessoal, mas pela complexidade do mundo da vida e pelas dificuldades do conhecimento humano, sobre ser ou não verdadeiro o objeto/conteúdo sobre o qual se debruça e as conclusões que sobre este se lança. Já disse autor de muito maior qualificação que este articulista que a grande questão do processo judicial é a decidibilidade e não a busca pela verdade.
<blockquote class="jota-article__eye">A decisão judicial há de ser a expressão de um convencimento consolidado no processo – certeza – acerca de fatos já ocorridos, e cuja reconstrução se submete a toda sorte de limitações concretas. Assim, toda verdade judicial é apenas processual. </blockquote>
Seu compromisso é com o devido processo, que distribui ônus e faculdades aos responsáveis pela postulação e prova em juízo, a se confrontar com o exercício da ampla defesa, escolha constitucional e não doutrinária ou jurisprudencial. Da acusação e sua eficácia não deve cuidar o juiz. Há outros órgãos do Estado para tais tarefas, e sob as respectivas responsabilidades funcionais e institucionais. Portanto, se a condenação ou a absolvição em juízo corresponderá ao que efetivamente ocorreu antes do processo, jamais saberemos com a certeza de uma tal e inapreensível verdade real.
No que se refere ao tão criticado juiz das garantias, há um ponto de inegável acerto nas impugnações: a cláusula de impedimento do juiz que tivesse atuado na fase de investigação para a atuação no processo, desconsiderava e ainda desconsidera (seus efeitos estão suspensos) por completo a realidade judiciária nacional, povoado de pequenas comarcas, de e com pouquíssimos recursos humanos e materiais. À margem, outra vez: essa observação nada tem que ver com os fundamentos utilizados no Supremo Tribunal Federal (STF) para a suspensão dos efeitos das normas que cuidam do juiz das garantias no chamado pacote anticrime (Lei 13.964/19).
Veja-se, então, que a Lei 13.964/19, também chamada de pacote anticrime, foi cautelosa na matéria, ao condicionar o funcionamento de tais juízos às regras de organização judiciária (art. 3º-E, CPP), de modo a permitir, passe a redundância, a organização de sua implantação em cada Estado, a partir de cada realidade concreta.
Todavia, a citada legislação insistiu no mesmo erro do PLS 156/09, ao dispor que “nas comarcas em que funcionar apenas um juiz, os tribunais criarão um sistema de rodízio de magistrados (art. 3º-D)”. 
Esse modelo, já presente desde o anteprojeto, a despeito de pretender impor-se pela cláusula da isonomia para os jurisdicionados, termina por inviabilizar por completo a persecução penal em tais circunstâncias. E, mais que isso, faz voto de fé na absoluta contaminação do juiz da investigação para a fase de processo. É como se todos os processos penais julgados até hoje carregassem a mácula da parcialidade intrínseca de suas decisões. Parcialidade, obviamente, no sentido apenas da pré vinculação do juiz ao convencimento que firmara por ocasião das cautelares deferidas na fase de investigação. Nessas específicas circunstâncias, portanto.
No ponto, e sempre divergimos no âmbito da Comissão, fica a impressão de que a opção pelo juiz das garantias seria fundamentada, única e principalmente, na convicção ou na máxima probabilidade de contágio entre as fases de tutela cautelar na investigação e o julgamento do processo. Nunca nos convencemos dessa tese.
De outro lado, parece evidente que esse risco sempre estará presente, ou não teríamos tantas e tantas subtrações de competências territoriais, por alegadas - e, às vezes, inexistente – conexão, com distribuição prévia encaminhada como nova fase ou desdobramentos da originária Operação. Será que a quadragésima fase de uma operação cuida mesmo de fatos conexos aos da primeira? 
Segundo a Lei, a distribuição de um processo por dependência a juiz igualmente competente a outro, somente se justificará pela prevenção, caracterizada pela antecedência da prática de ato decisório por um deles, nos termos do art. 83, CPP. Já a conexão, causa de modificação da competência, para fins de reunião de processos distintos, não constitui critério legal de distribuição por dependência. Ou os fatos conexos são tratados em uma mesma denúncia, e aí estará justificada, em princípio, a distribuição dirigida, ou, já havendo acusação, deve-se encaminhar aleatoriamente o segundo processo, até para que outra autoridade judiciária possa se manifestar também sobre sua competência, quando a causa alegada for a de conexão ou continência.
Mas nada disso parece suficiente para se ter como verdade dada, imutável, a possível contaminação do juiz da investigação para a fase de processo, do que resultaria o diagnóstico de imprestabilidade absoluta de todo o processo penal brasileiro de 1988 para cá. Sempre pensamos que o modelo do juiz das garantias é o mais adequado a um modelo acusatório, e com ele também se obterá inegável otimização da prestação jurisdicional penal.
E por falar em sistema acusatório de processo, parece haver convergência quase incontestada sobre ser esse o nosso atual modelo. Bem, se assim é, por que se exige autorização do STF para a instauração de investigação no âmbito da competência originária daquela Corte? Pode-se dizer que aquele Tribunal tem competência para o trancamento de inquérito ou de ação penal pela via da concessão, de ofício, de habeas corpus. Ora, se assim é mesmo, e de fato é, por que razão não se adotar o mesmo procedimento nas demais e todas as instâncias? Não faz sentido, e, mais que isso, o entendimento agride o modelo acusatório.
O Poder Judiciário não tem que autorizar tramitação de investigação. Não tem e nem deve! A persecução penal tem seus agentes definidos na Lei e até na Constituição da República. Da investigação cuidam a Polícia e o Ministério Público. O juiz, nessa fase, é, sempre foi e sempre será, o juiz das garantias individuais. Ele não cuida da boa qualidade da investigação. Não cuida da obtenção de provas que favoreçam a investigação, ainda quando defira medidas dessa natureza.
Obviamente, não tínhamos a pretensão de oferecer síntese do projeto e/ou das reformas processuais penais em curso e em gestação. Por isso focamos em dois únicos pontos, fundamentais: a explicitação da opção por um modelo de corte acusatório, sem avançar para a estrutura do adversarial system, e algumas linhas sobre o perfil do juiz das garantias.
Sempre soubemos que leis novas não movem moinhos; o que pode transformar o Direito é a aceitação de que elas não foram feitas sob medida para as preferências pessoais de quem quer que seja. Em síntese, no ponto, é preciso um pouco de humildade, sem o que a alteridade será sempre aquilo que se afina com a escolha prévia do intérprete.
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sistema penal

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JOTA

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