Breno Vasconcelos

Maria Raphaela Matthiesen

Caio Malpighi

A história do constitucionalismo imbrica com a da tributação quando, em 1215, na Inglaterra, o Rei João I (apelidado de João "Sem-Terra”) foi compelido por seus vassalos, os barões ingleses, a assinar a Magna Carta, por meio da qual o poder do soberano passou a ser constrangido por regras que garantiam direitos aos súditos.
Após uma série de abusos e confiscos sofridos pelo povo inglês, a “Magna ChartaLibertatum” delimitou, enfim, a ação do Poder Público<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>, garantindo prerrogativas individuais, sobretudo, por meio de regras limitadoras ao poder de tributar. A partir de então, nenhum imposto ou taxa poderia ser instituído pelo Rei sem antes ser apresentado e discutido previamente com os contribuintes.<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>
<a href="https://www.jota.info/produtos/tributos?utm_source=Banner%20site&amp;utm_medium=Artigos&amp;utm_campaign=CTA_Tributos_materias" rel="attachment wp-att-291213"><img class="size-medium wp-image-291213 aligncenter" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2021/01/jota-pro-tributos-v2.jpg" alt="" width="300" height="300" /></a>Pode-se afirmar que esse documento histórico foi o modelo institucional que inspirou as Constituições democráticas editadas desde então ao longo da história<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>, em regimes representativos parlamentaristas ou presidencialistas.
A submissão prévia ao Parlamento e a discussão das propostas legislativas são indispensáveis para a gestão eficiente do Estado, afinal, a arrecadação tributária é voltada ao financiamento dos gas­tos públicos. Além disso, garante à sociedade, representada no Congresso, o direito de decidir em que medida será tributada.
Por isso, a análise adequada das propostas de reforma não se limita aos aspectos exclusivamente jurídicos da tributação, como sua conformidade com o texto constitucional, devendo se estender aos dados sobre as contas públicas, dimensionando (i) osgastos por meio dos quais o governo implementa suas políticaspúblicas, que afetam diferentemente regiões, setores e extratos populacionais<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>, e (ii) a expectativa de arrecadação, garantindo a solvência do Estado e o correto desenho da estrutura tributária, que determina a arrecadaçãoeinfluencia a economia real, seja na organização da produção ou na distribuição de renda<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>.
Assistimos atualmente à tramitação, na Câmara dos Deputados, do Projeto de Lei (PL) nº 2.337 de 2021,apresentadopelo Presidente da Repúblicaem 25/6, com base na competência atribuída pelos artigos 61, §1º, II, “b” e 84, inciso III, da Constituição Federal<a href="#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a>, para alterar “a legislação do Imposto sobre a Renda e Proventos de Qualquer Natureza das Pessoas Físicas e das Pessoas Jurídicas e da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido”.
Em que pese qualidades do projeto, os dados expostos à sociedade como fundamento do desenho proposto para tributar a renda aindanão permitem uma avaliação clara dessa equação arrecadação e gasto.
No item 33 da Exposição de Motivos (EM) do PL, foram apresentadas estimativas de impacto na arrecadação tributária decorrentes das alterações veiculadas no projeto.
Em 12/07/2021, contudo, a Receita Federal do Brasil divulgou Nota Executiva<a href="#_ftn7" name="_ftnref7">[7]</a> contendo números diferentes daqueles descritos na Exposição de Motivos. As divergências nas estimativas nos impulsionaram a requerer ao Ministério da Economia, via Lei de Acesso à Informação<a href="#_ftn8" name="_ftnref8">[8]</a> (LAI),acesso aos dados que embasaram os cálculos divulgados na Exposição de Motivos do PL nº 2337/2021.
Antes de expormos o resultado, abrimos parênteses para um breve registro sobre o curso do processo iniciado pelo pedido LAI, que reforça a crítica deste artigo. Requeremos textualmente, ao Ministério da Economia, que fossem “fornecidos os estudos, dados ou base de dados e a metodologia utilizados para as estimativas divulgadas na Exposição de Motivos do PL nº 2337/2021”. O objeto do pedido, portanto, eram as estimativas de impacto do PL. A resposta do Centro de Estudos Tributários e Aduaneiros da RFB<a href="#_ftn9" name="_ftnref9">[9]</a> (Cetad), porém, foi de que “a elaboração de Exposições de Motivos (EM) para PLs, Medidas Provisórias ou Decretos não cabe ao Cetad preparar”.
Apesar dos avanços catalisados pela Lei de Acesso à Informação, percebe-se ainda resistência em setores da Administração Pública de compreender essa mudança de paradigma: “Ao implementar uma lei de acesso à informação (LAI, 12.527/2011), o Estado oficialmente passou da posição de detentor do monopólio de ‘documentos oficiais’ para guardião de ‘informações públicas’”<a href="#_ftn10" name="_ftnref10">[10]</a>.
A negativa, portanto, além de indevida, foi evasiva: respondeu o que não foi perguntado.
<a href="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2021/08/nota-sic-cetad-coest-n-132-de-06-de-agosto-de-2021-1.pdf">Após nosso recurso</a>, finalmente o pedido foi parcialmente respondido pela Nota SIC CETAD/COEST nº 132, de 06 de agosto de 2021, por meio da qual o Cetad informou que a Exposição de Motivos havia sido encaminhada ao Congresso Nacional com os valores desatualizados em relação ao texto do PL, de modo que os valores de impacto financeiro dos quais o requerente se referiu e que constaram indevidamente na EM fizeram referência a uma versão do projeto em que algumas medidas, inicialmente, se basearam em parâmetros de base de incidência, alíquotas, etc, que posteriormente foram alterados<a href="#_ftn11" name="_ftnref11">[11]</a>.
Em outras palavras, a Exposição de Motivos informa ao Congresso dados que não espelham os reais impactos financeiros do Projeto de Lei. Na parte final da Nota SIC CETAD/COEST nº 132, o Cetad afirma que os valores atualizados, informados na Nota Executiva, decorrem de ampliação da isenção sobre lucros e dividendos para as micro e pequenas empresas fora do Simples Nacional, ajustes na base de tributação para englobar os juros sobre o capital próprio submetido à alíquota de 15%, e na tributação do ganho de capital auferido na venda de imóvel adquirido até 31/12/2020.
Nenhum dado adicional, porém, foi fornecido. Não há esclarecimento sobre os termos e a medida em que tais ajustes foram feitos, ou quais eram as bases consideradas para o cálculo da estimativa original, informada na Exposição de Motivos, à qual cabe justamente refletir as premissas para a elaboração da norma e sua apresentação ao Legislativo.
Apesar de serem pequenas as divergências entre os números da EM e da Nota Executiva, elas sinalizam a necessidade de que políticas públicas sejam feitas com mais atenção à transparência, característica nuclear de um processo democrático, permitindo aos contribuintes a análise detida e confiável de proposta legislativa que impacta a solvência do Estado, o desenvolvimento da economia ea redução da desigualdade social.
Afinal, a aprovação de um PL com exposição de motivos obscuras (e aparentemente equivocadas) poderia acarretar vício de consentimento do Congresso Nacional, em eventual aprovação. O tempo da técnica, que demanda análise detida e ponderada sobre o desenho do Estado e do sistema tributário, não pode ser atropelado pelo tempo da política, marcado pela constante urgência.
É preciso que os debates sobre a reforma sejam travados com base em dados e estimativas confiáveis, que permitam a melhor compreensão acerca dos gastos necessários para a implementação de políticas públicas e o respectivo dimensionamento da carga tributária.
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> REALE, Miguel. Lições Preliminares de Direito. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 1976, pp. 263/264.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> Rezava o Art. 12: “Não lançaremos taxas ou tributos, sem o consentimento do conselho geral do reino (communeconciliumregni), a não ser para resgate da nossa pessoa, para armar cavaleiro o nosso filho mais velho e para celebrar, mais uma única vez, o casamento da nossa filha mais velha; e esses tributos não excederão limites razoáveis. De igual maneira se procederá quanto aos impostos da cidade de Londres”. Tradução em CARDOSO, Antonio Manoel Bandeira. A Magna Carta: Conceituação e Antecedentes. Revista de Informação Legislativa. Ano 23. N. 91. Jul/Set. 1986, Disponível em: &lt;<a href="https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/182020/000113791.pdf">https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/182020/000113791.pdf</a>&gt;. Acesso em: 18 de agosto de 2021. p. 140.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a>CARDOSO, Antonio Manoel Bandeira. A Magna Carta: Conceituação e Antecedentes. Revista de Informação Legislativa. Ano 23. N. 91. Jul/Set. 1986, Disponível em: &lt;<a href="https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/182020/000113791.pdf">https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/182020/000113791.pdf</a>&gt;. Acesso em: 18 de agosto de 2021. p. 136.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a>TINOCO, Guilherme. Macroeconomia, In: Guia Brasileiro de Análise de Dados. Brasília, ENAP, 2021, pág. 178.Disponívelem: <a href="https://repositorio.enap.gov.br/bitstream/1/6039/1/Guia%20BR%20de%20Ana%CC%81lise%20de%20Dados.pdf">https://repositorio.enap.gov.br/bitstream/1/6039/1/Guia%20BR%20de%20Ana%CC%81lise%20de%20Dados.pdf</a>, acessado em 23/08/2021.
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a>TINOCO, Guilherme. Macroeconomia, In: Guia Brasileiro de Análise de Dados. Brasília, ENAP, 2021, pág. 178.Disponívelem: <a href="https://repositorio.enap.gov.br/bitstream/1/6039/1/Guia%20BR%20de%20Ana%CC%81lise%20de%20Dados.pdf">https://repositorio.enap.gov.br/bitstream/1/6039/1/Guia%20BR%20de%20Ana%CC%81lise%20de%20Dados.pdf</a>, acessado em 23/08/2021.
<a href="#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a>Art. 61. A iniciativa das leis complementares e ordinárias cabe a qualquer membro ou Comissão da Câmara dos Deputados, do Senado Federal ou do Congresso Nacional, ao Presidente da República, ao Supremo Tribunal Federal, aos Tribunais Superiores, ao Procurador-Geral da República e aos cidadãos, na forma e nos casos previstos nesta Constituição.
II - disponham sobre:
<ol>
<li>
b) organização administrativa e judiciária, matéria tributária e orçamentária, serviços públicos e pessoal da administração dos Territórios;
</li>
</ol>
Art. 84. Compete privativamente ao Presidente da República: (...) III - iniciar o processo legislativo, na forma e nos casos previstos nesta Constituição;
<a href="#_ftnref7" name="_ftn7">[7]</a>NOTA TÉCNICA CETAD/COEST Nº 123, DE 08 DE JULHO DE 2021.
<a href="#_ftnref8" name="_ftn8">[8]</a> Lei nº 12.527/11
<a href="#_ftnref9" name="_ftn9">[9]</a>Nos termos do artigo 57, inciso I, da Portaria nº 284/20, compete ao Cetad gerenciar as atividades relativas à formulação e análise de propostas de política tributária e aduaneira.
<a href="#_ftnref10" name="_ftn10">[10]</a>MICHENER, Gregory, CONTRERAS, Evelyn Contreras, NISKIER, Irene.Working Paper. Da Opacidade à Transparência? - Avaliando os Cinco Anos da Lei de Acesso no Brasil.Disponível em: <a href="https://transparencia.ebape.fgv.br/sites/transparencia.ebape.fgv.br/files/transparencyandopacity_pt.pdf">https://transparencia.ebape.fgv.br/sites/transparencia.ebape.fgv.br/files/transparencyandopacity_pt.pdf</a>, acessado em 25/08/2021.
<a href="#_ftnref11" name="_ftn11">[11]</a>TINOCO, Guilherme. Macroeconomia, In: Guia Brasileiro de Análise de Dados. Brasília, ENAP, 2021, pág. 178.Disponívelem: <a href="https://repositorio.enap.gov.br/bitstream/1/6039/1/Guia%20BR%20de%20Ana%CC%81lise%20de%20Dados.pdf">https://repositorio.enap.gov.br/bitstream/1/6039/1/Guia%20BR%20de%20Ana%CC%81lise%20de%20Dados.pdf</a>, acessado em 23/08/2021.

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JOTA

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