Roger Stiefelmann Leal

<h3>Dois casos, uma solução</h3>
Em outubro de 2002, o presidente do Tribunal de Justiça da Paraíba (<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/tjpb">TJPB</a>), no exercício do cargo de governador, sancionou e publicou a Lei Complementar n° 43, promovendo significativas alterações à Lei de Organização Judiciária daquela unidade federativa. Segundo apurado à época, entre outras medidas adotadas, novos cargos foram criados, feriados forenses foram alterados, Varas foram desativadas, critérios para instituição de comarcas foram definidos.
Tal diploma, conforme os elementos colhidos e expostos pelo Ministério Público Federal perante o <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/superior-tribunal-de-justica">STJ</a><a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>, não decorreu, contudo, de iniciativa do Poder Judiciário nem fora deliberado pela Assembleia Legislativa. Não tramitou perante as esferas judiciais e legislativas, conforme requerido constitucionalmente. A lei era, na verdade, ato próprio e pessoal do desembargador que, em caráter unilateral, decidiu impor tais inovações manu militari à sociedade paraibana. Sua conduta teria importado, para o parquet, “em usurpação de função própria do Presidente do Tribunal de Justiça, a quem cabia privativamente a iniciativa do anteprojeto de Lei Complementar, e da Assembleia Legislativa, a quem cabia, também privativamente, com observância das normas constitucionais pertinentes, aprovar o projeto de Lei Complementar e remetê-lo, para sanção”.
Em Goiás, ao final da década de 1980, um desembargador do Tribunal de Justiça goiano teria, na condição de dirigente classista, instado juízes a dosar o exercício de suas atividades de modo a, segundo relatado, “deixarem de praticar suas tarefas judicantes, negando justiça”. Tal conduta, conforme arguido junto ao STJ<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>, visaria a compelir os membros da associação de magistrados a usar de suas nobres funções institucionais para “pressionar os deputados a votarem a lei de aumento salarial da categoria”, incorrendo, pretensamente, em atividade político-partidária, vedada nos termos do art. 95, parágrafo único, III, da Constituição.
Ambos os casos descritos acima ensejaram a propositura de ações judiciais contra os respectivos desembargadores pela prática de crime de responsabilidade. Foram apresentadas perante o STJ, consoante a competência estabelecida no art. 105, I, “a”, da Constituição Federal. As coincidências, todavia, vão além dessas circunstâncias. As soluções jurídicas que, ao final, prevaleceram também contemplam aspectos comuns.
<h3>A inércia como óbice jurídico</h3>
Muito embora o texto constitucional vincule expressamente o regime dos crimes de responsabilidade a determinadas autoridades, número significativo delas segue sem se sujeitar a essa modalidade de infração. Ficam a salvo, por conseguinte, de relevante forma de controle institucional, em claro descompasso com o projetado pelo constituinte.
A inércia do legislador em definir crimes de responsabilidade para tais autoridades tem assegurado a elas robusta blindagem jurídica. Descaberia, como regra geral, postular em juízo a aplicação extensiva das infrações já tipificadas em relação a outros cargos públicos. Assim, mesmo que as funções exercidas por uns guardem identidade com a missão institucional de outros, não se admite, segundo consolidada jurisprudência<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>, ampliação ao restante dos destinatários a que alude a Constituição. O crime de responsabilidade de “proferir julgamento, quando, por lei, seja suspeito na causa”, aplicável aos ministros do STF, não alcança, por exemplo, ministros de Tribunais Superiores, desembargadores de tribunais estaduais ou conselheiros de Tribunais de Contas.
Ao apreciar o caso do desembargador goiano, esse fundamento foi o único utilizado. Decidiu-se pelo arquivamento do processo justamente em razão de não haver, na legislação, a previsão de crimes de responsabilidade em relação a desembargadores<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>. Na controvérsia envolvendo o desembargador paraibano, empregou-se raciocínio semelhante. Considerou-se “excluída (...) a aplicação analógica do artigo 39 da <a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l1079.htm">Lei 1.079/50</a> aos desembargadores, só alcançados pela lei especial quando presidentes ou no exercício da Presidência” dos respectivos Tribunais<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>. A ressalva quanto àqueles que presidem os Tribunais refere-se, in casu, à acanhada extensão promovida pela <a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l10028.htm">Lei 10.028/2000</a>, sujeitando tais autoridades apenas aos crimes de responsabilidade contra a lei orçamentária (art. 10 da Lei 1.079/50, conhecida como Lei do Impeachment).
Afora esses casos – presidentes de Tribunais em matéria de gestão financeiro-orçamentária –, a falta de disciplina legislativa específica continua bloqueando a responsabilização político-administrativa de membros de tribunais jurisdicionais e cortes de contas. Em que pese a Constituição se refira a crimes de responsabilidade dessas autoridades, a inércia legislativa as tem mantido inatingíveis nesse âmbito.
<h3>Iniciativas frustradas</h3>
A premência em suprir tais déficits normativos tem sido sentida em distintas esferas. Ainda em 2009, em face dos resultados da chamada Operação Pasárgada, levada a efeito pela Polícia Federal, vieram à tona graves <a href="http://www.mpf.mp.br/pgr/noticias-pgr/mpf-denuncia-conselheiros-do-tribunal-de-contas-do-rio-de-janeiro">denúncias contra integrantes do Tribunal de Contas do Estado do Rio de Janeiro</a>. A ausência de regime próprio de responsabilização político-administrativa instigou o legislador a reformar a Constituição estadual para instituir disciplina específica que alcançasse os integrantes daquele órgão. Foi aprovada a Emenda Constitucional n° 40/2009, para dispor sobre as “infrações administrativas de Conselheiro do Tribunal de Contas, sujeitas a julgamento pela Assembleia Legislativa e sancionadas, mesmo na forma tentada, com o afastamento do cargo”.
Não tardou para que ativa associação classista impugnasse a constitucionalidade da reforma estadual. Seu julgamento no STF considerou “as infrações administrativas” de que trata a Emenda n° 40/2009 como genuínos crimes de responsabilidade e, por conseguinte, reconheceu a competência privativa da União para dispor sobre o tema (art. 22, I), nos termos da Súmula n° 722<a href="#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a>. Em suma, ainda que diversos julgados venham asseverando o caráter político-administrativo de tais infrações – como aqueles que apreciam sua compatibilização com os atos de improbidade administrativa (art. 37, § 4°)<a href="#_ftn7" name="_ftnref7">[7]</a> –, continua-se a lhes atribuir índole penal para efeito de determinar a competência da União e impedir a comunidade de cada estado de dispor sobre a responsabilização dos titulares de seus próprios órgãos de poder.
A falta de disciplina legislativa também ensejou impetração perante o STF de mandado de injunção. Arguiu-se, a esse propósito, óbice ao exercício de prerrogativa inerente à cidadania de modo a obter provimento judicial voltado a suprir tal omissão. Muito embora a lei assegure a qualquer cidadão legitimidade para oferecer denúncia por crime de responsabilidade (arts. 14 e 41 da Lei 1.079/50), decidiu-se que “nenhum direito” do impetrante “estaria sendo vedado pela falta de norma regulamentadora”<a href="#_ftn8" name="_ftnref8">[8]</a>, julgando incabível a demanda.
A questão foi, ainda, objeto de iniciativas junto ao Congresso Nacional, como o <a href="https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=501695">Projeto de Lei Complementar n° 54</a>, apresentado em maio de 2011 perante a Câmara dos Deputados. Neste caso, o parlamentar proponente, ao justificar o projeto, já advertira que “a regulamentação do artigo 105, inciso I, alínea ‘a’ da CFRB/88 se faz necessária”, rogando “aos nobres colegas que coloquem a matéria com prioridade de tramitação”. Sem que tenha sido apreciada por qualquer colegiado ou comissão parlamentar, tal proposição acabou arquivada em janeiro de 2015.
<h3>A reforma da Lei do Impeachment</h3>
Em fevereiro deste ano, foi <a href="https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2022/02/11/senado-tera-comissao-de-juristas-para-revisar-lei-do-impeachment">instituída comissão de juristas </a>no âmbito do Senado Federal para atualizar a Lei do Impeachment. O primeiro de seus consideranda expressamente reconhece que a disciplina normativa sobre o tema “apresenta-se defasada em seu cotejo com a Constituição Federal”.
É chegada a hora de eliminar a blindagem que decorre do silêncio legislativo quanto aos crimes de responsabilidade de autoridades como desembargadores e conselheiros de Tribunais de Contas. Cuida-se de necessária atualização legislativa que certamente contará com a atenção dos insignes juristas que, imbuídos do mais elevado espírito público, abraçaram a nobre missão de propor aperfeiçoamentos em matéria tão sensível ao desenvolvimento da democracia brasileira.
<hr />
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Ver, a propósito, APn n°329/PB, Rel. Min. Hamilton Carvalhido, DJ de 23.04.2007.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> Ver, a propósito, Rp n° 8/GO, Rel. Min. Gueiros Leite, DJ de 26.03.1990.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> Ver, entre outros, MS AgRg n° 22.313-9/BA, Rel. Min. Sydney Sanches, DJ de 25.08.1995; MI n° 624/MA, Rel. Min. Menezes Direito, DJ de 28.03.2008; Pet n° 1.104/DF, Rel. Min. Sydney Sanches, DJ de 02.04.2001.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> EMENTA: Representação - Desembargador. Crime de responsabilidade. Embora a Constituição Federal preveja, no seu art. 105, I, “a”, a competência do STJ para processar e julgar Desembargadores por crime de responsabilidade, não há na legislação brasileira a previsão desse crime quanto aos mesmos. Representação arquivada (STJ – Rp n° 8/GO, Rel. Min. Gueiros Leite, DJ de 26.03.1990).
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> APn n°329/PB, Rel. Min. Hamilton Carvalhido, DJ de 23.04.2007; em sentido semelhante REsp n° 1.127.542/RN, Rel. Min. Arnaldo Esteves de Lima, DJ de 12.11.2010.
<a href="#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a> ADI MC-Ref n° 4.190/RJ, Rel. Min. Celso de Mello, DJ de 11.06.2010. O vício de inconstitucionalidade decorreria, ainda segundo o julgado, do preceito constitucional que confia ao STJ – e não à Assembleia Legislativa – a missão de processar e julgar tais Conselheiros em face de crimes de responsabilidade (art. 105, I, “a”).
<a href="#_ftnref7" name="_ftn7">[7]</a> Ver, entre outros, Rcl n° 2.138/DF, Rel. p/ acórdão Min. Gilmar Mendes, DJ de 18.04.2008; RE n° 9.76.566/PA, Rel. Min. Alexandre de Moraes, DJ de 26.09.2019; AC AgRg n° 3.585/RS, Rel. Min. Celso de Mello, DJ de 28.10.2014; Pet AgRg n° 3.240/DF, Rel. p/acórdão Min. Roberto Barroso, DJ de 22.08.2018.
<a href="#_ftnref8" name="_ftn8">[8]</a> MI n° 624/MA, Rel. Min. Menezes Direito, DJ de 28.03.2008.

legislativo

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JOTA

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