Ana Beatriz Fernandes Peres

No mundo moderno, a noção de garantia está intrinsecamente ligada ao patrimônio do devedor. Desde o Direito Romano se faz possível a utilização da propriedade como forma de garantia. A fidúcia tem origem em Roma e, no Brasil, ganhou força no século 20, ao se configurar como alternativa às garantias tradicionais elencadas pelo Código Civil de 1916, que previa como modalidades de garantia os direitos de natureza pessoal consistentes na fiança e no aval, e os direitos reais sobre coisa alheia, in casu, a penhora, a hipoteca e a anticrese.
No entanto, os direitos reais de garantia existentes até então pareciam não mais suprir as demandas das relações econômicas do século 20. O custo e a morosidade para execução das garantias tradicionais culminaram em sua crise.
A dificuldade na recuperação do crédito levou ao aumento da remuneração de juros e a retração no oferecimento do crédito.
No âmbito imobiliário, a demora na execução das garantias hipotecárias, a insegurança jurídica ocasionada pela judicialização das demandas, a alta taxa de inadimplência e a escassez de crédito, levaram à crise do Sistema Financeiro da Habitação. Em resposta, sobreveio a <a href="https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9514.htm">Lei 9.514/97</a>, que instituiu a alienação fiduciária em garantia de bens imóveis e o Sistema financeiro Imobiliário.
A alienação fiduciária em garantia de bem imóvel, conceitua-se pelo negócio jurídico no qual o devedor, ou fiduciante, com o escopo de garantir sua obrigação, contrata a transferência ao credor, ou fiduciário, da propriedade resolúvel de coisa imóvel<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>.
Nesse contexto, Restiffe Neto<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a> salienta que “a fidúcia como garantia dominial oferece dúplice proteção legal na esfera dos interesses jurídicos de cada parte contratante”.
Essa dupla garantia é de extrema relevância para os objetivos econômicos e sociais pretendidos pelo legislador. A proteção aos contratantes é estabelecida na legislação de maneira equilibrada, pois, se por um lado o fiduciário utiliza a condição resolutiva da propriedade como segurança para receber o crédito, por outro lado, garante-se ao devedor fiduciante adimplente a fruição útil do bem e a garantia real de “retransferência ou reversão futura”, quando quitada a dívida e resolvida a propriedade.
Tal equilíbrio objetiva o desenvolvimento do mercado de crédito imobiliário, resguardando direitos, tanto dos financiadores como dos financiados.
Nesta senda, chega ao debate o <a href="https://www.camara.leg.br/propostas-legislativas/2309053">PL 4188/2021</a>, denominado Marco Legal das Garantias Imobiliárias. Se aprovado, uma das leis que será alterada é a Lei 9.514/97.
O projeto amplia as possibilidades de se oferecer um imóvel como garantia de operações de crédito, prevendo a utilização de uma garantia em mais de um contrato, além da constituição de garantia em prol de terceiro.
Quem defende o texto<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a> argumenta potenciais ganhos na concessão de crédito, com expectativa de melhores condições para seus tomadores, possibilitando que estes capitalizem sem pagar juros exorbitantes de outras modalidades de empréstimo pessoal, como o cartão de crédito e o cheque especial, já que os juros cobrados nos empréstimos com garantia de imóvel são menores.
O projeto pretende também mitigar a subutilização das garantias, que se dá, na sistemática atual, por sua característica acessória ao negócio, que gera sua subutilização. Atualmente, cada garantia pode viabilizar apenas uma operação de crédito, independentemente de o valor do crédito ser consideravelmente menor que o valor da garantia.
A dimensão do mercado que o PL pretende atingir é de aproximadamente R$ 10 trilhões, o que representa grande potencial de crescimento na operação de crédito para pessoas físicas, e que, segundo o Banco Central, em março de 2021, representava cerca de R$ 750 milhões.<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>
Quem tece ressalvas ao projeto teme o superendividamento do consumidor e, ainda, aponta para a discussão sobre a penhorabilidade do bem de família dado voluntariamente em garantia.
Entretanto, Fábio Rocha, presidente da Comissão de Crédito imobiliário e Garantia do Instituto Brasileiro de Direito Imobiliário (Ibradim),<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a> afirma que a forma de proteção do hipossuficiente em relação ao seu superendividamento não deve se dar pela nova lei, pois “já temos diversos microssistemas de proteção ao hipossuficiente, como o código de Defesa do Consumidor e o Estatuto do Idoso [...]. A ideia do PL é facilitar o uso da garantia para dar acesso ao crédito”<a href="#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a>. O especialista lembra ainda que o Banco Central já possui regra geral para o CGI<a href="#_ftn7" name="_ftnref7">[7]</a>, que limita o empréstimo a 60% do valor do imóvel, evitando que as pessoas “deem um passo maior que a perna”<a href="#_ftn8" name="_ftnref8">[8]</a>.
A proteção ao crédito é um dos pilares fundamentais da ordem econômica, pois possibilita o bom fluxo de relações entre agentes do mercado e investimentos, ampliando a produção, o volume de negócios e a concessão de crédito. Ela se torna, portanto, uma variante de peso a ser considerada nas celebrações de negócios jurídicos, tanto no que concerne ao custo para obtenção e concessão do crédito, quanto ao risco envolvido para a respectiva recuperação.
Assim, da mesma forma que o resguardo ao patrimônio do consumidor é um direito constitucional, o engessamento das garantias aumenta o risco na concessão do crédito, gerando o aumento da remuneração de juros cobrados pelos bancos e a redução da linha de crédito, impactando negativamente o consumidor, que vê reduzida sua possibilidade de compra em relação ao investimento em imóveis.
Resta frisar que o PL 4188/2021 foi aprovado na Câmara dos Deputados e aguarda apreciação no Senado, logo, seu texto ainda pode sofrer alterações.
<hr />
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Art. 22 da Lei 9.514/97. Acesso em &lt; https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9514.htm&gt;.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> RESTIFFE NETO, Paulo. Propriedade fiduciária Imóvel. 1 Ed. 2009, Edição Malheiros p. 68.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> BEM DE FAMÍLIA: o que muda com o PL das garantias. Instituto Brasileiro de Direito Imobiliário – IBRADIM. São Paulo, 13 de dez. de 2022. IBRADIM Editora, pg. 12.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> Vide Exposição de Motivos do Projeto de Lei EMI nº 242/2021-ME, anexo ao PL nº 4188/2021. Disponível em &lt;https://www.camara.leg.br/propostas-legislativas/2309053&gt;. Acesso em 6 de março de 2023.
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> Segundo informações obtidas perante o Instituto Brasileiro de Direito imobiliário.
<a href="#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a> BEM DE FAMÍLIA: o que muda com o PL das garantias. Instituto Brasileiro de Direito Imobiliário – IBRADIM. São Paulo, 13 de dez. de 2022. IBRADIM Editora, pg. 12.
<a href="#_ftnref7" name="_ftn7">[7]</a> Crédito com Garantia de Imóveis para Pessoa Física.
<a href="#_ftnref8" name="_ftn8">[8]</a> BEM DE FAMÍLIA: o que muda com o PL das garantias. Instituto Brasileiro de Direito Imobiliário – IBRADIM. São Paulo, 13 de dez. de 2022. IBRADIM Editora, pg. 12.

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JOTA

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