Sergio L. B. F. Reis

Desde o seu surgimento a Covid-19 tem gerado debates nas mais diversas áreas do conhecimento, e não poderia ser diferente no âmbito do direito.  Na medida em que surge a discussão acerca do uso de licenças compulsórias das patentes afetas à Covid-19, a discussão atrai para os profissionais interessados na propriedade intelectual das mais diversas vertentes.
No âmbito do JOTA, foram publicados dois artigos bastante interessantes sobre o tema, o artigo “Suspensão de direitos de propriedade intelectual é curandeirismo jurídico”, de Ricardo Nunes<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a> e o artigo das advogadas Julia Guimarães Olival e Paula Beatriz Duarte Celano intitulado “Considerações sobre o licenciamento compulsório de patentes no combate à Covid-19”<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>, sem prejuízo de outros artigos e matérias sobre o tema.  Nesta oportunidade, respeitando as opiniões dos autores acima mencionados, pretendo trazer uma outra perspectiva para questão, trazendo algumas questões afetas ao direito patentário e à defesa da concorrência no contexto do direito internacional.
<a href="https://www.jota.info/produtos/saude?utm_source=Banner%20site&amp;utm_medium=Artigos&amp;utm_campaign=CTA_Saude_materias"><img class="aligncenter wp-image-292716 size-full" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2021/01/jota-pro-saude.jpg" alt="" width="688" height="688" /></a>Uma primeira questão que merece destaque diz respeito aos dois prismas que podem fundamentar à licença compulsória de uma patente.  No primeiro prisma, está o interesse público no qual o interesse coletivo é um fundamento para obrigar o licenciamento de uma tecnologia a fim de permitir que terceiros venham a fabricar um produto protegido por uma patente.
No Brasil a discussão sempre esteve mais focada no mercado de medicamentos, como, por exemplo, nas ameaças de licenças compulsórias para medicamentos que compunham o coquetel de tratamento da AIDS por conta dos preços praticados.  Em outros países, como nos Estados Unidos, a ideia de interesse público tem sido mais ampla envolvendo também tecnologias para fins militares, para prevenção a fraudes bancárias, dentre outros temas.
A força e a fragilidade deste prisma estão em seu fundamento no interesse público, um termo que pode assumir os mais diversos significados conforme os valores, os momentos e as forças sociais de uma sociedade, o que acaba por inviabilizar um consenso acerca do seu sentido na esfera internacional, como pode ser observado nas discussões relativas ao TRIPS (Trade-Related Aspects of Intellectual Property Rights Agreement) acordo celebrado no âmbito da Organização Mundial do Comércio.
O segundo fundamento possível para a licença compulsória está no âmbito da defesa da concorrência em que a autoridade antitruste, tanto em sua função preventiva, ligada à análise de atos de concentração, como também na sua função repressiva, associada a condutas anticoncorrenciais, poderá utilizar a licença compulsória como um instrumento jurídico voltado a evitar o abuso do poder de mercado.
Em termos práticos, na hipótese de uma fusão de duas empresas de medicamentos, caso estas venham a deter um poder de mercado excessivo em dado segmento de mercado, a autoridade antitruste poderá determinar a alienação de um ativo/patente, ou utilizar a licença compulsória a fim de que outras empresas atuantes no setor possam produzir determinados produtos e concorrer com a titular da patente.
No que tange às condutas anticoncorrenciais, haveria a hipótese de um medicamento protegido por uma patente em que o titular abusa do seu poder de mercado, seja através da práticas de preços abusivos, ou através da adoção de medidas que prejudiquem a concorrência<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>, como, inviabilizar a entrada de produtos genéricos concorrentes.  Em termos práticos, a autoridade antitruste brasileira, o CADE (Conselho Administrativo de Defesa Econômica) tem evitado usar a solução da licença compulsória em suas decisões, optando por outros remédios estruturais e comportamentais que tem um efeito concorrencial semelhante à licença.
Uma segunda questão neste tema, diz respeito ao conceito de monopólio, e mais uma vez, a propriedade intelectual e o direito antitruste irão trazer conceitos diferentes que precisarão ser harmonizados.
Na propriedade industrial o monopólio, ou o direito de exclusivo, de uma patente está associado a ideia de que o inventor terá a exclusividade sobre aquela invenção por um determinado tempo.  No setor de medicamentos, a patente poderia proteger um princípio ativo voltado ao tratamento de uma doença que somente poderá ser comercializado pelo titular da patente ou por um licenciado, tal direito é delineado no artigo 42 da Lei de Propriedade Industrial, Lei nº 9.279/96.
Por sua vez, a ideia de monopólio no direito antitruste remonta as suas origens, no Sherman Act norte-americano de 1890, em que as práticas abusivas de certos agentes, os trustees, estavam associados a monopólios de setores econômicos.  A doutrina concorrencial indica que em situações de monopólio existe o risco de que este monopolista, na medida em que detenha um significativo poder de mercado, pode vir a abusar deste.  Em outras palavras, o monopolista poderia aumentar preços e adotar outras condutas contrárias a livre concorrência.
Na harmonização desses conceitos será observado que o monopólio conferido pela patente dirá respeito tão somente a um princípio ativo e a forma de produção deste, existindo a possibilidade desta patente coexistir e concorrer com outras patentes voltadas a proteção de outras tecnologias/produtos num mesmo segmento de mercado.
Por exemplo, para o tratamento de doenças gastrointestinais, existem 5 princípios ativos patenteados, produzidos por cinco empresas diferentes, tais princípios ativos possuem diferenças farmocinéticas mas não terapêuticas significativas.  Ou seja, apesar do monopólio conferido pela patente, os titulares dessas patentes, isoladamente, não tem o monopólio do mercado e irão concorrer entre si.  Logicamente, a questão será diferente quando houver somente uma única patente de um princípio ativo para um tratamento terapêutico, aí haverá o monopólio também na acepção concorrencial.
Considerando os dois pontos tratados anteriormente, quais sejam, os fundamentos para a licença compulsória, o interesse público ou o abuso de poder de mercado, assim como os conceitos de monopólio, cabe estender esse debate para o âmbito internacional, considerando principalmente as questões relativas à propriedade intelectual e Covid-19 ocorridos na ONU (Organização das Nações Unidas), OMC (Organização Mundial do Comércio) e OMS (Organização Mundial da Saúde).
O primeiro destaque diz respeito a complexidade tecnológica afeta a certas inovações no setor de medicamentos.  Em que pese o fato de uma tecnologia ter o seu direito de exclusivo relativizado e poder vir a ser produzido por terceiros, existem questões complexas a serem enfrentadas para conseguir reproduzir um produto tecnologicamente sofisticado em países fora do eixo produtor de medicamentos.
O pedido de patente traz informações que, em tese, permitiriam a reprodução da tecnologia/produto, mas para tanto é necessário o acesso a equipamentos e matéria-prima, e muitas vezes um sofisticado know-how que demanda um estágio avançado da produção de medicamentos.  No mercado de vacinas observa-se que vacinas como aquelas voltadas à Covid-19 possuem um grau alto de complexidade e não se vislumbra a sua reprodutibilidade sem um efetivo apoio técnico do titular da tecnologia e equipamentos sofisticados e mão de obra qualificada.
O segundo destaque é que a licença compulsória é a permissão para que um terceiro venha a produzir aquela tecnologia patenteada, ou seja, a patente não deixa de existir, mas tão somente haverá a perspectiva de um ou mais agentes produzindo aquele produto.  Estes agentes irão produzir e comercializar, recolhendo royalties para o titular da patente, normalmente este royalty é arbitrado por um órgão competente dentro da jurisdição que estabeleceu a licença, em um organismo internacional arbitrar um valor seria uma questão bastante complexa considerando a diversidade de países membros e de produtores que serão envolvidos.
Por fim, como terceiro destaque, vislumbra-se que apesar da dificuldade de efetivação de uma licença compulsória no âmbito internacional, houve um posicionamento coletivo demonstrando uma grande preocupação com a pandemia e seus efeitos, abrindo espaço para o reconhecimento público inerente à Covid-19 e permitindo que os países, dentro de suas jurisdições, implementem licenças compulsórias caso estas sejam possíveis e necessárias sem receio de retaliações na esfera internacional.
Diante do exposto, é necessária uma reflexão em relação a sociedade que desejamos e a como a comunidade internacional pode construir institutos que efetivamente estabeleçam uma busca coletiva para os problemas que nos assolam.
Os mecanismos de licença compulsória concebidos se mostraram tímidos e insuficientes para debelar a pandemia, tornando necessária uma reflexão acerca de sua revisão a fim de que a proteção e a imunização de todos os cidadãos do planeta seja algo possível e não se perca na retórica.  Cada vida perdida é uma triste lembrança de que o sistema precisa ser aprimorado, a boa notícia é que os primeiros passos estão sendo dados, mas é necessário andar mais rápido a fim de estancar essa crise e nos prepararmos para outras que possam vir a ocorrer.
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/suspensao-de-direitos-de-propriedade-intelectual-e-curandeirismo-juridico-12052021
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/regulacao-e-novas-tecnologias/consideracoes-sobre-o-licenciamento-compulsorio-de-patentes-no-combate-a-covid-19-01052020
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> A título exemplificativo, cabe menção ao julgamento no CADE do Caso Eli Lilly, Processo Administrativo nº 08012.011508/2007-91.

covid-19

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JOTA

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