Josiara Diniz

Leandro Rodrigues

Luciano Dornello Manso

Paulo Corrêa

As ferramentas da contabilidade governamental são capazes de evidenciar o que aconteceu ao longo da execução do orçamento, desde que as normas legalmente constituídas pelos tomadores de decisão não congestionem a capacidade dessa ciência de contar a história por trás dos números. A qualidade da democracia passa pelo esforço do accountability governamental que mira o aperfeiçoamento da gestão.
Nesse contexto há que se considerar a gravidade da liminar concedida pela ministra do Supremo Tribunal Federal (STF) Rosa Weber nas Arguições de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 850, 851 e 854, que atesta a existência de um sistema anônimo de execução das despesas<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>. Se tais informações não estão disponíveis de forma íntegra e inteligível para agentes, usuários dos serviços e órgãos de controle, a análise dos custos, da eficiência ou da eficácia da prestação de serviço é incerta.
<a href="https://www.jota.info/produtos/poder?utm_source=Banner%20site&amp;utm_medium=Artigos&amp;utm_campaign=CTA_Poder_materias"><img class="size-medium wp-image-292717 aligncenter" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2021/01/jota-pro-poder.jpg" alt="" width="688" height="688" /></a>
Isso contraria, portanto, os princípios da contabilidade governamental que sedimentam o caminho para transparência, rastreabilidade e evidenciação da execução orçamentária com o fim de mensurar a gestão financeira e patrimonial da administração pública.
Tal poluição impede o exercício da accountability vertical e horizontal, impondo incertezas sobre a qualidade da deliberação pública. A Norma Brasileira de Contabilidade (NBC) é clara: governos e entidades devem prestar contas àqueles que proveem os seus recursos<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>.
A divulgação de informações não financeiras e de informações financeiras das atividades de prestação de serviços, desempenho e/ou os resultados durante o exercício fornecem insumos para avaliações da economicidade, da eficiência e da eficácia das operações da entidade. A divulgação dessas informações é necessária para que o governo ou outra entidade do setor público cumpra com suas obrigações de prestação de contas e responsabilização (accountability) – isto é, justificar a utilização dos recursos captados da sociedade ou em nome dela. Decisões de doadores sobre a alocação de recursos para entidades e programas específicos são também tomadas com base em informação sobre os resultados da prestação de serviços durante o período e os objetivos da prestação de serviços no futuro (pelo menos em parte).
Logo, faz sentido o juízo da relatora das ADPFs ao citar que o Congresso Nacional instituiu um rito anônimo de execução das despesas em flagrante descompasso com conceito difundido pela norma brasileira. O volume bilionário mobilizado pelo relator-geral da Lei Orçamentária Anual (LOA), classificadas como Resultado Primário nº 9 ou RP 9<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>, remontam a R$ 18,5 bilhões. Embora o artigo 70 da Constituição Federal determine a fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial da União por parte do Congresso Nacional, na prática, nota-se uma comodidade do Parlamento sobre o orçamento tendo em vista que o atual modelo garante protagonismo aos legisladores.
Entretanto, os órgãos de controles têm demonstrado a não conformidade desse estado de coisas. Para o Tribunal de Contas da União (TCU), a "novidade legislativa" (<a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/lei/L13957.htm">Lei 13.957/2019</a>) carece de uniformização de procedimentos para a distribuição ou alocação de despesas<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>. Além disso, ao contrário do que ocorre com as emendas individuais, a RP 9 sequer é mapeada pelo Sistema Integrado de Planejamento e Orçamento (Siop), por exemplo.
A gestão orçamentária de um montante bilionário nas mãos de um só congressista contribui em que medida para redução das desigualdades inter-regionais segundo critérios populacionais, como determina o §7º do artigo 165 da Constituição Federal?
De fato, não somos nós, autores, nem este ensaio que irão buscar responder essa demanda. Entretanto, diante de tal oportunidade de reflexão, poderíamos também apontar como saída fácil, embora de engenharia política difícil, a obrigatoriedade de execução das emendas apreciadas e votadas no âmbito das comissões temáticas da Comissão Mista de Orçamento (CMO), cabendo ao relator a governança orçamentária. A ele seria atribuída a coordenação e intervenção legislativa na proposta orçamentária, zelando pela consistência global da peça produzida, inclusive por meio da sua atuação na correção de erros e omissões (BIJOS, 2021).
A hipótese desse novo modelo é a redução dos custos transacionais, já que a descentralização criaria novos incentivos aos novos atores (membros das comissões temáticas) da peça orçamentária, promovendo um reequilíbrio entre as escolhas públicas (alocações), outrossim produzindo mais informações para a coletividade em confronto com "sistemas anônimos de alocação de emendas parlamentares" como o RP 9.
É importante lembrar que esse identificador foi criado para ajudar na apuração do superávit primário em 2014. Antes da criação do RP, as programações aprovadas pelo Congresso e sancionadas pelo presidente da República eram executadas sem distinção entre aquelas que foram previstas originalmente no Projeto de Lei encaminhado pelo Executivo, e as que foram incluídas ou acrescidas pelo Congresso.
A <a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2013/lei/l12919.htm">Lei 12.919/2013</a> trouxe marcadores de 0 a 9. Destacam-se o RP 6 para congressistas, que tem seu valor limitado a 1,2% da Receita Corrente Líquida do ano anterior; o RP 7 de Bancada Estadual, com limite de 1% da RCL; RP 8 de Comissão Permanente e o RP 9. Cabe sublinhar que o objetivo da criação do RP era destacar a mensuração do resultado primário daqueles que são somente despesas financeiras. Posteriormente, foram criados os demais marcadores para ter o "carimbo" do gerente do recurso – que hoje é camuflado no RP 9, já que todos sabem que o relator-geral não é o agente público responsável por aquela alocação.
Ainda sobre o RP 9, a ministra Rosa Weber considerou que os beneficiários das despesas são ocultos, assim como são silentes a origem e fundamentalmente os incentivos para as decisões alocativas.
Sublinhe-se que o Manual de Contabilidade do Governo<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a> considera que o registro de atos e fatos contábeis deve proporcionar os vários tipos de dados financeiros para a planificação, análise e seleção de programas, elaboração de orçamentos, administração eficaz nos diversos níveis de governo e controle de custos e atividades em relação aos planos aprovados.
À luz desses conceitos há lastro na crítica da ministra, tendo em vista que a rubrica orçamentária classificada como RP 9 empodera o relator-geral, que realiza alocações de forma indiscriminada beneficiando congressistas que são invisíveis ao controle público.
Se considerarmos que essa movimentação se aproxima de uma alocação unilateral, pessoal, arbitrária e sem transparência de recursos públicos, podemos fazer inferências de que tais decisões alocativas foram tomadas à guisa da prevenção de riscos e correção de rotas a fim de evitar o desequilíbrio das contas públicas? Se a resposta é sim, há um flagrante conflito com a Lei de Responsabilidade Fiscal.
Esta consideração contrasta com o posicionamento<a href="#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a> do atual presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL). Lira, durante o 9º Fórum Jurídico Brasileiro em Lisboa, afirmou à CNN Brasil que as emendas de relator são muito mais transparentes do que as emendas de programação dos ministérios.
Segundo o presidente da Câmara, as emendas de relator têm indicações claras para onde vão, quais são os valores pagos e com acompanhamento da fiscalização de órgãos de controle.
A nota técnica<a href="#_ftn7" name="_ftnref7">[7]</a> nº 63/2021 dá azo a argumentação de Lira quando atesta que a identificação das programações incluídas ou acrescidas pelo relator-geral permite rastreabilidade e o acompanhamento da execução orçamentária e financeira dessas programações no Sistema Integrado de Administração Financeira do Governo Federal (SIAFI).
Todavia o grau de publicidade de informações fiscais é insuficiente para elevar a responsividade democrática. Relembrando que a contabilidade governamental dá conta de todas as atividades econômicas do Estado. Ou seja, os graus de responsividade, transparência e accountability constituem preocupações constantes na busca pela legitimação das democracias representativas (PEDERIVA, RENNÓ, 2015).
Nossas inferências sobre a conexão da contabilidade governamental apontam também para o processo orçamentário orientado para resultados, a fim de diminuir os custos transacionais e a conectividade eleitoral das emendas RP 9.
Este é um momento propício para a academia, a coletividade e os próprios agentes públicos apontarem a direção de uma melhoria da qualidade das informações (principalmente sobre políticas públicas e programações) para que tenhamos um processo alocativo exposto à luz do sol e não anônimo.
<hr />
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Disponível em <a href="https://www.conjur.com.br/dl/adpf-orcamento-secreto.pdf">https://www.conjur.com.br/dl/adpf-orcamento-secreto.pdf</a>. Acessado em 16 nov 2021.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> Disponível em <a href="https://www1.cfc.org.br/sisweb/SRE/docs/NBCTSPEC.pdf">https://www1.cfc.org.br/sisweb/SRE/docs/NBCTSPEC.pdf</a>. Acessado em 16 nov 2021.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> Para fins de esclarecimento a Resolução nº 01/2006 do Congresso Nacional prevê a possibilidade de serem apresentadas emendas por quatro tipos de autores: parlamentares, bancadas estaduais, comissões permanentes e relatores da lei orçamentária.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> Disponível em <a href="https://portal.tcu.gov.br/data/files/53/85/6B/3E/7CE5A710ABFA7E97F18818A8/CG2020%20-%20PARECER%20PREVIO%20FINAL%20-%20versao%2029jun2021.pdf">https://portal.tcu.gov.br/data/files/53/85/6B/3E/7CE5A710ABFA7E97F18818A8/CG2020%20-%20PARECER%20PREVIO%20FINAL%20-%20versao%2029jun2021.pdf</a>. Acessado em 16 nov 2021
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> Disponível em <a href="https://www.tesourotransparente.gov.br/publicacoes/manual-de-contabilidade-aplicada-ao-setor-publico-mcasp/2021/26">https://www.tesourotransparente.gov.br/publicacoes/manual-de-contabilidade-aplicada-ao-setor-publico-mcasp/2021/26</a>. Acessado em 16 nov 2021
<a href="#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a> Disponível em <a href="https://www.camara.leg.br/noticias/827376-camara-vai-ampliar-transparencia-das-emendas-do-relator-do-orcamento-diz-lira/">https://www.camara.leg.br/noticias/827376-camara-vai-ampliar-transparencia-das-emendas-do-relator-do-orcamento-diz-lira/</a>. Acessado em 16 nov 2021
<a href="#_ftnref7" name="_ftn7">[7]</a> Disponível em <a href="https://www2.camara.leg.br/orcamento-da-uniao/estudos/2021/nota-tecnica-63-de-2021_-emendas-de-relator_-subsidios-aspectos-orcamentarios-_-versao-preliminar">https://www2.camara.leg.br/orcamento-da-uniao/estudos/2021/nota-tecnica-63-de-2021_-emendas-de-relator_-subsidios-aspectos-orcamentarios-_-versao-preliminar</a>. Acessado em 16 nov 2021

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JOTA

Falta de transparência e rastreabilidade das emendas de relator fere frontalmente princípios da contabilidade governamental

Reflexões sobre a contabilidade governamental e o orçamento secreto

Falta de transparência e rastreabilidade do chamado orçamento secreto fere frontalmente princípios da contabilidade governamental