Cláudio Cerqueira Bastos Netto

No dia 29 de novembro, o Tribunal Constitucional Plurinacional (TCP), a mais alta instância do Judiciário boliviano, proferiu decisão que garante aos governantes de seu país o direito de se reelegeram por quantas vezes desejarem. Alegou-se que a reeleição sem limites é garantida pela Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH), também conhecida como Pacto de San José da Costa Rica, em seu artigo 23. 
A decisão é extremamente controversa, dado que permite que Evo Morales, o atual presidente da Bolívia que cumpre seu terceiro mandato à frente do cargo, se candidate a um quarto mandato consecutivo. Note-se que seu partido político, o Movimiento al Socialismo (MAS), já havia tentado promover uma reforma da Constituição do país (Constitución Política del Estado/2009) que autorizaria Morales a concorrer a um quarto mandato, em fevereiro de 2016, por meio de um referendo. Contudo, a votação popular rechaçou a alteração constitucional proposta, por 51% dos votos. O texto constitucional prevê mandato de 5 anos, sendo possível reeleição de maneira contínua por apenas uma vez (artigos 156, 168, 285.II e 288).
A recente decisão do TCP, por um lado, acerta ao descrever como deve se pautar a interação entre ordenamento interno e ordenamento internacional. O TCP afirma que o Estado boliviano está obrigado a aplicar os tratados e instrumentos internacionais a que se vinculou, sendo estes aplicados de forma preferencial sobre a própria Constituição da Bolívia. Ainda, afirma que o Estado deve dar cumprimento às normas que concedem proteção mais favorável ao indivíduo, previstas pelos referidos instrumentos.
Para fundamentar a decisão, é citado o princípio pro persona (também chamado de pro homine), que é assim definido pelo TCP:
el principio pro homine, determina que se debe acudir a la norma más amplia, o a la interpretación más extensiva, cuando se trata de reconocer derechos; e inversamente, cuando se trata de establecer restricciones o limitaciones a su ejercicio. En ese entendido, debe buscarse el sentido interpretativo que optimice más un derecho fundamental, a contrario sensu, deben dejarse de lado las interpretaciones restrictivas, orientadas a negar su efectividad (SCP 2477/2012 de 28 de noviembre).
Esse princípio possui duas dimensões: 1) a preferência de fontes, e 2) a preferência interpretativa. De acordo com a primeira, diante de múltiplas normas, sejam ambas de DIDH ou uma de DIDH e outra de direito interno, que tratem do mesmo direito, aplica-se a norma mais benéfica ao titular do direito protegido. Já a segunda impõe que, diante de múltiplas interpretações possíveis de uma mesma fonte jurídica, aplica-se a interpretação mais favorável à pessoa, de modo a adotar a interpretação mais extensiva para reconhecer direitos protegidos e a interpretação mais restritiva quando se trata de restringir direitos.
Cumpre ressaltar que a interpretação dada pelo Tribunal boliviano ao artigo 23 da CADH é questionável. Há de se refletir se a proteção mais ampla suscitada pelo TCP de fato existe no direito internacional. A CADH garante aos governantes o direito de buscarem reeleição por quantas vezes desejarem?
O TCP cita alguns julgados da Corte IDH para corroborar sua tese. No entanto, não se pode consubstanciar no direito internacional o alcance atribuído ao direito previsto no artigo 23 – de que um presidente pode ser reeleito por quantas vezes desejar. Um grande número de casos é citado, mas estes não preveem a reeleição sem limites de mandatários. Os casos sequer tratam da questão da reeleição, mas apenas de normas gerais sobre a proteção de direitos políticos, e admitem a possibilidade de tais direitos sofrerem restrições.
Note-se que a decisão do TCP não cita um importante caso sobre direitos políticos, que é o caso José Efraín Ríos Montt vs. Guatemala<a class="sdfootnoteanc" href="#sdfootnote1sym" name="sdfootnote1anc">1</a>. Trata-se de denúncia submetida à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) pelo ex-presidente de facto da Guatemala, que governou o país entre 1982 e 1983, período no qual foi suspensa a vigência da Constituição guatemalteca. Ele alega que foram violados seus direitos protegidos pela CADH, em seus artigos 8 (garantias judiciais), 25 (proteção judicial), e 32 (imparcialidade na administração da justiça), por força dos atos de autoridades públicas guatemaltecas que declararam inadmissível sua candidatura à presidência da referida república na década de 1990. Tal inadmissibilidade foi baseada no artigo 186.a da Constituição política então vigente na Guatemala, que disciplinava a eleição presidencial e tinha a seguinte redação: 
[N]o podrán optar a ese cargo,
a. El caudillo ni los jefes de un golpe de Estado, revolución armada o movimiento similar, que haya alterado el orden constitucional, ni quienes como consecuencia de tales hechos asuman la Jefatura de Gobierno...
A CIDH, ao examinar a admissibilidade da denúncia submetida por Ríos Montt ao Sistema Interamericano, entende que a disposição da Constituição guatemalteca não vulnera qualquer direito protegido pela CADH, levando em conta que a referida restrição ao direito se insere dentro de um contexto não-discriminatório, no qual se aplica o princípio da margem de apreciação nacional:
§24 [...] considera la Comisión que el contexto del derecho constitucional guatemalteco e internacional en que se ubica esta condición de inelegibilidad es la dimensión apropiada para el análisis de la aplicabilidad de la Convención en general, y de sus artículos 23 y 32 al caso sub-judice, y de la cual puede surgir el margen de apreciación permitido por el derecho internacional.
A CIDH referencia o princípio da margem de apreciação nacional, que impõe que o Estado possuirá certa margem para definir o alcance de certos direitos humanos no seu ordenamento interno, desde que os padrões internacionais de proteção sejam respeitados. Esse princípio decorre do fato de a “jurisdição internacional [ser] subsidiária e complementária”, como descreve a própria Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH)<a class="sdfootnoteanc" href="#sdfootnote2sym" name="sdfootnote2anc">2</a>. Constata-se que, nesse caso, entendeu-se que o impedimento a uma nova candidatura por parte do ex-presidente era uma restrição legítima aos direitos políticos, e não desrespeitava qualquer standard internacional.
Ainda, devemos ressaltar que o artigo 29.c da CADH dispõe que: “Nenhuma disposição desta Convenção pode ser interpretada no sentido de excluir outros direitos e garantias que são inerentes ao ser humano ou que decorrem da forma democrática representativa de governo”. Ademais, o artigo 32.2 prevê que “os direitos de cada pessoa são limitados pelos direitos dos demais, pela segurança de todos e pelas justas exigências do bem comum, numa sociedade democrática”.
Pode-se dizer que a posição do TCP desrespeita a CADH, ao ir de encontro à posição vencedora do referendo realizado em 2016, sendo a participação popular meio idôneo para ditar as regras do processo eleitoral em uma sociedade democrática.
Na decisão do TCP, não se aplica o princípio pro persona da forma adequada, sendo este utilizado como argumento normativo destinado a paralisar a aplicação de disposições da Constituição da Bolívia que preveem a reeleição apenas por uma vez, de forma contínua, para os cargos de presidente, vice-presidente, e para os membros do Legislativo, e demais cargos eletivos de autoridades do Executivo. Efetivamente, permitiu-se um sistema de reeleição sem limites, por uma interpretação da CADH que não possui precedentes.
Entretanto, não existe no direito internacional qualquer norma que garanta a um governante o direito a reeleição ilimitada. A decisão do TCP efetivamente descreve uma obrigação internacional que não existe, acarretando a negação de aplicação da própria Constituição do país. É para evitar construções jurídicas como esta que previamente alertamos que não se pode esvaziar o conceito do princípio pro persona<a class="sdfootnoteanc" href="#sdfootnote3sym" name="sdfootnote3anc">3</a>. O princípio possui pressupostos teóricos e conceituais específicos, como se nota pelas suas dimensões de preferência de fontes e preferência interpretativa, e não significa apenas conceder uma interpretação extensiva aos dispositivos dos tratados de direitos humanos.
Ademais, apesar de serem citados diversos julgados, a interpretação dada à CADH pelo TCP é incongruente com o entendimento da Corte IDH e da CIDH, o que demonstra certa anomalia. Não é ideal que um Estado se vincule a diplomas internacionais e depois os interprete da forma que entender conveniente, sem que se busque de fato entender o sentido da obrigação internacional contraída<a class="sdfootnoteanc" href="#sdfootnote4sym" name="sdfootnote4anc">4</a>.
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<div id="sdfootnote1">
<a class="sdfootnotesym" href="#sdfootnote1anc" name="sdfootnote1sym">1</a> Comissão Interamericana de Direitos Humanos, Relatório nº. 30/93, caso nº. 10.804, José Efraín Montt vs. Guatemala, 12 de outubro de 1993, parágrafo 24, disponível em http://www.cidh.oas.org/annualrep/93span/cap.III.guatemala10.804.htm, acesso em 22/03/2017.
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<div id="sdfootnote2">
<a class="sdfootnotesym" href="#sdfootnote2anc" name="sdfootnote2sym">2</a> Corte IDH. Caso Perozo y otros vs. Venezuela, sentencia del 28 de enero de 2009 (excepciones preliminares, fondo, reparaciones y costas), §64.
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<div id="sdfootnote3">
<a class="sdfootnotesym" href="#sdfootnote3anc" name="sdfootnote3sym">3</a> BASTOS NETTO, Cláudio Cerqueira. Princípio pro persona: conceito, aplicação e análise de casos da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Rio de Janeiro: dissertação de mestrado pela UERJ, 2017.
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<div id="sdfootnote4">
<a class="sdfootnotesym" href="#sdfootnote4anc" name="sdfootnote4sym">4</a> André de Carvalho Ramos critica a postura brasileira nesse aspecto. Entendemos que a crítica se aplica não só ao Brasil, mas a diversos países, e, nesse caso específico, ao entendimento adotado na decisão do TCP. Ramos entende que “no Brasil, essa modalidade fez surgir uma nova espécie de norma: os tratados internacionais nacionais. O modo de criação dessa espécie tipicamente brasileira é o seguinte: o Brasil ratifica tratados e reconhece a jurisdição de órgãos internacionais encarregados de interpretá-los; porém, subsequentemente, o Judiciário nacional continua a interpretar tais tratados nacionalmente, sem qualquer remissão ou lembrança da jurisprudência dos órgãos internacionais que os interpretam”.
RAMOS, André de Carvalho. Pluralidade das ordens jurídicas: uma nova perspectiva na relação entre o Direito Internacional e o Direito Constitucional, Revista da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, v. 106/107,jan./dez. 2011/2012, p. 511. Disponível em: http://www.revistas.usp.br/rfdusp/article/viewFile/67955/70563
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JOTA

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