Bárbara Sena

Gustavo Kaercher Loureiro

Essas linhas pretendem responder à seguinte questão: é juridicamente possível à Administração Pública vetar a participação de empresas sob recuperação judicial em leilões de concessões de serviços públicos de transmissão de energia elétrica?
Atenção: não se está perguntando se é juridicamente necessária tal exclusão mas se é, juridicamente, possível, a juízo do regulador, introduzir essa restrição (são situações diferentes: neste último caso busca-se uma norma proibitiva, tout court; no primeiro caso, busca-se espaço para exercício da discricionariedade, balizada pelos conhecidos princípios jurídicos da isonomia, razoabilidade, proporcionalidade etc.).
<div id="sdr-inbound-pro-poder-stf-stj-empresas-5fdfd59734051017cef9" role="main"></div>
<script type="text/javascript" src="https://d335luupugsy2.cloudfront.net/js/rdstation-forms/stable/rdstation-forms.min.js"></script> 
<script type="text/javascript"> new RDStationForms('sdr-inbound-pro-poder-stf-stj-empresas-5fdfd59734051017cef9', 'UA-53687336-1').createForm();</script>
Em torno do problema diferentes valores de sinais opostos estão em jogo. De um lado, admitir-se a participação de licitantes nessa condição amplia o universo dos possíveis participantes do certame (com as vantagens que daí decorrem) e prestigia o instituto da recuperação judicial, em sua missão de preservar a empresa e sua atividade econômica (com todos os benefícios que daí advêm).
De outro lado, porém, há que se garantir a adequada prestação do serviço público que é objeto de uma delegação via contrato, mais precisamente, via concessão de serviço público, negócio jurídico administrativo dotado de características especiais em relação àqueles do direito privado e mesmo dos contratos administrativos comuns regidos pela Lei 8.666/1993 (como prazos, investimentos etc. cf. adiante).
Para começar a refletir sobre o problema, convém evidenciar algumas características da recuperação judicial. Primeiro: a recuperação é reação à uma evidente e declarada situação de dificuldade econômico-financeira, algo que, ao menos prima facie, projeta “sombras” sobre a capacidade da empresa de se engajar devidamente em um empreendimento do porte de uma concessão de transmissão.
Segundo: trata-se de um procedimento que orienta a vida da empresa (suas atividades, seus contratos etc.) em base aos interesses dos credores e sob a batuta do Poder Judiciário. Isso pode ter o efeito de alijar ou limitar severamente as competências regulatórias e diretivas das instâncias administrativas.
Terceiro: a figura da recuperação não se aplica a empresas estatais (art. 2º, I da Lei 11.101). Parte da doutrina introduz uma dissociação na hipótese de incidência da norma de exceção, ao postular que o dispositivo só colhe as estatais prestadoras de serviços públicos, as quais necessitariam de um tratamento diferente daquele da ordinária recuperação judicial.
Embora discutível essa interpretação (que não pretendemos problematizar), ela lança luz, exatamente, para o nosso ponto: no mínimo, indica que o campo primordial da recuperação judicial não é o da esfera das pessoas e, sobretudo, atividades públicas (onde se situam, com nuances, as delegações de execução de serviços públicos<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>). Feitas essas rápidas observações, podemos começar o exame a que nos propomos.
Antes de mais nada, nunca é demais salientar a especificidade das concessões de serviços públicos em contraste com os contratos administrativos ditos “comuns”, regidos pela Lei 8.666/1993.
Sem entrar em discussões sobre o cabimento (e a medida do cabimento) da aplicação da LGL às concessõees regidas pela Lei 8.987/1995, fato é que concessões (de serviços públicos de transmissão) apresentam algumas características notáveis que devem ser levadas em conta para refletir sobre nosso problema:
(i) o longo prazo de vigência (até 35 anos);
(ii) o objeto indisponível e a absoluta preeminência da obrigação de garantir, em todo o tempo do contrato, serviço adequado, não apenas em face do contratante público mas também, e especialmente, em face do universo indeterminado e sempre crescente dos consumidores e usuários do serviço (art. 6º da Lei 8.987/1995, densificado pelas demais normas, sobretudo aquelas provenientes do regulador);
(iii) a presença de ingentes investimentos em infraestruturas, notadamente no início do contrato (investimentos que têm a característica de serem sunk costs);
(iv) a sujeição do contrato a inúmeros riscos e incertezas ao longo do tempo de sua execução, dado o largo período da concessão e as exigências sempre mutáveis do serviço público, o que requer flexibilidade para negociações, alterações de planos e metas etc. (caráter relacional do contrato);
(v) a necessidade de o contrato estar submetido a uma especialíssima disciplina jurídica e de fiscalização, a bem da satisfação da exigência de serviço adequado (a “regulação”, por parte da respectiva agência reguladora).
Não por último (vi) os contratos de concessão têm feito uso, com sucesso, de uma particular modalidade de garantia, os step in rights. 
Essas circunstâncias todas, e em particular a última, não bem se conciliam com os mecanismos, procedimentos e controles próprios da recuperação judicial. Nela, o regulador corre o risco de ver reduzidas as suas funções e controles; os investimentos ficam submetidos a incertezas e os financiadores podem se ver privados dos mecanismos de efetivação de suas garantias. Tudo isso em evidente prejuízo da viabilidade e sucesso das concessões e, afinal, da garantia de prestação de serviço público adequado.
<blockquote class="jota-article__eye">Prosseguindo, encontramos um obstáculo ainda mais agudo e pontual: a legislação especificamente setorial veda a aplicação da figura da recuperação juidicial aos concessionários de serviços públicos de energia elétrica. </blockquote>
Está lá no art. 18 que “[n]ão se aplicam às concessionárias de serviços públicos de energia elétrica os regimes de recuperação judicial e extrajudicial previstos na Lei nº 11.101, de 9 de fevereiro de 2005, salvo posteriormente à extinção da concessão.”
No lugar da figura da recuperação entram outros institutos como a intervenção, a construção e execução de plano de recuperação próprio, a transferência da concessão e, no limite, a encampação – remédio que deve estar sempre disponível ao poder concedente.
Em todos esses mecanismos, é decisiva a participação ativa e orientadora do regulador. Ora, se sujeitos concessionários não podem entrar em recuperação judicial, qual é a lógica de se admitir potenciais concessionários em tal situação? Uma vez vencida a licitação por uma empresa em recuperação judicial o que ocorre? Finge-se que tal circunstância não está presente com o artifício de uma SPE? Qual seria a racionalidade disso?
Depois: embora não se deva presumir, também não se pode ignorar o risco de exacerbação de eventuais comportamentos oportunistas de empresas em declarada dificuldade econômico-financeira.
Assim, por exemplo, poderia haver mitigação relevante do princípio da concorrência se a empresa em recuperação oferecesse grande deságio para, antes mesmo da entrada em operação comercial do empreendimento, atuar oportunisticamente para ceder o contrato de concessão e lucrar com o ágio dessa transferência.
Numa situação como essa, há tendência de que o concessionário se coloque em situações que ensejam a declaração de caducidade da concessão, fazendo com que o leilão perca a sua eficácia e haja, como consequência, desperdício de recursos públicos, além da inviabilização de um serviço de interesse sistêmico.
O forte interesse sistêmico, a depender do contexto, também poderia deixar o Poder Concedente numa situação de refém da situação (hold up), além de produzir litígios intermináveis. Ou, ainda, se a infraestrutura for efetivamente entregue, poderia seguir-se pleito de reequilíbrio diante da comprometida situação operacional da empresa face ao lance predatório ofertado.
Por essas e outras circunstâncias, é imperioso levar a sério a competência que possui a Administração licitante, de selecionar em base a critérios objetivos, mas seguros, os potenciais candidatos à prestação de serviços públicos.
A Lei nº 8.987/95 é especial em relação a LGL. E a LGC permite que os editais disciplinem requisitos mínimos para que as empresas prestem um serviço adequado; entre esses requisitos, poderá se encaixar a idoneidade econômico-financeira das empresas (arts. 6 e 18, II e V da Lei 8.987/95), excluindo-se aquelas que se encontram em recuperação judicial.
É certo, por outro lado, que a exigência dessa condição de participação demanda avaliação sob os auspícios do princípio da proporcionalidade, razoabilidade e outros.
Em síntese: não parece haver óbice – muito antes pelo contrário – para que a Administração Pública não admita candidatos em situação de recuperação judicial em certames de concessão de serviços públicos de transmissão de energia elétrica.
&nbsp;
<hr />
O episódio 48 do podcast Sem Precedentes faz uma análise sobre a atuação do Supremo Tribunal Federal (STF) em 2020 e mostra o que esperar em 2021. Ouça:
https://youtu.be/-hMj5lwWXEE
<hr />
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Atividades reservadas.

energia

https://images.jota.info/wp-content/uploads/2021/09/copy-of-jota-logo-high-cmyk.jpeg

JOTA

É imperioso levar a sério a competência que possui a Administração licitante de selecionar os potenciais candidatos

Recuperação judicial e licitação de concessões de transmissão de energia elétrica

É imperioso levar a sério a competência que possui a Administração licitante de selecionar os potenciais candidatos