Jeniffer Gomes da Silva

Em decisão recente, da 5ª Vara Empresarial do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, foi deferido o pedido de processamento de recuperação judicial da Associação Sociedade Brasileira de Instrução (ASBI) – mantenedora da Universidade Candido Mendes – e do Instituto Candido Mendes, ambos agentes econômicos constituídos sob a forma de associação civil sem fim lucrativo. O caso tem sido considerado por especialistas como polêmico.<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>
Como se sabe, a Lei nº 11.101 de 2005 destina a recuperação judicial, a recuperação extrajudicial e a falência ao “empresário” e à “sociedade empresária”.<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a> Por meio de uma análise sistemática dos artigos 966, 967, 982 e 983 do Código Civil (CC), considera-se empresário aquele que exerce profissionalmente uma atividade econômica organizada para a produção ou circulação de bens ou de serviços, sendo obrigatória a inscrição do empresário no Registro Público de Empresas Mercantis.
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Além disso, constata-se que a sociedade empresária possui como objeto o exercício de atividade própria de empresário sujeito a registro e possui as formas de constituição estabelecidas na legislação, dentre as quais não se inclui a associação civil sem fim lucrativo.
Outra previsão legal de relevância para o tema sob análise é o art. 47 da Lei nº 11.101/2005. Trata-se de reconhecimento do valor social da empresa em funcionamento, a qual possibilita, dentre outros, a manutenção do emprego, considerado como “elemento de paz social”.<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a> Veja-se que a lei utiliza a expressão “preservação da empresa” e não “preservação da sociedade empresária”.<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>
Tal fato leva ao questionamento, então, se um agente econômico, constituído por forma diversa de uma sociedade empresária e das elencadas no rol de restrições do art. 2º da Lei nº 11.101/2005, pode ou não requerer o deferimento de pedido de recuperação judicial. Afinal, uma associação civil sem fins lucrativos possui a prerrogativa de utilizar o instituto da recuperação judicial?
A indagação tem sido respondida de forma negativa em diversas decisões de tribunais estaduais brasileiros.<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a> A doutrina, por sua vez, se mostra mais flexível. Luiz Roberto Ayoub e Cássio Cavalli observam que o sistema concursal é reservado para aqueles que se enquadram na qualificação de empresários, de modo que “os não empresários são excluídos, apenas porque em um dado momento do passado essa divisão foi afirmada. No entanto, se observado o contexto econômico atual, não há nenhuma razão que justifique a opção de excluir quem não for empresário do sistema concursal da LRF.”<a href="#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a>
Para além de considerar injustificável a exclusão dos não empresários do sistema concursal, defende-se, na doutrina, a possibilidade de uma interpretação ampla do art. 1º da Lei nº 11.101/2005. Desse modo, desde que demonstrado pela associação civil sem fins lucrativos a existência dos requisitos de uma empresa, nos termos do art. 966 do CC, seria possível o benefício da recuperação judicial.<a href="#_ftn7" name="_ftnref7">[7]</a>
Essa matéria ganhou notoriedade, recentemente, com a apresentação de pedido de recuperação judicial pela ASBI e pelo Instituto Candido Mendes, associações sem fins lucrativos. Na fundamentação da decisão que deferiu esse pedido, evidenciou-se a incontestável relevância social da Candido Mendes, bem como a ausência de impedimento direto nos arts. 1º e 2º da Lei nº 11.101/2005 ao benefício de recuperação judicial às associações, apesar de não se enquadrarem formalmente no regime jurídico das sociedades empresárias. Como esperado por muitos especialistas, o Ministério Público interpôs recurso em face dessa decisão e obteve o pedido de efeito suspensivo indeferido.
Nesse cenário, o caso da Candido Mendes revela diversas facetas do regime de insolvência. É inegável que a aplicação da Lei nº 11.101/2005 ainda enfrenta a necessidade de profundas interpretações pelo Poder Judiciário a fim de se amoldar a realidade à previsão legal. Isso porque o dado normativo deve ser levado às últimas consequências interpretativas possíveis, tendo por base valores e princípios constitucionais. Ressalvando-se, sempre, que a norma, por si só, não é suficiente. Em outros termos, o dado normativo não dá conta de tudo, ou seja, é inviável ao legislador prever tudo. Todavia, o nosso ordenamento é uno e complexo a fim de possibilitar ao intérprete, muitas vezes, o alcance de uma solução satisfatória e razoável.
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Não se pode perder de vista, ainda, a necessidade de reflexão quanto ao regime de insolvência civil, que seria, em tese, o caminho natural para os agentes econômicos não qualificados como empresários ou sociedades empresárias. É evidente que, devido ao ineficaz desenvolvimento desse regime, as entidades “fujam” dessa alternativa.<a href="#_ftn8" name="_ftnref8">[8]</a> Não se pode negar, todavia, a relevância social desses agentes econômicos, que foram, inclusive, destacados na Recomendação n. 63 do CNJ e no PL n. 1.397/2020.
Especificamente em relação ao PL n. 1.397/2020, a extensão das regras emergenciais aos agentes econômicos tem suscitado debates acerca da possibilidade de inclusão dessas entidades no regime recuperacional durante essa fase transitória. Não parece ter sido essa a intenção do legislador, pois, se assim o fosse, haveria uma alteração temporária do art. 1º da Lei nº 11.101/2005. É pertinente mencionar, ainda, a ausência de previsão nesse sentido no Projeto de Lei nº 6.229/2005, há anos em trâmite na Câmara dos Deputados, cujo objetivo é reformar a Lei nº 11.101/2005 – ainda que tal ausência seja passível de críticas.
Além dos problemas relacionados ao sistema de insolvência, o caso da Universidade Candido Mendes revela, sobretudo, a incontestável relevância e função social das associações sem fins lucrativos que exercem atividade econômica equiparada à de uma sociedade empresária. Esses agentes econômicos geram a manutenção de empregos e renda, possuem expressiva função no mercado, visto que promovem a produção e a circulação de bens e serviços, os quais repercutem em toda a cadeia econômica.
Como exemplo de outras associações que possuem autêntica função social, especialmente no atual cenário de crise sanitária causada pela COVID-19, tem-se as Santas Casas, constituídas sob a forma de associações sem fins lucrativos. A denotar a elevada importância das atividades desses hospitais filantrópicos, cumpre destacar a Lei nº 13.995 de 5 de maio do corrente ano, a qual trata do auxílio econômico emergencial de 2 bilhões de reais da União a esses hospitais para o combate ao novo coronavírus.
Dessa forma, o caso da Universidade Candido Mendes e o atual cenário de crise mostram a necessidade de inclusão dessa discussão, referente aos agentes econômicos e a legitimidade para o requerimento de uma reestruturação organizada, na pauta legislativa.<a href="#_ftn9" name="_ftnref9">[9]</a> Enquanto isso não ocorre, torna-se essencial a análise cautelosa e fundamentada de cada caso concreto. Deve-se evitar, sempre, a criação de um ambiente de insegurança jurídica.
Sendo assim, o caso Candido Mendes revela o (ainda) atual desenvolvimento da recuperação judicial no direito brasileiro e desmascara problemas que necessitam de reflexões para soluções.<a href="#_ftnref1" name="_ftn1"></a>
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[1] “Recuperação judicial da Cândido Mendes pode gerar polêmica.” Valor econômico. Disponível em: &lt; <a href="https://valor.globo.com/empresas/noticia/2020/05/19/recuperacao-judicial-da-candido-mendes-pode-gerar-polemica.ghtml">https://valor.globo.com/empresas/noticia/2020/05/19/recuperacao-judicial-da-candido-mendes-pode-gerar-polemica.ghtml</a>&gt;.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> “Art. 1º Esta Lei disciplina a recuperação judicial, a recuperação extrajudicial e a falência do empresário e da sociedade empresária, doravante referidos simplesmente como devedor.”
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> BEZERRA FILHO, Manoel Justino. Lei de recuperação de empresas e falência: lei 11.101/2005 comentada artigo por artigo [livro eletrônico]. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> A observação é feita por Manoel Justino Bezerra Filho, em parecer apresentado no processo de recuperação judicial da mantenedora da Universidade Candido Mendes. (TJRJ. Processo n. 0093754-90.2020.8.19.0001. Fls. 88, p. 7).
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> Nesse sentido: (i) TJRJ. AC nº 0440514-05.2012.8.19.0001. Relatora: Des. Inês da Trindade Chaves de Melo. 6ª Câmara Cível. Julgamento em 30.07.2014; (ii) TJSP. AC nº 0001832-74.2013.8.26.0564. Relator: Des. Aroldo Telles. 2ª Câmara Reservada de Direito. Julgamento em 20.05.2013; (iii) TJSP. AC nº 0010036-39.2011.8.26.0189. Relator: Des. Tasso Duarte de Melo. 2ª Câmara Reservada de Direito. Julgamento em 25.03.2013 e (iv) TJSP. AI nº 0095846-06.2007.8.26.0000. Relator: Des. Pereira Calças. Julgamento em 25.04.2007.
<a href="#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a> AYOUB, Luiz Roberto; CAVALLI, Cássio. A construção jurisprudencial da recuperação judicial de empresas [livro eletrônico]. 3 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2017.
<a href="#_ftnref7" name="_ftn7">[7]</a> BORGES, Ana Luisa Porto. A recuperação judicial das associações. Pessoas jurídicas de direito privado com fins não econômicos: uma análise sobre a possibilidade jurídica. Revista de direito empresarial. nov.-dez./2015, v. 12, pp. 141-159.
<a href="#_ftnref8" name="_ftn8">[8]</a> BUCAR, Daniel. “O Regime Jurídico Transitório da Recuperação Judicial, Extrajudicial e Falência (PL 1.397/20)” Migalhas. Disponível em: &lt;<a href="https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-de-responsabilidade-civil/327600/o-regime-juridico-transitorio-da-recuperacao-judicial-extrajudicial-e-falencia-pl-1397-00-uma-breve-analise-e-dois-aprimoramentos-necessarios">https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-de-responsabilidade-civil/327600/o-regime-juridico-transitorio-da-recuperacao-judicial-extrajudicial-e-falencia-pl-1397-00-uma-breve-analise-e-dois-aprimoramentos-necessarios</a>&gt;.
<a href="#_ftnref9" name="_ftn9">[9]</a> Eduardo Takemi destaca que o melhor caminho para uma reestruturação organizada dos agentes econômicos seria a reforma legislativa. (“Recuperação judicial da Cândido Mendes pode gerar polêmica.” Valor econômico. Disponível em: &lt; <a href="https://valor.globo.com/empresas/noticia/2020/05/19/recuperacao-judicial-da-candido-mendes-pode-gerar-polemica.ghtml">https://valor.globo.com/empresas/noticia/2020/05/19/recuperacao-judicial-da-candido-mendes-pode-gerar-polemica.ghtml</a>&gt;).

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Breves notas à luz do caso da Universidade Candido Mendes

Recuperação judicial e as associações civis sem fins lucrativos

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