Alexandre Dantas

Lívia Lino

Douglas Cavalcanti

Isabela e Danielle são as mães de Maria Luiza e Henrique, que nasceram em maio de 2022 fruto de inseminação caseira. Ao longo da gestação, para além de todas as preocupações usuais decorrentes da gravidez, o casal lidou com a ansiedade de não saber se conseguiriam registrar seus filhos no nome das duas mães.
Após muita pesquisa, tendo em vista a falta de informações acessíveis para casos como o delas, a família precisou percorrer um caminho árduo e custoso no Poder Judiciário. Para garantir o registro da dupla maternidade, ambas afirmaram, em depoimento dado, que “foi muito desgastante, principalmente para a gente que estava em uma gestação gemelar, que o risco de nascer antecipadamente é muito alto, enfim, a gente não tinha isso em nossas mãos e dava muita angústia (...) é muito frustrante, é triste, você fica naquela ansiedade, durante a gravidez eu não deixava de pensar isso um dia”.
Infelizmente, o caso relatado não é isolado. Ciente da existência de entraves ao reconhecimento pleno da dupla maternidade/paternidade, a Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexos (ABGLT) apresentou a <a href="https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=6291383">ADPF 899</a> no Supremo Tribunal Federal (<a href="https://www.jota.info/stf">STF</a>) – espaço que na prática tem sido o meio viável para as conquistas da comunidade LGBTI+[1] no país.
A ADPF 899 almeja que seja reconhecida a tese de que a utilização de marcadores de gênero dos genitores nos diversos registros da Administração Pública é inconstitucional por violar a dignidade da pessoa humana (artigo 1º, III da Constituição de 1988), a igualdade (artigo 5º, caput e inciso I), a proteção da família em seus diferentes arranjos (artigo 226), bem como a extinção do preconceito de sexo (artigo 3º da Constituição, estendido aqui ao preconceito decorrente de gênero e orientação sexual).
Em síntese, pretende que sejam excluídas as expressões “pai” e “mãe”, para que sejam incluídas “em todos os seus formulários, procedimentos e bancos de dados, mantidos para quaisquer finalidades e que exijam dados referentes à filiação, as expressões “Filiação 1” e “Filiação 2”, ou similares que não denotem o gênero dos genitores, nos campos destinados ao registro ou indicação de parentalidade”.
Desde o ajuizamento da medida, já se manifestaram nos autos algumas entidades contrárias ao deferimento da ação, como a Advocacia-Geral da União (<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/agu">AGU</a>) e o Instituto Brasileiro de Direito e Religião. Este último afirmou que “o pedido em questão é sobremaneira desproporcional, haja vista que lança mão da medida de controle de constitucionalidade mais remota, e, ainda, visando tratar uma questão já plenamente resolvida no ordenamento pátrio. É uma proposta tão absurda quanto tentar 'matar uma barata com um lança-mísseis'”.
Diferentemente de tais manifestações, em caráter contributivo ao debate, é possível entender que há espaço para atuação do STF diante do ajuizamento da ADPF 899, porque as normativas atualmente existentes não possibilitam o reconhecimento da filiação LGBT nos casos de reprodução caseira, bem como porque persevera a existência de requerimentos, documentos e registros com demarcadores de gênero no âmbito da Administração Pública em suas diversas instâncias, para além do DNV e do registro civil.
O Provimento nº 63/2017 da Corregedoria-Geral da União (CGU), que institui modelos únicos de certidão de nascimento, de casamento e de óbito, permite a indicação da dupla filiação LGBT apenas na hipótese de reprodução assistida, a qual compreende as técnicas de fertilização in vitro e inseminação artificial, deixando de fora as demais formas de reprodução, tal qual a caseira.
Dessa forma, atualmente, casais que optam por métodos distintos da reprodução assistida – que é uma das hipóteses mais custosas financeiramente — não estão amparados por regramento que autorize o registro da criança contemplando a dupla maternidade ou paternidade. E, para estas famílias, resta apenas o caminho do Poder Judiciário.
Este foi o caso de Isabela e Danielle, que tiveram de batalhar no Judiciário durante a gestação para garantir o registro das duas mães na DNV. A importância do amparo judicial antes do nascimento da criança se justifica pelo fato de que a DNV é o documento que desencadeia todos os demais registros da criança, inclusive a Certidão de Nascimento.
A entrada no Judiciário pode ser incerta e subjetiva, sem a garantia automática de um desfecho favorável e ainda com risco de ocorrência de homofobia institucional. Então, para além dos custos financeiros, o estresse da incerteza causado às mães no período de gestação pode gerar questões para saúde e bem-estar da família e das crianças.
No caso, a sentença favorável só foi obtida na 35ª semana da gestação, quando o juiz do caso reconheceu que as mães não poderiam ser penalizadas pela ausência de disposição legal que resguarde os casos de inseminação caseira.
Mesmo com união estável consolidada desde 2018, para a obtenção da sentença favorável as duas tiveram de comprovar com fotos e documentos a solidez do relacionamento, sendo necessário montar fotos clássicas de casais heterossexuais – como beijando a barriga – como forma de validação do momento de gestação vivido perante o Judiciário.
O fato de casais LGBTI+ ainda precisarem acionar o Judiciário para a tutela dos direitos de cidadania básicos dos seus filhos, em si, já é uma violação que merece reparo pelo STF. Especialmente quando se percebe que é justamente a hipótese de reprodução menos custosa financeiramente que é desamparada, gerando um cenário de discriminação às parcelas mais vulneráveis. O caso de Isabela e Danielle não é isolado. A advogada Tatiane Velloso compartilha relatos e trechos de sentença de casos similares ao relatado aqui por todo o país em seu perfil no Instagram.
Merece destaque que, no caso da população LGBTI+, há uma inerente dificuldade para produção de dados. Assim, por não ser factível quantificar a totalidade dos casais que passaram pela mesma situação, os exemplos aqui trazidos servem ao propósito de ilustrar as barreiras que inúmeras famílias LGBTI+ ainda sofrem no Brasil na simples tentativa de fazer constar nos documentos públicos a correta filiação.
Tais dificuldades, o que demarca a existência de inconstitucionalidade sistêmica a ser reparada, ficam também evidenciadas pela permanência de diversos documentos, formulários e requerimentos, no âmbito das distintas esferas federativas da Administração Pública, contendo a denominação estrita de “mãe x pai”. Trata-se de formulários que exigem o preenchimento de informações para possibilitar o acesso a direitos essenciais básicos ao cidadão, como saúde e educação.
A título de exemplo, o cadastro para educação infantil no município de Búzios (RJ) requer o nome completo do pai e da mãe, bem como suas ocupações; o modelo de autorização de viagem para o exterior de menor brasileiro emitido pelo Ministério das Relações Exteriores impossibilita, por exemplo, a indicação de que o menor possui dois pais ou duas mães; a exigência do nome e grau de instrução do pai e da mãe também são exigidos no requerimento de pré-matrícula no Instituto Federal do Ceará; o formulário principal de cadastramento no Cadastro Único, que possibilita o acesso a programas sociais, também requer a apresentação dos nomes do pai e da mãe.
Ou seja, é possível identificar diferentes registros expedidos pela Administração Pública que ignoram a realidade e as demandas das famílias LGBTI+. Persevera, ao contrário do afirmado nos pedidos de amicus curiae e pela AGU, uma situação que demanda envolvimento dos órgãos públicos e atuação constitucional por meio do controle concentrado, a fim de reparar a realidade existente, ainda excludente.
Ainda que se afirme que os modelos de registro civil e de DNV estejam adaptados ao que se pleiteia na ADPF 899, a grande parte dos formulários utilizados nos diferentes órgãos públicos ainda não estão adequados às famílias LGBTI+. Esta violação constitucional ocorre tanto porque o acesso aos serviços pode ficar prejudicado ou impedido, diante da inviabilidade de preenchimento das informações tal como solicitadas, quanto porque o simples fato de constar a dicotomia estrita da filiação em “mãe x pai” fere o direito à identidade e ao reconhecimento desses grupos, ainda vistos às margens das decisões político- institucionais.
Deixar de exigir a alteração dos formulários e requerimentos, mantendo-os tal como atualmente identificados, significa perpetuar, ainda que para alguns somente de maneira simbólica, o histórico de preconceitos e discriminações que distancia a população LGBTI+ da concretização do princípio da igualdade.
No momento em que se reconhece o direito de as famílias LGBTI+ fazerem constar seus nomes nos formulários e demais documentos que exijam informações de seus filhos e sua filiação, sem distinção de gênero e sem um processo desgastante, ratifica-se o princípio da igualdade enquanto direito ao reconhecimento. A inserção destes grupos minoritários na vivência social, de forma dissociada de sentimentos de exclusão e de procedimentos, por vezes, vexatórios e demorados, é dever estatal.
No contexto de documentos e registros públicos, cabe mencionar ainda a importância que o fiel registro da experiência individual possui em termos socioculturais para o respeito à diversidade. Ainda que seja possível o registro de uma mãe no campo denominado “pai”, e vice-versa, deve-se ter em mente que termos e conceitos organizam sujeitos, produzem realidades e são capazes de garantir direitos básicos da cidadania. Uma mãe não é “como um pai”, e o cadastro nestes moldes apaga uma família e reforça a organização familiar hegemônica.
É, por meio da interpretação da Constituição enquanto núcleo ensejador das transformações sociais que se reforça a ideia de que, “em tempos de crise política e social, nos quais a esperança no projeto constitucional é posta em xeque, as teorias do reconhecimento podem reforçar a crença de que há que se proteger e apostar ainda mais uma vez na Constituição” (CORBO, 2018).
Como se vê, a ADPF 899 trata de um problema real, grave e presente nas práticas da Administração Pública, o que merece ser posto em foco no Mês do Orgulho. O seu deferimento protegerá os direitos fundamentais da população LGBTI+, evitando a exclusão de inúmeras famílias compostas pela dupla maternidade ou paternidade das práticas cotidianas da sociedade.
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[1] Grupos sociais cujas identidades são marcadas pela orientação sexual e identidade de gênero têm sido tradicionalmente referidos por diversas siglas – algumas mais extensas, outras mais restritas. A sigla LGBTI+ reconhece esta multiplicidade, fazendo referência às pessoas lésbicas, gays, bissexuais, transexuais, travestis, intersexuais e demais expressões.
CORBO, Wallace. Filosofia Constitucional e Teoria do Reconhecimento: entre o Direito Constitucional ao Reconhecimento e o Constitucionalismo do Reconhecimento. Revista da Faculdade de Direito do Sul de Minas, v. 34, p. 1- 35, 2018.
FREIRE, Lucas. Sujeitos de papel: sobre a materialização de pessoas transexuais e a regulação do acesso a direitos. Cadernos Pagu, n. 48, 2016.
MENDONÇA,   Tatiane.   Instagram:   @adv.velloso.   Disponível   em &lt;<a href="https://instagram.com/adv.velloso">https://instagram.com/adv.velloso</a>&gt; Acesso em: 11 de maio de 2022.
PEREIRA, Jane; GONÇALVES, Gabriel. Inconstitucionalidade Sistêmica e Multidimensional: transformações no Diagnóstico das Violações à Constituição. Revista EMERJ, Rio de Janeiro, v. 21, n. 3, t. 1, p. 272-314, set.- dez., 2019.
RIOS, Roger Raupp. O conceito de homofobia na perspectiva dos direitos humanos e no contexto dos estudos sobre preconceito e discriminação. Rompendo o silêncio: homofobia e heterossexismo na sociedade contemporânea. Porto Alegre: Nuances, 2007, p. 27-48.
VECCHIATTI. Paulo Roberto Iotti. Mobilização judicial pelos direitos da diversidade sexual e de gênero no Brasil. In: QUINALHA, Renan et al. (Ed.). História do movimento LGBT no Brasil. São Paulo: Alameda, 2018.

19ª Parada do Orgulho LGBT de São Paulo

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JOTA

ADPF 899, em julgamento no STF, trata de um problema real, grave e presente

Reconhecimento da filiação LGBTI+ em documentos da Administração Pública

ADPF 899 trata de um problema real e grave na Administração Pública, a filiação LGBT, que merece ser posto em foco no Mês do Orgulho LGBT