Ramon Colares Sarmento de Araújo

Ricardo Santos de Almeida

A tradução da palavra “recall” para a língua portuguesa dá a ideia do que o instituto representa no âmbito consumerista. Ao identificar a possibilidade – ainda que remota – de que o produto posto no mercado possa causar risco à saúde ou à segurança do consumidor, o fornecedor tem o dever de “chamar de volta” os seus proprietários, a fim de que as substituições gratuitas sejam realizadas.
Nada obstante seja o recall uma campanha preventiva, na qual o fornecedor busca eliminar, mesmo o mais remoto – e quiçá inexistente – risco do produto, em prática consagradora da boa-fé objetiva na fase pós-contratual, a sua realização enseja dúvidas quanto à aplicação de determinados dispositivos do Código de Defesa do Consumidor.
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O CDC reserva tratamento diminuto ao instituto, focalizando os deveres de informação que recaem sobre o fornecedor após a identificação de produtos ou serviços potencialmente nocivos ou perigosos postos no mercado, a exemplo do dever de comunicação imediata aos órgãos de defesa do consumidor e veiculação de anúncios publicitários.
A comunicação aos órgãos de defesa dos consumidores – DPDC, PROCON e órgão normativo ou regulador competente – é disciplinada pela Portaria nº 487/2012, do Ministério da Justiça, que impõe ao fornecedor o dever de formular um plano de atendimento e um modelo de aviso de risco, a fim de que a eficácia do chamamento seja passível de aferição pelos referidos entes. 
O plano de atendimento deve especificar as formas, locais e horários de atendimento disponíveis ao consumidor, a duração média de cada atendimento e a estimativa de prazo para adequação completa de todos os produtos ou serviços afetados, o que, por óbvio, deve levar em consideração a demanda local e a capacidade de produção e distribuição do fornecedor.
Incumbe ainda ao fornecedor a apresentação de relatórios periódicos ao DPDC, aos PROCONS e ao órgão normativo ou regulador competente, a fim de que seja possível aferir a quantidade de produtos ou serviços efetivamente recolhidos ou reparados, assim como a sua distribuição pelas unidades federativas.
Ao fim do chamamento, um relatório final deve ser apresentado aos mesmos órgãos de defesa do consumidor, para que se verifique a quantidade de consumidores atingidos em número e percentual, em termos globais e por unidades federativas.
Justificativas e medidas a serem adotadas em relação ao percentual de produtos ou serviços não recolhidos ou reparados também devem ser apresentadas pelo fornecedor, bem como a forma pela qual os consumidores tomaram conhecimento do aviso de risco. 
Mesmo após o termo final do chamamento, o fornecedor continua obrigado a garantir a substituição gratuita do produto ou serviço aos consumidores que dele não participaram.
A ciência prévia dos órgãos de defesa do consumidor sobre o risco que se pretende afastar é condição necessária para a convocação de um recall. A estimativa do prazo para regularização do produto, conforme o plano de atendimento apresentado, também deve ser comunicada. A inobservância do prazo pode ensejar a aplicação das sanções previstas pelo CDC e pelo Decreto nº 2.181/1997.
Embora destituída de qualquer ilicitude, a opção do fornecedor pela inclusão de produtos em recall tem motivado a propositura de ações indenizatórias por parte de consumidores. Muitas vezes, buscando compensação por suposto dano moral em virtude da mera realização da campanha.
À proliferação de demandas - explicada também pelo fenômeno do maior acesso à Justiça proporcionado pela criação dos Juizados Especiais – tem sucedido também um aumento no número de decisões judiciais fundadas, equivocadamente, nos dispositivos do CDC que regulam a responsabilidade por vício do produto e do serviço.
Um dos dispositivos comumente invocados por algumas decisões é o art. 18, § 1º, do CDC, que prevê o prazo de 30 (trinta) dias para o fornecedor sanar vício no produto. 
Trata-se de previsão legal que não se amolda às hipóteses de chamamento preventivo. 
A natureza preventiva do recall não induz a existência de vício do produto ou serviço, requisito essencial para que o consumidor possa se valer das alternativas elencadas pelos incisos I a III, do aludido § 1º.
Entender aplicável o prazo de 30 (trinta) dias aos chamamentos preventivos implicaria em esvaziar de propósito e eficácia o plano de atendimento exigido pelos órgãos de defesa do consumidor, que pode estipular prazo mais ou menos extenso. Ou até mesmo estruturar a campanha em fases ou etapas, de acordo com a dimensão e/ou complexidade do recall pretendido.
Atente-se para a impossibilidade material de aplicação da norma veiculada pelo art. 18, § 1º, do CDC, às campanhas preventivas, porquanto improvável – para não dizer impossível – que qualquer fornecedor seja capaz de realizar de modo efetivo a substituição de dezenas de milhares de produtos em tempo tão exíguo.
O prazo para substituição indicado no plano de atendimento deve ser submetido ao órgão de defesa do consumidor, antes da instauração do recall. O juízo de conveniência do órgão de controle não está sujeito ao prazo fixado pelo art. 18, § 1º, do CDC. Seu fundamento de validade reside no art. 2º, § 2º, da Portaria nº 487/2012, do Ministério de Justiça, que faculta aos órgãos públicos o controle da eficácia do chamamento preventivo. 
Questão interessante aflora nas hipóteses em que, depois de instaurado o recall, o fornecedor percebe a conveniência de nova substituição ou reparo preventivo no produto.
Se a nova convocação se deve a outro componente ou por fator desconhecido à época do primeiro chamamento, certamente não se deve cogitar de qualquer ilicitude da conduta. A finalidade da campanha se mantém incólume: eliminação de risco eventual e hipotético, desconhecido pelo fornecedor ao colocar o produto no mercado.
No âmbito do Superior Tribunal de Justiça, consolidou-se entendimento no sentido de não ser o recall ato ilícito. Tampouco fundamento para indenização por dano moral, por ser uma prática favorável ao consumidor (STJ, AgRg no Ag 675453/PR).
Todavia, a Corte Superior brasileira já decidiu não ser possível afastar a responsabilidade do fornecedor caso o recall seja promovido após o evento danoso (STJ, REsp 1168775/RS). Ou ainda, na hipótese de o acidente de consumo ocorrer por não ter o proprietário comparecido ao chamamento preventivo (STJ, AgRg no REsp 1261067/RJ).
No entanto, não basta que haja acidente de consumo com produto incluído em recall para emergir a responsabilidade do fornecedor, sendo imprescindível a existência de nexo de causalidade entre o mau funcionamento do componente incluído no chamamento e o dano sofrido – o que depende de perícia técnica para ser verificado.
Das premissas expostas, conclui-se que o recall constitui prática favorável à segurança do consumidor, cabendo aos órgãos públicos incentivar sua promoção. O baixo índice de comparecimento dos consumidores aos chamamentos no Brasil – nos recalls de veículos realizados de 2002 a 2016, apenas 50% dos proprietários compareceram para realização das adequações<a class="sdfootnoteanc" href="#sdfootnote1sym" name="sdfootnote1anc">1</a> – por si só justifica a preocupação com sua adoção e atendimento.
No ano de 2006 foram promovidas no Brasil 17(dezessete) vezes menos campanhas de chamamento que os Estados Unidos. <a class="sdfootnoteanc" href="#sdfootnote2sym" name="sdfootnote2anc">2</a> 
O fortalecimento da atuação do Ministério da Justiça no Brasil - através do DPDC - refletiu no aumento do número de recalls promovidos e na consequente redução da disparidade com relação a outros países. Em 2015 foram 114 campanhas preventivas relacionadas a veículos no Brasil, ao passo que nos Estados Unidos – segundo maior mercado de veículos do mundo – foram promovidos 868 chamamentos, consoante dados do Departamento de Transportes norte-americano (NHTSA).<a class="sdfootnoteanc" href="#sdfootnote3sym" name="sdfootnote3anc">3</a> 
O alto custo das campanhas preventivas – desde os atos preparatórios de convocação até a eliminação total do risco do produto – traduzem a boa-fé do fornecedor que a promove, não havendo qualquer justificativa para que a empresa seja demandada no Judiciário por assim proceder.
Nesse aspecto, cumpre ao Poder Judiciário desencorajar os consumidores – especialmente os que pretendem se aproveitar do fornecedor diligente para propor ações indenizatórias –, pois o âmbito protetivo do CDC alcança apenas os que agem de boa-fé, e não aqueles que buscam abrigo em suas normas para obtenção de vantagem indevida.<a class="sdfootnoteanc" href="#sdfootnote4sym" name="sdfootnote4anc">4</a>
Aos que vislumbram a estreita relação entre o direito do consumidor e a análise econômica do direito, parece óbvio que a realização de mais campanhas preventivas – e, por consequência, o aumento da segurança dos consumidores – gira em torno de uma melhor compreensão do instituto pelo Poder Judiciário, dado o impacto financeiro que decisões equivocadas podem ocasionar aos fabricantes de produtos ou serviços objeto de recall.
Imprescindível, portanto, uma releitura do instituto em questão no Brasil, a fim de que – como já ocorre em outros países – seja ele fomentado e visto com um olhar mais positivo tanto pelo Judiciário, quanto pelos consumidores.
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<div id="sdfootnote1">
<a class="sdfootnotesym" href="#sdfootnote1anc" name="sdfootnote1sym">1</a> Cf. http://www.procon.sp.gov.br/noticia.asp?id=4786
</div>
<div id="sdfootnote2">
<a class="sdfootnotesym" href="#sdfootnote2anc" name="sdfootnote2sym">2</a> Cf. https://economia.estadao.com.br/noticias/geral,novidade-no-brasil-recall-e-comum-nos-eua,41036
</div>
<div id="sdfootnote3">
<a class="sdfootnotesym" href="#sdfootnote3anc" name="sdfootnote3sym">3</a> Cf. http://g1.globo.com/carros/noticia/2016/01/eua-tem-recorde-de-recalls-em-2015-com-51-milhoes-de-veiculos.html
</div>
<div id="sdfootnote4">
<a class="sdfootnotesym" href="#sdfootnote4anc" name="sdfootnote4sym">4</a> MIRAGEM, Bruno. Curso de direito do consumidor. 6ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016, p. 153.
</div>

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JOTA

Uma necessária releitura dos chamamentos preventivos no Brasil

Recall, órgãos de defesa do consumidor e Poder Judiciário

Uma necessária releitura dos chamamentos preventivos no Brasil