Heloisa Carpena

Um anúncio publicitário da General Motors tem chamado a atenção nos canais abertos de televisão por conter uma “proposta inusitada”, segundo noticiou a Folha de S. Paulo em sua edição de 11/6/2021<a href="applewebdata://CDCA4B11-7246-4175-93E6-B2DE3980134A#_ftn2" name="_ftnref2">[1]</a>. Em horário nobre, a fabricante dos automóveis Chevrolet Celta e Classic oferece aos proprietários dos modelos fabricados entre 2012 e 2016 um vale combustível de R$ 500,00, além da chance de concorrer ao sorteio de três carros zero quilômetro. Para ganhar os “prêmios”, o consumidor deve apenas levar o seu veículo a uma oficina autorizada e realizar, gratuitamente, um reparo no sistema de airbags. Ou seja, os consumidores devem atender ao recall da empresa.
Segundo a matéria da Folha, a própria GM identificou 235.845 automóveis atingidos pela falha, que afetou mais de 40 milhões de veículos em todo o mundo, dos quais aproximadamente 4 milhões estão no Brasil, de marcas diversas. O fato que motivou o recall está relacionado a defeito das bolsas infláveis, cujo mecanismo de acionamento se rompe e projeta fragmentos metálicos, que podem atingir o motorista e o passageiro, em caso de colisão frontal. No Brasil, até agora, apenas um acidente com vítima fatal, ocorrido em janeiro de 2020, na cidade de Aracaju, foi atribuído ao defeito nos automóveis. Este número tende a ser bem maior, pois em 2017<a href="applewebdata://CDCA4B11-7246-4175-93E6-B2DE3980134A#_ftn3" name="_ftnref3">[2]</a>, a Honda confirmou ter relacionado pelo menos 11 mortes ao mau funcionamento dos airbags fabricados pela empresa japonesa Takata, os mesmos incorporados aos modelos da GM.
<a href="https://www.jota.info/produtos/poder?utm_source=Banner%20site&amp;utm_medium=Artigos&amp;utm_campaign=CTA_Poder_materias"><img class="size-medium wp-image-292717 aligncenter" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2021/01/jota-pro-poder.jpg" alt="" width="688" height="688" /></a>
Quando o Código de Defesa do Consumidor entrou em vigor no início dos anos 90, a sociedade brasileira não conhecia o termo recall, que foi se tornando crescentemente mais popular entre nós e hoje se faz notar em mercados tão variados como brinquedos, berços e, os mais comuns, automóveis. Dados da Secretaria Nacional do Consumidor (SENACON/MJ) apontam que entre os anos de 2016 e 2019 houve 427 recalls no país, totalizando 13.719.915 milhões de produtos afetados, sendo 87,5% no setor automobilístico<a href="applewebdata://CDCA4B11-7246-4175-93E6-B2DE3980134A#_ftn4" name="_ftnref4">[3]</a>. Este protagonismo da indústria automobilística se deve à própria natureza de seu processo produtivo, uma vez que as várias peças e componentes dos veículos não são fabricados pelas empresas - por isso mesmo denominadas montadoras, mas sim adquiridos de vários outros fornecedores.
O chamamento ou recall ocorre quando, após a introdução do produto no mercado, o próprio fabricante detecta a existência de riscos até então desconhecidos, surgindo para ele, por força de norma expressa do CDC (art. 10 §§ 1º e 2º), o dever de informar imediatamente o fato aos consumidores e aos órgãos competentes. Dentre estes, se destaca o papel da SENACON, que regulamentou o assunto através da Portaria n. 618, de 2019, quando passou a adotar os parâmetros da OCDE, e disponibilizou um serviço de informações sobre todos os recalls feitos no país. Ao tomar conhecimento da “nocividade ou periculosidade” apresentada por produtos já introduzidos no mercado, os fornecedores devem fazer a comunicação à própria Secretaria, aos PROCONs e aos consumidores, tanto individual como coletivamente, através de um “plano de mídia”, descrito no regulamento<a href="applewebdata://CDCA4B11-7246-4175-93E6-B2DE3980134A#_ftn5" name="_ftnref5">[4]</a>.
O recall, portanto, está relacionado a um especial dever de informar, cujo cumprimento, porém, não afasta a responsabilidade dos fabricantes por danos decorrentes de defeito, ainda que somente tenha sido identificado após a comercialização do produto. A responsabilidade do fabricante por acidentes de consumo independe da demonstração de ter agido com culpa e a previsão taxativa de suas possíveis defesas (CDC art. 12 §3º) revela que o legislador de 1991 criou hipóteses de inversão legal do ônus da prova. Ordinariamente, caberia ao consumidor a prova da origem do defeito que lhe causou o dano, bem como a demonstração de que este fato decorreu de alguma falta no dever de cuidado por parte do fabricante. No sistema de proteção ao consumidor instituído pelo Código, ao contrário, é o fabricante quem está incumbido de provar que não colocou o produto no mercado, que o defeito não existe ou que o dano se deveu exclusivamente a um fato praticado pelo consumidor ou por um terceiro (incisos I, II e III do art. 12 §3º do CDC)<a href="applewebdata://CDCA4B11-7246-4175-93E6-B2DE3980134A#_ftn6" name="_ftnref6">[5]</a>.
Estas defesas, na prática, raramente prosperam, uma vez que  a prova negativa que incumbe ao fornecedor se qualifica como “prova diabólica”, de difícil ou impossível produção. No caso de não atendimento ao recall, a defesa apresentada pelas empresas em geral busca qualificar a inércia do consumidor em atender ao chamado como sua “culpa exclusiva”, argumento que vem sendo firmemente rechaçado pela jurisprudência do STJ<a href="applewebdata://CDCA4B11-7246-4175-93E6-B2DE3980134A#_ftn7" name="_ftnref7">[6]</a>. O acerto das decisões da Corte é evidente pois, ainda que se pudesse sustentar que a omissão do consumidor contribuiu em alguma medida para a causação do dano, dificilmente estaria caracterizado o nexo causal e tampouco o fato seria exclusivo, como exige a lei para afastar a responsabilidade do fabricante por acidentes de consumo.
<blockquote class="jota-article__eye">O recall é corolário do mais importante dos direitos básicos do consumidor, o direito a ser informado sobre características e riscos dos produtos que adquire. Instituído por diversas normas específicas ao longo do Código, o direito à informação é instrumental e tem por finalidade concretizar outro direito básico, o direito à prevenção de danos.</blockquote>
O Supremo Tribunal Federal (STF), no julgamento de ação direta de inconstitucionalidade proposta pela Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (ANFAVEA) e outros, manifestou-se sobre o tema, afirmando a importância do direito à informação dos consumidores. Em sede de controle concentrado, os órgãos representativos do setor automobilístico se insurgiram contra dispositivos da Lei Estadual 16.559/19, que instituiu o Código Estadual de Defesa do Consumidor de Pernambuco. A norma foi além do disposto no estatuto federal e regulamentou o recall, criando para as empresas o dever de informar “por meio de carta enviada ao endereço dos consumidores, o defeito e suas implicações, além do procedimento a ser realizado, seu tempo de duração e o endereço onde será feito o reparo” (art. 173). O voto do Relator Ministro Gilmar Mendes prevaleceu, afirmando a constitucionalidade da norma estadual, sob fundamento de que “o legislador pernambucano se limitou a densificar a norma federal para garantir o direito à informação do consumidor de veículos automotores”<a href="applewebdata://CDCA4B11-7246-4175-93E6-B2DE3980134A#_ftn8" name="_ftnref8">[7]</a>.
Voltando ao recall objeto da notícia, o fato de o defeito atingir automóveis populares, que pouco utilizam as oficinas autorizadas e mudam de proprietário com maior frequência, certamente dificulta o atendimento ao chamado. Isto explica a atitude da montadora, que, de forma inovadora, aplicou “indutores (insights) comportamentais ao consumidor”, como determina a norma do SENACON, criando estímulos para que os atuais donos dos veículos se disponham a atender ao chamamento.
É preciso não perder de vista que os danos resultantes de defeitos são frequentemente graves e atingem os mais caros bens jurídicos da pessoa humana, a saúde e a vida. Ao associar a imagem da empresa a um fato negativo como este, a GM se utiliza da publicidade não como peça de marketing ou promoção de vendas, mas sim como meio de gerenciar prejuízos de massa e controlar sua responsabilidade em caso de demanda indenizatória, que pode até mesmo ser coletiva, quando proposta em benefício de todas as vítimas dos airbags defeituosos. A matéria jornalística, ainda que padeça de uma certa ingenuidade, revela estratégia bem orientada de compliance, que permite às empresas mitigar seus prejuízos, sobretudo os reputacionais, diante do reconhecimento de que o dispêndio financeiro para a prevenção é sempre menor do que aquele gasto para recomposição dos danos causados aos consumidores, muitas vezes irreparáveis.
Ainda que exponha um problema de qualidade do produto, a prática do recall efetivamente previne a ocorrência de acidentes de consumo e é percebida pelo público como uma atitude responsável da empresa, agregando-se, positivamente, à sua imagem e reputação. Isto é, de fato, priorizar a segurança!
<div id="sdr-inbound-form-artigos-impacto-nas-instituicoes-8c5227dd4ede3347a6c6" role="main"></div>
<script type="text/javascript" src="https://d335luupugsy2.cloudfront.net/js/rdstation-forms/stable/rdstation-forms.min.js"></script> 
<script type="text/javascript"> new RDStationForms('sdr-inbound-form-artigos-impacto-nas-instituicoes-8c5227dd4ede3347a6c6', 'UA-53687336-1').createForm();</script>
<a href="applewebdata://CDCA4B11-7246-4175-93E6-B2DE3980134A#_ftnref2" name="_ftn2">[1]</a> https://www1.folha.uol.com.br/fsp/fac-simile/2021/06/12/
<a href="applewebdata://CDCA4B11-7246-4175-93E6-B2DE3980134A#_ftnref3" name="_ftn3">[2]</a> https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2017/07/1900113-honda-confirma-11-morte-por-explosao-de-airbag-da-takata. shtml
<a href="applewebdata://CDCA4B11-7246-4175-93E6-B2DE3980134A#_ftnref4" name="_ftn4">[3]</a> http://portal.mj.gov.br/recall/principal/report
<a href="applewebdata://CDCA4B11-7246-4175-93E6-B2DE3980134A#_ftnref5" name="_ftn5">[4]</a><a href="https://www.defesadoconsumidor.gov.br/images/Legisla%C3%A7%C3%A3o/Portaria_MJSP_n._618_2019.pdf">https://www.defesadoconsumidor.gov.br/images/Legisla%C3%A7%C3%A3o/Portaria_MJSP_n._618_2019.pdf</a>
<a href="applewebdata://CDCA4B11-7246-4175-93E6-B2DE3980134A#_ftnref6" name="_ftn6">[5]</a> “A vulnerabilidade do consumidor, no mercado massificado das relações de consumo em geral, sempre constituiu um enorme obstáculo a que ele obtenha os elementos de prova necessários à demonstração de seu direito. Isso é particularmente mais grave quando se sabe que essa prova é, via de regra, eminentemente técnica, sendo o fornecedor um especialista na sua área de atuação. Por isso, tendo o fabricante as melhores condições técnicas de demonstrar a inexistência de defeito no produto colocado no mercado, foi procedida a essa inversão pelo próprio legislador, sendo-lhe atribuído esse encargo.” (REsp 1168775/RS, Rel. Ministro PAULO DE TARSO SANSEVERINO, TERCEIRA TURMA, julgado em 10/04/2012, DJe 16/04/2012)
<a href="applewebdata://CDCA4B11-7246-4175-93E6-B2DE3980134A#_ftnref7" name="_ftn7">[6]</a> “A circunstância de o veículo não haver sido vistoriado periodicamente e não ter sido levado para conserto pelo proprietário anterior, em atenção a RECALL, não isenta o fabricante da obrigação de indenizar, sobretudo porque se trata de veículo de revenda.” (AgRg no REsp 1261067/RJ, Rel. Ministro MARCO BUZZI, QUARTA TURMA, julgado em 17/11/2015, DJe 24/11/2015). No mesmo sentido, há outro precedente: REsp 1010392/RJ, Rel. Ministro HUMBERTO GOMES DE BARROS, TERCEIRA TURMA, julgado em 24/03/2008, DJe 13/05/2008.
<a href="applewebdata://CDCA4B11-7246-4175-93E6-B2DE3980134A#_ftnref8" name="_ftn8">[7]</a> Tribunal Pleno, AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE 6.220 PERNAMBUCO, Relator Min. Gilmar Mendes, DJE 16/04/2021.

consumidor

https://images.jota.info/wp-content/uploads/2021/09/copy-of-jota-logo-high-cmyk.jpeg

JOTA

Recall está relacionado a um especial dever de informar, mas não afasta a responsabilidade dos fabricantes por danos

Recall de produtos: peça de marketing ou medo da responsabilização?

Recall está relacionado a um especial dever de informar, mas não afasta a responsabilidade dos fabricantes por danos