Fernanda Cimbra Santiago

Na sua opinião, o debate em torno da discriminação racial e de gênero deveria ser institucionalizado na Administração Pública? Ou ainda acredita que a neutralidade da governança é capaz de promover os melhores resultados?
Estudo<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a> da Escola Nacional de Administração Pública (ENAP), em 2018, esclareceu a composição dos quadros da Administração Pública com um recorte de gênero e raça. Nessa ocasião, constatou-se que 32,38% dos cargos públicos são preenchidos por homens brancos, 28,49% por mulheres brancas, 20,60% por homens negros e 15,01% por mulheres negras.
Nas funções gratificadas, que são posições de chefia ocupadas exclusivamente por servidores públicos, 41,62% eram ocupados por homens brancos, 24,72% por mulheres brancas, 19,43% por homens negros e 10,67% por mulheres negras.
<a href="https://www.jota.info/produtos/poder?utm_source=Banner%20site&amp;utm_medium=Artigos&amp;utm_campaign=CTA_Poder_materias"><img class="size-medium wp-image-292717 aligncenter" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2021/01/jota-pro-poder.jpg" alt="" width="688" height="688" /></a>
Já quando analisamos os cargos em comissão, referentes a posições de Direção e Assessoramento Superior (DAS), se o recorte for o DAS 6, que são as mais altas posições comissionadas da Administração Pública, 71,12% eram ocupados por homens brancos, 11,76% por mulheres brancas, 11,23% por homens negros e 3,74% por mulheres negras.
Destaque-se que cargos comissionados são de livre nomeação e exoneração pelas autoridades do serviço público, de forma que prescindem de uma análise objetiva de competência técnica. Do contrário, as escolhas para ocupar tais posições são exceções à obrigatoriedade de motivação dos atos administrativos, além de não exigir concurso público (art. 37, II, da Constituição Federal).
Paralelamente, para reduzir reflexos das discriminações sistêmicas raciais, existem cotas para negros em concursos públicos já declaradas constitucionais pelo Supremo Tribunal Federal<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>. Mas será que são suficientes? Quanto à questão de gênero, será que o machismo estrutural influencia na evolução da carreira das mulheres servidoras públicas? Ao final, a ausência de políticas destinadas a considerar os efeitos dessas falhas estruturais influencia na prestação do serviço ao administrado?
As respostas estavam no centro da nossa preocupação quando elaboramos a seguinte conclusão: é imprescindível que a Administração Pública institucionalize políticas antidiscriminatórias<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a> entre seus servidores. Antidiscriminar implica atuar de forma a promover medidas de igualdade (material) e inclusão. A sugestão dos recortes de raça e gênero não exclui a preocupação com outras formas de discriminação, como o capacitismo ou decorrente de orientação sexual e idade, por exemplo.
Importante é frisar que as instituições – sobretudo públicas – precisam se engajar no enfrentamento das discriminações enquanto dificuldades sistêmicas ou estruturais. Não se trata de apurar culpabilidade ou ilicitude.
A questão é entender como são selecionadas as pessoas que decidem. E mais, ainda que se perceba uma ocupação mais diversa em alguns setores, deve ser observado se as decisões acerca de políticas públicas são tomadas considerando as diferenças dos administrados. Isso porque deve-se também evitar a legitimação das discriminações sistêmicas a partir da nomeação de integrantes desses grupos minoritários que defendam interesses dominantes.
De fato, aplicar a lei, de forma a concretizar os valores constitucionais, compõe o principal mister dos servidores públicos. Estão entre os objetivos fundamentais da Constituição da República: a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, a promoção do desenvolvimento nacional, a redução das desigualdades socioeconômicas, além do dever de promover o bem de todos, sem discriminações. Há ainda entre os fundamentos do nosso Estado a consolidação da cidadania como pressuposto democrático – que não é substantiva sem igualdade de oportunidades –, o pluralismo político e o princípio da dignidade da pessoa humana.
Todas essas normas estão na base inegociável do Direito Antidiscriminatório, que se desenvolve anexado aos Direitos Humanos e ao Direito do Estado para afirmar que a discriminação ­– sobretudo nas modalidades sistêmicas – atua na contramão da consolidação do Estado Democrático de Direito, cujo compromisso foi ajustado em 1988, além de contrariar uma série de compromissos internacionais assumidos<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>.
A ausência de diversidade – tanto no que se refere às pessoas que ocupam as posições, quanto às ideias que defendem – nega direitos fundamentais aos excluídos e, no caso do serviço público, prejudica toda a população, pois repercute na qualidade das decisões públicas tomadas, cuja tendência será de priorização de demandas que permitam a manutenção do status quo.
As discriminações sistêmicas ou indiretas não possuem justificativa – moral ou jurídica – tal como as diretas; no entanto, diferenciam-se destas a partir da sua proliferação silenciosa<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>. O poder concentrado nas mãos de uma classe privilegiada proporciona a disseminação de práticas, valores e ideias que inferiorizam e subalternizam grupos sociais<a href="#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a>. Ainda que o servidor público que tome decisões não compartilhe explicitamente desse discurso, a falta de consciência acerca da influência dos preconceitos colabora para propagação de decisões, em tese, neutras, porém revestidas de conteúdo discriminatório, na medida em que desconsiderem as diferentes demandas dos grupos sociais discriminados<a href="#_ftn7" name="_ftnref7">[7]</a>.
Ao longo do tempo, essas decisões aprofundam – e naturalizam – problemas que se tornam de difícil solução, como o aumento da desigualdade social e da estratificação social. Estudo recente da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) apontou que o Brasil ocupa o 2º lugar de pior estratificação social entre os 30 países pesquisados<a href="#_ftn8" name="_ftnref8">[8]</a>.
Não por acaso, mulheres negras – que ocupam a base da pirâmide social – estão sujeitas aos piores efeitos das decisões políticas, suportando uma carga tributária proporcionalmente maior, não estando contempladas como deveriam no orçamento público, deixando de receber políticas públicas que contemplem a pobreza menstrual, entre outras.
Assim, uma vez que se reconheça que o racismo e o machismo são problemas estruturais, é urgente a demanda por posturas antidiscriminatórias, sem as quais não há expectativa de inclusão desses grupos. Não é suficiente somente instituir cotas, mas também deve-se investir em capacitação para quem já exerce posição de poder, realizar pesquisas, estimular a participação de negros e mulheres em ambientes acadêmicos e decisórios, por exemplo, sem a pretensão de exaurir as medidas possíveis.
Note-se que, ainda que a entrada de mulheres negras no serviço público seja cerca de 50% menor que a de homens brancos (15,01% ante 32,38%), quando se analisa os dados de ocupações das posições mais altas a discrepância é de maior monta, visto que as mulheres negras ocupavam em 2018 somente 3,74% dos cargos com DAS 6, enquanto os homens brancos estavam em mais de 70% dessas posições. Logo, a barreira não está só no concurso público e no acesso à educação, uma vez que tais cargos são de livre nomeação, ou seja, independem da participação em processo seletivo.
Portanto, a ausência de pauta sobre o tema em nada contribuiu para a criação de soluções e, do contrário, favoreceu a manutenção do cenário de desigualdade. Nessa perspectiva, institucionalizar a discussão é um primeiro passo para se construir medidas efetivas de promoção de igualdade. Reitere-se que manter o quadro de extrema disparidade na composição das posições públicas com efetivo poder decisório possibilita a repercussão nas escolhas administrativas acerca das prioridades públicas. No mais, antidiscriminar não é favor, é obrigação jurídica.
<div id="sdr-inbound-form-artigos-impacto-nas-instituicoes-8c5227dd4ede3347a6c6" role="main"></div>
<script type="text/javascript" src="https://d335luupugsy2.cloudfront.net/js/rdstation-forms/stable/rdstation-forms.min.js"></script> 
<script type="text/javascript"> new RDStationForms('sdr-inbound-form-artigos-impacto-nas-instituicoes-8c5227dd4ede3347a6c6', 'UA-53687336-1').createForm();</script>
<hr />
&nbsp;
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Disponível em: <a href="https://repositorio.enap.gov.br/bitstream/1/3259/1/Servidores_ra%c3%a7a_cor_informe.pdf">https://repositorio.enap.gov.br/bitstream/1/3259/1/Servidores_ra%c3%a7a_cor_informe.pdf</a>. Acesso em 22.set.2021.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. ADC 41. Ministro relator ROBERTO BARROSO. Julgamento em 8.jun.2017, publicação em 17.ago.2017. Disponível em: <a href="http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/menuSumarioTese.asp?tipo=TCC&amp;tese=4708">http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/menuSumarioTese.asp?tipo=TCC&amp;tese=4708</a>. Acesso em 2.out.2021.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> Ensaio sobre a imprescindibilidade da institucionalização das discussões de gênero e raça
na Administração Pública. In, SANTOS, Herta Rani Teles e GUIMARÃES, Juliana Pita (org.). Poder feminino: entre percursos e desafios. Editora Arraes. Belo Horizonte, 2021.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> Convenção n°111 da Organização Internacional do Trabalho sobre Discriminação em Matéria de Emprego e Ocupação (1958); Convenção n° 169 da Organização Internacional do Trabalho sobre Povos Indígenas e Tribais (1989); Declaração dos Direitos das Pessoas Pertencentes a Minorias Nacionais Étnicas Religiosas e Linguísticas (1992); Declaração e Plano de Ação da Conferência Mundial Contra o Racismo a Xenofobia e Intolerâncias Correlatas (2001); Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial (1965); Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (1966); Convenção Americana sobre Direitos Humanos (1969)
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> Sobre o racismo estrutural, modalidade de discriminação sistêmica, Silvio Almeida explica não se tratar de um fenômeno patológico, mas a forma normal como a sociedade funciona. ALMEIDA, Sílvio Luiz de. Racismo estrutural. São Paulo. Sueli Carneiro e Editora Jandaíra, 2020, p. 20 e 21
<a href="#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a> Adilson Moreira explica como funciona a psicologia social dos estereótipos e estigmas. MOREIRA, Adilson José. O que é Racismo Recreativo? Minas Gerais: Letramento - Casa do Direito, 1ª ed., 2018, p. 58 e 59
<a href="#_ftnref7" name="_ftn7">[7]</a> RIOS, Roger Raupp. Direito da Antidiscriminação: discriminação direta, indireta e ações afirmativas. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008, p. 21
<a href="#_ftnref8" name="_ftn8">[8]</a> Disponível em: <a href="https://www.oecd.org/social/broken-elevator-how-to-promote-social-mobility-%209789264301085-en.htm">https://www.oecd.org/social/broken-elevator-how-to-promote-social-mobility- 9789264301085-en.htm</a>. Acesso em 1.out.2020

racismo

https://images.jota.info/wp-content/uploads/2021/09/copy-of-jota-logo-high-cmyk.jpeg

JOTA

Falta de consciência dos preconceitos colabora para propagar decisões, em tese, neutras, porém revestidas de discriminação

Neutra, racista e machista? Antidiscriminar como obrigação jurídica para a Administração Pública

Falta de consciência dos preconceitos colabora para propagar decisões, em tese, neutras, porém revestidas de discriminação