Pedro Cavalcanti Rocha

Daniel Becker

Lastreada na dinamicidade das relações comerciais, a arbitragem tem como chamariz a adaptabilidade procedimental em constante diálogo com a vontade das partes. Não é por outro motivo que a Câmara de Comércio Internacional (CCI), uma das mais prestigiadas instituições de arbitragem do mundo, realizou importantes modificações em seu regulamento, aplicável aos procedimentos arbitrais que administra.<a style="font-family: inherit; font-style: inherit; font-variant-ligatures: inherit; font-variant-caps: inherit;" href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a> As mudanças, que passam a valer para litígios iniciados a partir de 1º de janeiro de 2021, foram bem recebidas pela comunidade arbitral e basicamente normatizaram algumas praxes que já vinham sendo aplicadas.
Em resumo, as alterações que mais impactam a realidade das arbitragens domésticas são: (i) a previsão de integração de partes adicionais e a consolidação de procedimentos arbitrais; (ii) a expansão do escopo do procedimento expedito da CCI, que passa a valer para litígios até três milhões de dólares (que, em câmbio atual, possui ainda maior impacto no Brasil);<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a> (iii) a expressa possibilidade de se realizar atos procedimentais de maneira totalmente virtual, e (iv) a necessidade de que as partes informem ao Tribunal Arbitral e aos outros participantes do litígio a existência e a identidade de qualquer terceiro que tenha financiado a demanda e que possua interesse econômico no resultado desta.
<a href="https://conteudo.jota.info/jota-pro-tributos" rel="attachment wp-att-291213"><img class="size-medium wp-image-291213 aligncenter" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2021/01/jota-pro-tributos-v2.jpg" alt="" width="300" height="300" /></a>
Nesta breve reflexão, trataremos apenas da última modificação, referente ao dever de revelação do financiador. É tendência que as câmaras arbitrais normatizem questões práticas, sendo certo que, no Brasil, algumas delas já possuem resoluções administrativas que recomendam às partes a revelação do financiamento do litígio,<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a> ou seja, a novidade do regulamento da CCI é que ela não mais “recomenda”, mas, sim, determina.
<ul class="jota-article__internal-links">
<li>+JOTA: <a href="https://www.jota.info/casa-jota/casa-jota-arbitragem-investimento-externo-brasil-26012021">Nesta sexta (29/1), às 11h, webinar sobre ‘Arbitragem e investimento externo no Brasil‘. Saiba mais</a></li>
</ul>
A diferença semântica parece pouca, mas pode representar o frontal desrespeito ao regulamento da câmara, e, definindo a convenção arbitral pela aplicação do regulamento da CCI ao procedimento, é razoável entender que o desrespeito ao seu art. 11 (7) poderá levar a interpretação de que a sentença arbitral tenha sido proferida fora dos limites da convenção de arbitragem.<a href="#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a>  Ou seja, se a revelação já era um ponto de atenção para árbitros, advogados e partes, deverá ser ainda mais nos próximos anos, equiparando-se a outras obrigações endógenas à convenção.
Mas a discussão sobre o dever de disclosure do financiador de litígios não é tão recente. Os guidelines da International Bar Association (IBA), por exemplo, já definem que entidades que possuam interesse econômico no litígio devem ser informadas ao Tribunal Arbitral.<a href="#_ftn7" name="_ftnref7">[7]</a>
A reconhecida universidade inglesa Queen Mary, em conjunto com o International Council for Commercial Arbitration (ICCA), desenvolveu extensa análise sobre a atuação do financiador de litígios na arbitragem internacional.<a href="#_ftn8" name="_ftnref8">[8]</a> Dentre as muitas questões ali colocadas, debateu-se até que ponto deveria ir o dever de revelação do financiador, sendo certo que, em pesquisa realizada pela mesma universidade, 76% dos entrevistados entendiam que a revelação do financiador deve ser obrigatória, contudo, 71% deles afirmaram que o contrato de financiamento e seus termos devem permanecer sigilosos.<a href="#_ftn9" name="_ftnref9">[9]</a>
Em nossa opinião, os resultados da pesquisa são razoáveis e estão em consonância com o que vem acontecendo na prática arbitral brasileira e internacional. Atenta a isso, a CCI deixa claro, no art. 11(7) de seu regulamento, que devem ser revelados: (i) a existência do financiamento e (ii) a identidade do financiador.  E só.
Essas informações são suficientes e trazem a segurança jurídica necessária ao litígio, principalmente nas questões de independência e parcialidade dos árbitros, bem como em eventuais checagens de conflitos de interesse.
<blockquote class="jota-article__eye">Isso porque, o que interessa aos árbitros e às partes é saber quem possui interesse econômico naquela demanda específica, para que façam as suas checagens de conflitos.</blockquote>
Indaga-se aos que defendem posição contrária: qual seria o interesse dos árbitros e das partes contrárias em conhecer os termos acordados, bem como a eventual remuneração do financiador? Isso colocaria em xeque de alguma forma a validade do procedimento? Faria com que algum dos árbitros julgasse o mérito da causa de forma diferente? Esperamos que não.
O sigilo das operações comerciais e o respeito às cláusulas de confidencialidade financeiras devem sempre ser a regra, principalmente, quando a relação jurídica “financiado-financiador” não se confunde com a “financiado-partes contrárias”. Ainda assim, questionamos se, ante ao princípio da relatividade dos contratos, alguém que não tenha sido parte e não tenha a sua esfera jurídica afetada por um contrato, possui interesse jurídico no requerimento de apresentação deste. Naturalmente, decisões estrangeiras<a href="#_ftn10" name="_ftnref10">[10]</a> e a doutrina interna e externa<a href="#_ftn11" name="_ftnref11">[11]</a> caminham no mesmo sentido:
“tal revelação deve recair apenas sobre as informações essenciais para a análise de uma eventual influência no Tribunal Arbitral. De forma mais sucinta, deve a parte financiada informar que possui um parceiro financeiro no procedimento e identificá-lo. Detalhes sobre a precificação do financiamento e outras cláusulas devem ser preservados, dado o caráter estratégico para o financiado e irrelevante para a parte adversa e o tribunal analisarem um eventual conflito de interesses”.<a href="#_ftn12" name="_ftnref12">[12]</a>
“Parece-nos mais razoável que se exija da parte financiada a revelação da existência do financiamento, seja para garantir a manutenção da independência e imparcialidade do Tribunal, seja para permitir uma decisão informada sobre a antecipação de despesas. No entanto, a exigência de revelação das condições do financiamento pode ser um ônus extremamente oneroso não só para a parte financiada, mas também para o mercado de financiamento de disputas por terceiros”. <a href="#_ftn13" name="_ftnref13">[13]</a>
Por último, mas não menos importante, é bom dizer que, do ponto de vista da econômica comportamental, o conhecimento da existência de um financiador tende a estimular a parte adversa a compor. Empiricamente, o viés do otimismo leva os adversários a depositarem uma chance de êxito fictícia em seus pleitos; com a ciência de que há um terceiro disposto a arriscar em determinada demanda, a parte adversa tem sua assimetria informacional reduzida, aumentando o seu ânimo para um acordo.<a href="#_ftn14" name="_ftnref14">[14]</a> No jargão dos economistas, a obrigação de revelação sobre a existência de um financiador pode vir a ser um nudge<a href="#_ftn15" name="_ftnref15">[15]</a> para pacificação de disputas.
Deste modo, acertou mais uma vez a CCI, referência mundial e pioneira em tantas iniciativas que ajudam o desenvolvimento da arbitragem, ao determinar a obrigatoriedade do dever de revelação em casos de financiamento de arbitragens, mas, ao mesmo tempo, limitando tal exposição à existência e identidade do financiador; para a CCI, a obrigação da parte é informar o negócio e o nome do seu “sócio” no procedimento. Resta agora às câmaras nacionais normatizarem a questão em padrões semelhantes, devendo ainda o Poder Judiciário respeitar tais balizadores em busca da segurança jurídica e previsibilidade dos seus jurisdicionados.
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O episódio 48 do podcast Sem Precedentes faz uma análise sobre a atuação do Supremo Tribunal Federal (STF) em 2020 e mostra o que esperar em 2021. Ouça:
https://youtu.be/-hMj5lwWXEE
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<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> A íntegra do regulamento pode ser acessada pelo site: <a href="https://iccwbo.org/dispute-resolution-services/arbitration/rules-of-arbitration/">https://iccwbo.org/dispute-resolution-services/arbitration/rules-of-arbitration/</a> - Acesso em 15/01/2021. Até o momento, o regulamento está disponível apenas em inglês, porém, a CCI já informou que está trabalhando nas traduções oficiais.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> Vale destaque o fato de que o sistema do regulamento expedido é via “opt out”, ou seja, se a convenção arbitral não definir o afastamento das regras expedidas em causas em que ela se aplica, elas deverão ser aplicadas, salvo se ambas as partes concordarem pela não aplicação quando da instauração do procedimento arbitral.
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> Como, por exemplo, a Resolução Administrativa 18/2016 da Câmara de Comércio Brasil-Canadá (CAM-CCBC);
<a href="#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a> Nos termos do art. 32, IV da Lei 9.307/95: “É nula a sentença arbitral se: (...) IV – for proferida fora dos limites da convenção de arbitragem”.
<a href="#_ftnref7" name="_ftn7">[7]</a> O art. 6,b do Guidelines referente aos conflitos de interesse em arbitragens internacionais determina que: “If one of the parties is a legal entity, any legal or physical person having a controlling influence on the legal entity, or a direct economic interest in, or a duty to indemnify a party for, the award to be rendered in the arbitration, may be considered to bear the identity of such party”. Disponível em: https://www.ibanet.org/Document/Default.aspx?DocumentUid=e2fe5e72-eb14-4bba-b10d-d33dafee8918 - Acesso em 15/01/2021.
<a href="#_ftnref8" name="_ftn8">[8]</a> ICCA. Report of the ICCA-Queen Mary task force on Third-Party funding in international arbitration. Disponível em: <a href="https://cdn.arbitration-icca.org/s3fs-public/document/media_document/Third-Party-Funding-Report%20.pdf">https://cdn.arbitration-icca.org/s3fs-public/document/media_document/Third-Party-Funding-Report%20.pdf</a> - Acesso em 15/01/2021.
<a href="#_ftnref9" name="_ftn9">[9]</a> ICCA. Report of the ICCA-Queen Mary task force on Third-Party funding in international arbitration. Disponível em: <a href="https://cdn.arbitration-icca.org/s3fs-public/document/media_document/Third-Party-Funding-Report%20.pdf">https://cdn.arbitration-icca.org/s3fs-public/document/media_document/Third-Party-Funding-Report%20.pdf</a> - Acesso em 15/01/2021.
<a href="#_ftnref10" name="_ftn10">[10]</a> São exemplos de julgados internacionais que trataram do tema: Guaracachi America Inc. and Rurelec plc v. Bolívia e South American Silver Ltda v. Bolívia.
<a href="#_ftnref11" name="_ftn11">[11]</a> LÉVY, Laurent e BONNAN, Régis. Third-party funding. Disclosure, joinder and impact on arbitral proceedings, in Dossier of the ICC Institute of World Business Law: Third-party Funding in International Arbitration, p. 78.
<a href="#_ftnref12" name="_ftn12">[12]</a> FILHO, Napoleão Casado. Arbitragem e acesso à justiça: o novo paradigma do Third Party Funding. São Paulo: SaraivaJur, 2017, p. 212.
<a href="#_ftnref13" name="_ftn13">[13]</a> TEIXEIRA, Bruno Barreto de Azevedo. O Financiamento da Arbitragem por Terceiros e o Dever de Revelação. Comitê Brasileiro de Arbitragem. Disponível em <a href="http://cbar.org.br/site/o-financiamento-da-arbitragem-por-terceiros-e-o-dever-de-revelacao/">http://cbar.org.br/site/o-financiamento-da-arbitragem-por-terceiros-e-o-dever-de-revelacao/</a> - Acesso em 15/01/2021.
<a href="#_ftnref14" name="_ftn14">[14]</a> WOLKART, Erik Navarro. Análise Econômica do Processo Civil: como a Economia, o Direito e a Psicologia podem vencer a tragédia da justiça. Revista dos Tribunais: São Paulo, 2019.
<a href="#_ftnref15" name="_ftn15">[15]</a> THALER, Richard H.; SUSTEIN, Cass R. Nudge: como tomar melhores decisões sobre saúde, dinheiro e felicidade. Objetiva: São Paulo, 2019 (edição do Kindle).

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JOTA

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