Artur César de Souza

No episódio ocorrido no Século XVII, narrado por François Andriex (1759-1833), no Conto ‘O Moleiro de Sans-Souci’, o Imperador alemão, Frederico II - o Grande, teria determinado a construção de um palácio de verão em Potsdam, em Berlim, na encosta de uma colina, local em que já havia o Moinho de Sans-Souci. Com a intenção de ampliar o palácio, o Imperador fez proposta de compra do Moinho a um Moleiro, que a recusou de imediato. O Imperador, então, com base em seu poder imperial, disse que se quisesse poderia tomar as terras e o moinho. Diante dessa afirmação, o humilde Moleiro proferiu a seguinte frase: seria verdade, se não hovesse juízes em Berlim!
Observa-se que o fato descrito por François Andriex, em especial a frase proferida pelo Moleiro, tem servido para resgatar, em algumas manifestações acadêmicas, certo saudosismo da concepção ideológica do positivismo jurídico, numa perspectiva ‘falseada’ de que a rígida subsunção da norma ao caso concreto, numa obediência sacerdotal e acrítica à norma posta e imposta, é fator de segurança e de justiça social.
Para alguns, a afirmação de que haveria juízes em Berlim representa a vinculação do magistrado ao normativismo jurídico, como forma de se conferir segurança jurídica aos cidadãos.
Pretende-se com esse resgate exigir que o juiz, no exercício de seu mister, seja apenas ‘la bouche de la loi’, no sentido de que haverá uma única solução para o caso concreto, de acordo com o que fora anteriormente estabelecido pela texto legal, e essa solução deverá perpetuar-se no tempo. 
Conforme afirma Plácido Fernández-Viagas Bartolomé: “La concepción del Juez como una máquina perfecta que, ante cada concreto litigio, tiene una solución única previamente fijada constituyó una de las aspiraciones originarias del pensamiento ‘ilustrado’”.<a class="sdfootnoteanc" href="#sdfootnote1sym" name="sdfootnote1anc">1</a>
O positivismo jurídico, que tenta a todo custo ressurgir diante dos novos tempos em que se encontra a realidade nacional, reclama um juiz ‘neutro’, equidistante da realidade social, satisfatoriamente seguro na sua zona de conforto de simplesmente aplicar a lei ao caso concreto, pouco importando as consequências sociais, econômicas, culturais, que possam decorrer de sua decisão. 
A visão de um juiz dissociado do contexto social, marginalizado da sociedade, purificado de qualquer concepção ideológica, social, cultural e psicológica, costuma-se denominar de “juiz asséptico”, que, segundo J. A. G. Griffith, corresponde à figura de alguém que “(...) quando se dispõe a julgar, deve atuar como eunuco político, econômico e social, desinteressado do mundo fora do tribunal”.<a class="sdfootnoteanc" href="#sdfootnote2sym" name="sdfootnote2anc">2</a>
Porém, na realidade, a frase proferida pelo Moleiro de Sans-Souci jamais teve a conotação de privilegiar o positivismo jurídico como a essência do Direito e por consequência natural da segurança jurídica.
A afirmação de que existem juízes em Berlim teve por objetivo demonstrar que contra o autoritarismo e o exercício ilegítimo do poder haveria alguém em que o cidadão berlinense comum poderia seguramente depositar toda sua confiança no sentido de que a tirania do exercício ilegítimo e corrupto do poder não iria subjugar uma nação inteira.
A crença do Moleiro nos juízes de Berlim respalda-se justamente na concepção de que o Juiz não se curvaria ao ilegítimo exercício do poder estatal, ou, o que é pior, não se omitiria em afrontar o poder tirânico do soberano, mesmo que para isso fosse necessário construir novas concepções do Direito e de Justiça social.
Há, portanto, certo equívoco na interpretação do episódio narrado, em especial quando se afirma que o juiz, ao interpretar um texto normativo, deve submeter-se, acriticamente, ao normativismo jurídico formal, insensível às mudanças e às exigências sociais que historicamente e legitimamente ocorrem.
Definitivamente, segundo Eugenio R. Zaffaroni, esta imagem não é mais que um instrumento de ditadura ética da pior espécie, “(...) condicionada pelo processo interacionista, que nos explica a tendência em assumir as atitudes que nos exigem conforme os estereótipos, e a corresponder positivamente a eles”.<a class="sdfootnoteanc" href="#sdfootnote3sym" name="sdfootnote3anc">3</a>
É utópico pretender-se que o juiz não seja cidadão, que não se vincule a certa ordem de ideias, que não compreenda o mundo segundo uma visão nitidamente personalíssima e individual.
A realidade impõe-se à ficção: “(...) también los jueces tienen una ideología política que, insisto, expresan además a través de sus resoluciones judiciales o, incluso, por vías paralelas, en el proceso político general”.<a class="sdfootnoteanc" href="#sdfootnote4sym" name="sdfootnote4anc">4</a>
Essa afirmação pode, em princípio, diante de uma reflexão menos acurada, parecer desconfortável e gerar certa inquietação. Contudo, desvestindo-se de uma perspectiva preconceituosa e reacionária, evidencia-se intuitivamente o seu acerto, pois o juiz não pode ser neutro, justamente “(...) porque não existe a neutralidade ideológica, salvo na forma de apatia, irracionalismo ou decadência do pensamento, que não são virtudes dignas de ninguém e menos ainda de um juiz (...)”.<a class="sdfootnoteanc" href="#sdfootnote5sym" name="sdfootnote5anc">5</a>
A própria tarefa de interpretar a lei não é uma atividade neutra, pois, diante de um caso concreto, o resultado da interpretação não é idêntico para um liberal e um conservador, um socialista ou um democrata-cristão.
Interpretar, na verdade, é dar vida a uma norma. A norma, por sua vez, é simples proposição hipotética de conduta humana. É um objeto ideal invisível, uma vez que o texto escrito é a representação da norma, mas não ela própria. Esse objeto ideal é suscetível de ser percebido pelo raciocínio e pela intuição. 
O sujeito que reflete, mesmo nas ciências da compreensão, “(...) não consegue evadir-se do contexto histórico-efeitual de sua situação hermenêutica, visto que sua compreensão sempre está implicada nesse acontecer”.<a class="sdfootnoteanc" href="#sdfootnote6sym" name="sdfootnote6anc">6</a>
E é justamente essa inserção do magistrado no seu contexto histórico-efeitual que permite uma nova leitura dos textos normativos, para o fim de atualizar a norma jurídica às perspectivas sociais de um determinado momento histórico, o que muitas vezes conduz a uma quebra de paradigma normativo. Essa situação é perfeitamente observável na decisão do Supremo Tribunal Federal que, ao interpretar o texto da Constituição que diz que o réu não poderá ser considerado culpado antes do trânsito em julgado da decisão, permitiu o cumprimento provisório da pena mediante a existência de decisão condenatória proferida em segundo grau de jurisdição. Ainda que não se possa concordar com essa nova perspectiva, não há dúvida de que, efetivamente, houve quebra de paradigma normativo.
Diante dessa perspectiva pró-ativa da magistratura, é que a sociedade brasileira, assim como ocorreu com o Moleiro de Sans-Souci, cada vez mais está acreditando que ‘existem juízes no Brasil’, não para simplesmente aplicar a lei ao caso concreto, mas, acima de tudo, para auscultar os sussurros dos anseios sociais por uma Justiça incorruptível e prontamente ávida para confrontar o exercício ilegítimo do poder político, econômico ou mesmo social.
A crença do cidadão brasileiro em um Poder Judiciário sensível às mudanças e aos anseios sociais, totalmente receptivo para dar nova vida ou novo sentido às normas jurídicas, permite afirmar, quer queira, quer não, que existem juízes no Brasil.
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<div id="sdfootnote1">
<a class="sdfootnotesym" href="#sdfootnote1anc" name="sdfootnote1sym">1</a>. Viagas Bartolomé, Plácido Fernández. El juez imparcial. Granada: Comares, 1997. p. 19.
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<div id="sdfootnote2">
<a class="sdfootnotesym" href="#sdfootnote2anc" name="sdfootnote2sym">2</a>. Zaffaroni, Eugenio Raúl. Poder Judiciário – Crise, acertos e desacertos. Trad. Juarez Tavares. São Paulo: RT, 1995. p. 91.
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<div id="sdfootnote3">
<a class="sdfootnotesym" href="#sdfootnote3anc" name="sdfootnote3sym">3</a>. “A ‘moralidade judicial’ ou ‘ditadura ética’ (na versão doutrinária mais sofisticada, a ‘etização do direito’) é produto deste mecanismo.” (Idem, ibidem.)
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<div id="sdfootnote4">
<a class="sdfootnotesym" href="#sdfootnote4anc" name="sdfootnote4sym">4</a>. Idem., p. 89-90.
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<div id="sdfootnote5">
<a class="sdfootnotesym" href="#sdfootnote5anc" name="sdfootnote5sym">5</a>. Idem, p. 92. 
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<div id="sdfootnote6">
<a class="sdfootnotesym" href="#sdfootnote6anc" name="sdfootnote6sym">6</a>. Gadamer, Hans-Georg. Verdade e método II – Complemento e índice. Petrópolis: Vozes, 2002. p. 280.
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JOTA

É utópico pretender-se que o juiz não seja cidadão, que não se vincule a certa ordem de ideias

Quer queira, quer não, existem juízes no Brasil

É utópico pretender-se que o juiz não seja cidadão, que não se vincule a certa ordem de ideias