Caroline Stéphanie Francis dos Santos Maciel

Na antiguidade romana, o Imperador Septímio Severo teria alcançado a legitimidade de poder com o boato de que era o irmão perdido de seu antecessor e, por isso, a pessoa mais legítima para o cargo (Marqués, 2018). No final de 2002, o Congresso norte-americano autorizou a operação conhecida como “Invasão ao Iraque” por coalizão liderada pelos Estados Unidos, baseada em indícios de armas de destruição em massa, que posteriormente foram considerados – no mínimo – levianos. Em 2021, o Congresso brasileiro discute o PL 2630/2020 sobre a disseminação de conteúdo falso em redes sociais, com a criação de Grupo de Trabalho específico no tema e alteração da legislação em veiculação de propaganda eleitoral para as eleições de 2022.
Esses são alguns exemplos que ilustram como os boatos ou notícias falsas sempre existiram, em momentos históricos, países e culturas distintas. No entanto, longe de significarem que não há nada a ser feito, é possível inferir apenas que se o debate girar em torno do fim do uso político da mentira – técnica tão antiga quanto a humanidade – está fadado ao fracasso. Para uma alteração legislativa de sucesso, é preciso entender que agora a disseminação de conteúdo falso é diferente do passado e se há fatores institucionais que reforçam esse cenário.
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Sem dúvidas, a velocidade da circulação de notícias por representações visuais na Roma Antiga nem se compara com o compartilhamento de postagens ou encaminhamento de mensagens com teor falso em redes sociais e mensageria privada. Na era da comunicação de massas, os riscos de desinformação para a estabilidade das instituições brasileiras aumentam exponencialmente, exigindo remédios legislativos proporcionais à gravidade e urgência da questão.
Quanto à estrutura institucional, especialmente as regras eleitorais, não poderia ser mais cirúrgico o diagnóstico de Levtisky &amp; Ziblatt (2018) em uma analogia ao sono coletivo e gradual erosão da democracia no mundo contemporâneo, de tal modo que, de repente, sociedade e “instituições independentes descobrem que se encontram dentro de um sistema [...] onde não há mais nada próximo de um campo de jogo nivelado”. Nesse sentido, faltariam proteções jurídicas para assegurar esse nivelamento na nova realidade política digital.
À primeira vista, o caminho mais direto seria assegurar que os usuários de redes sociais não insiram conteúdo falso nas suas mensagens ou rompam de imediato com a cadeia de compartilhamento. Nesse sentido, uma nova lei seria estruturada com desestímulos à disseminação, sejam eles de ordem econômica, civil ou criminal além da adoção de medidas educativas e campanhas informativas pelo Poder Público. No entanto, um distanciamento crítico da exata natureza do problema nos permite perceber a insuficiência dessas soluções (Delley, 2004), que não atingem as causas da corrosão da confiança dos cidadãos nas instituições, inclusive nas regras do jogo eleitoral.
Na verdade, a causalidade entre a conduta de quem insere a notícia falsa e gera o resultado danoso posterior – por exemplo, espalhar um boato sobre um adversário político – é substancialmente afetada pelo ambiente digital onde ela ganha força. Em outras palavras, precisaríamos que uma nova lei tenha mecanismos relativos à arquitetura das redes sociais para que haja uma chance de efetividade, reforçando a confiança social nas estruturas de poder.
Como narrado por Denis McQuail (2010), renomado teórico de comunicação de massas, o efeito de espiral influencia o sucesso da disseminação da notícia falsa. Nesse sentido, os usuários são guiados pelo que pensam ser a opinião dominante e a divergente no ambiente digital, com tendência a escondê-los quando em minoria e expressá-los com entusiasmo se em maioria. De forma acelerada, a suposta opinião dominante ganha cada vez mais peso até se tornar incontestável, seja ela falsa ou não. Em uma analogia bem simples, medidas legislativas para contestá-la apenas ao final dessa espiral são tão efetivas quanto um cachorro correndo atrás do próprio rabo. Desse modo, o desenho da infraestrutura técnica de redes sociais deve levar isso em conta para evitar ao máximo que a espiral se inicie ou interrompa antes que tome proporções irremediáveis.
Fixadas essas premissas, conseguimos direcionar nosso olhar para o cerne da discussão: o funcionamento dos algoritmos das redes sociais e o acesso a essas plataformas. Por serem alimentados com dados parciais, muitas vezes enviesados, podem gerar resultados equivocados, reforçando crenças e gerando danos que excedem o mundo virtual. Por exemplo, direcionar conteúdo (como notícias ou anúncios) com base em preferência política; excluir conta a partir de decisão automatizada de violação de termo de uso ou, por fim, resultados de busca na internet baseados em padrões étnicos ou orientação sexual.  Em todos esses casos, pode haver critérios discriminatórios por detrás dos resultados aparentemente neutros da tecnologia envolvida.
Apesar da aparente complexidade, na verdade, algoritmos nada mais são que simplificações matemáticas da realidade, traduzidas em modelos que resultam em decisões, com maior ou menor grau de automatização. Por terem uma natureza decisória envolvida em uma ou mais etapas do processo, não poderiam ser efetivamente neutras, mas esse véu da neutralidade tem sido a escusa de responsabilidade.
O cenário se agrava quando essas decisões são tomadas por grandes plataformas digitais e afetam diretamente o acesso da maioria dos brasileiros que dependem dessas infraestruturas. Em razão disso, é preciso pensar em como assegurar a transparência e a auditoria dessas plataformas para que observem preceitos éticos, objetivos e jurídicos vigentes no país. Nesse sentido, apesar do avanço na legislação de proteção de dados pessoais, modelos preditivos sofisticados têm alegado não estarem diretamente abarcados quando chegam em elevado nível de abstração e deixam de ser diretamente relacionados a pessoas específicas (Borgesius, 2019). Consequentemente, hoje no Brasil há uma autorregulação irrestrita de redes sociais por termos de uso cuja transitoriedade reforça a imagem de direito efêmero, incapaz de orientar duradouramente o futuro (Ost, 2005). Ao contrário das diretrizes da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE) sobre inteligência artificial e avanços em outras jurisdições na observância dos direitos de usuários finais e profissionais de plataformas, ainda não temos diretrizes legislativas brasileiras concretas de transparência e responsabilidade de redes sociais, o que abre brechas significativas para excessos, inclusive a discriminação algorítmica.
<blockquote class="jota-article__eye">O atual desafio legislativo é, portanto, como imputar obrigações a essas plataformas no combate à disseminação digital de conteúdo falso, assegurando regras procedimentais mínimas proporcionais ao porte e risco.</blockquote>
Assim, com o PL 2630/2020, os parlamentares brasileiros são convidados a tomar uma importante decisão, considerando quatro dos principais cursos de ação legislativa possíveis: i) adequar a infraestrutura técnica dessas plataformas, em linha com os debates internacionais no tema; ii) apenas responsabilizar o usuário, com efeitos limitados; iii) medidas educacionais para todos os envolvidos, com efeitos graduais; ou iv) manter o atual cenário de vácuo legislativo.
Uma combinação dos três primeiros parece ser a medida mais equilibrada, de modo que uma nova lei carregaria os benéficos efeitos simbólicos, mas também vá além e tenha efeitos práticos para os milhões de usuários brasileiros que hoje dependem dessas infraestruturas para se comunicar, veicular publicidade, usufruir de serviços ou até mesmo prestá-los.
Como bem colocado por Ulysses Guimarães à época da promulgação da Constituição de 1988, “os cidadãos são poderosos e vigilantes agentes de fiscalização”, mas precisam ter acesso às condições mínimas para exercer seus direitos em plataformas digitais. Caso contrário, ficam à mercê de decisões que não entendem e nem conseguem questionar.
Portanto, as preocupações com a transparência e regularidade das eleições de 2022 e com a disseminação de conteúdo falso em redes sociais ganham novas proporções quando percebemos que giram em torno da arquitetura das grandes redes sociais e da garantia de não discriminação algorítmica.
Esse parece ser o caminho para a legislação brasileira dar concretude às diretrizes de transparência e responsabilidade de plataformas digitais.
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Referências:
BORGEGIUS, F. Strenghthening legal protection Against discrimination by algorithms and artificial intelligence. Taylor Francis Online, v. 24, issue 10.
<a href="https://www.tandfonline.com/doi/full/10.1080/13642987.2020.1743976" target="_blank" rel="noopener noreferrer">https://www.tandfonline.com/doi/full/10.1080/13642987.2020.1743976</a>
DELLEY, Jean-Daniel. Pensar a lei, introdução a um procedimento metódico. Cadernos da Escola do Legislativo, v. 7, n. 12, 2004. <a href="https://www.al.sp.gov.br/StaticFile/ilp/pensar_a_lei_-_jean-daniel_delley.pdf" target="_blank" rel="noopener noreferrer">https://www.al.sp.gov.br/StaticFile/ilp/pensar_a_lei_-_jean-daniel_delley.pdf</a>.
LEVITSKY, S.; ZIBLATT, D. How democracies die. Crown: 2018.
MCQUAIL, Dennis. Mass communication theory. Sage: 2010.
OST, François. O tempo do direito. Edusc: 2005.
Links consultados:
<a href="https://www.nexojornal.com.br/externo/2019/11/24/A-parcialidade-dos-algoritmos" target="_blank" rel="noopener noreferrer">https://www.nexojornal.com.br/externo/2019/11/24/A-parcialidade-dos-algoritmos</a>
<a href="https://www.nytimes.com/2019/08/11/world/americas/youtube-brazil.html" target="_blank" rel="noopener noreferrer">https://www.nytimes.com/2019/08/11/world/americas/youtube-brazil.html</a>
<a href="https://brasil.elpais.com/brasil/2018/06/08/cultura/1528467298_389944.html" target="_blank" rel="noopener noreferrer">https://brasil.elpais.com/brasil/2018/06/08/cultura/1528467298_389944.html</a>
<a href="https://legalinstruments.oecd.org/en/instruments/OECD-LEGAL-0449" target="_blank" rel="noopener noreferrer">https://legalinstruments.oecd.org/en/instruments/OECD-LEGAL-0449</a>
<a href="https://rm.coe.int/draft-recommendation-of-the-committee-of-ministers-to-states-on-the-hu/168095eecf" target="_blank" rel="noopener noreferrer">https://rm.coe.int/draft-recommendation-of-the-committee-of-ministers-to-states-on-the-hu/168095eecf</a>
<a href="applewebdata://F160CB74-44FD-441A-BCAF-89DDE4A643A1#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Este texto é resultado parcial das pesquisas da autora e não configura posicionamento institucional.

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