José Reinaldo de Lima Lopes

A expressiva votação do candidato presidencial da extrema direita, que arrastou consigo uma onda também nos legislativos, aponta para certa tendência dos brasileiros - nem passageira nem recente. Em quase todas as eleições majoritárias que disputou, a centro-esquerda precisou de um segundo turno para ganhar,  e quando ganhou foi sempre com grande esforço e em circunstâncias em que candidatos conservadores tiveram algum problema especial. Em resumo, os conservadores sempre ganharam mais facilmente no Brasil.
A enorme migração de votos de Geraldo Alckmin para o capitão reformado indica também quanto o eleitorado do PSDB era formado por quem não teme alguém declaradamente contrário aos princípios democráticos, para quem a democracia, com seus institutos propositalmente feitos para retardar, às vezes mesmo para impedir certas decisões, representa um obstáculo. A democracia para muitos é um obstáculo, não um valor. Para eles, o povo não é o complexo plural de pessoas que fazem parte de uma sociedade política na qual nasceram: para eles o povo é uma unidade ideológica compactada, uma família na qual não pode haver discórdia, uma torcida de um só time.
Essas duas ideias – a democracia como obstáculo e o povo como união apenas dos que pensam da mesma maneira – definem seu pouco apreço pela democracia. Em sua visão simples, democracia significa que a maioria manda: se a maioria quer, seja feita a sua vontade. E o povo deve ser unânime: os dissidentes devem ser hostilizados, se possível excluídos, se necessário eliminados.
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As democracias constitucionais, como seria o caso do Brasil, não são isso. São um sistema pelo qual a maioria pode querer e realizar certas coisas, mas não tudo. São regimes pelos quais as maiorias episódicas são limitadas por regras permanentes, as regras do jogo democrático. E nos quais minorias – de opinião (os dissidentes) ou de identidade (os diferentes) - têm direito a não serem eliminadas sumariamente, a não serem fuziladas sumariamente. Democracias também impõem separação de poderes: juízes não tomam decisões de governo, nem mudam as leis, não decidem sobre “questões eminentemente políticas”, como se diz em direito constitucional.
Da mesma forma, proíbe-se que os outros poderes avoquem para si ou suspendam causas que tramitam no Judiciário. Os limites valem, pois, também nas relações entre os poderes do Estado. Juízes devem sujeitar-se à lei e não podem  conduzir processos visando a uma sentença pré-concebida: toda atitude que escapa a esse modelo transforma-os em  suspeitos e provoca desmoralização do próprio Judiciário. Não são justiceiros nem vingadores. Não importa o quanto sejam populares no curto prazo, o resultado é sempre desastroso para a democracia. Simples assim.
Nas democracias o povo não é um conjunto de pessoas que escolheu viver juntas, uma associação de amigos, um clube social: não pressupõe identidade cultural e ideológica. Nas democracias reconhece-se que o povo, formado por gente que simplesmente nasceu no território de um certo Estado, é uma unidade política, e o que o faz sua unidade é a submissão a um mesmo regime político e às mesmas leis. A identidade “nacional” exacerbada, o nacionalismo, o patriotismo, frequentemente degeneram em corrosão da democracia. Uma frase como o “ame-o ou deixe-o” é sinal claro de que não se entendeu bem o que é democracia.
O povo brasileiro, no sentido político, o conjunto dos cidadãos, não é comunidade fechada, nem associação voluntária, um clube de amigos, não é uma igreja, não é uma torcida organizada. A reunião dos indivíduos nascidos no Brasil é um acaso, um fato da reprodução dos organismos humanos que aqui se encontram. O “ideal nacional” na democracia é a vida segundo as regras do respeito universal. A reprodução da ordem democrática é diferente da reprodução orgânica dos indivíduos. Por isso, a democracia garante direitos a quem aqui nasceu e aqui vive sem exigir unidade ideológica, sem impor que quem pensa diferente deva ser expulso da “comunhão política nacional”.
Tem medo de Bolsonaro e seus eleitores justamente quem concebe a democracia desse jeito, uma vez que democracia,  república e “comunidade política” são o que são porque se distinguem de torcidas organizadas, de famílias constituídas pelo afeto pessoal, ou de igrejas que congregam  apenas os convertidos à mesma fé: os não crentes não podem participar da mesma mesa eucarística, ou das liturgias de cada religião. Mas os cidadãos têm sempre o direito de partilhar o espaço comum da república. A fé que a democracia demanda é nela mesma, é em suas regras e procedimentos que visam salvaguardar o direito de todos, mesmo dos dissidentes e diferentes.
Justamente por isso, têm medo os que vivem da liberdade: pesquisadores, cientistas, professores, intelectuais, jornalistas, artistas, inovadores, os que vivem da expressão de ideias e têm por função social alargar conhecimento, colocar a tradição, o que pensa a maioria; aqueles que escapam da forma de vida administrada, gerenciada, disciplinada, característica de outras atividades. O apelo à liberdade pode não atrair imediatamente os que dela precisam apenas para conduzir a esfera da vida privada: suas famílias, suas oficinas, suas fábricas, suas empresas.
A liberdade de empresa vive, prospera e avança perfeitamente bem nas ditaduras. O nazismo e o fascismo deram disso prova histórica. Mas também deveriam ter medo aqueles cuja única garantia é a lei: porque aparentemente o discurso da ordem e da segurança volta-se contra o “outro”, mas se o poder de dizer quem é o “outro” for delegado a uma maioria irada e conduzida por fake news o resultado trágico é que qualquer um, inclusive você, pode virar o “outro” a qualquer momento, como diversos casos de linchamento de inocentes provaram e provam frequentemente no Brasil.
Talvez a maioria episódica não perceba que a qualidade de suas vidas depende da liberdade de espírito e da impessoalidade das autoridades, de autoridades que não pretendam assumir a justiça e a vingança, sobretudo de autoridades que não digam publicamente em palanque de campanha que se pode sair fuzilando os adversários. Tudo deveria ter limite.
Na Academia somos formados para ouvir e discutir ideias alheias e diferentes. Muita gente, porém, deseja calar os outros. Esse “cala a boca” do movimento pré-golpe e em outras oportunidades – que continua a se repetir e tende a se multiplicar - é um prenúncio do que está por vir. Como diz o verso do alemão Heinrich Heine, “foi apenas um ensaio” porque ali onde se começa queimando livros, termina-se queimando gente.

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JOTA

Na Academia somos formados para ouvir e discutir ideias alheias e diferentes. Muita gente, porém, deseja calar os outros

Quem tem medo da onda da direita?

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