André Porto

Embora a vasta literatura econômica venha defendendo majoritariamente os benefícios inequívocos que a concorrência na prestação de serviços proporciona aos consumidores, temos observado uma resistência inexplicável das autoridades responsáveis pelo serviço regular de transporte rodoviário coletivo interestadual de passageiros (TRIP) em adotar medidas que efetivamente promovam maior competição no setor.
Historicamente, o funcionamento do setor de transporte rodoviário de ônibus interestadual foi tratado como atividade dependente de permissão – um regime que, contraintuitivamente ao que se acredita, favoreceu fortemente a formação de oligopólios, ainda mais numa realidade em que, na prática, as linhas vêm se arrastando sob contratos precários, muitas delas sem nunca ter passado por licitação.
Em 2014, contudo, foi tomada uma decisão de Estado para migrar da permissão para um regime de outorgas por meio de autorizações, com o objetivo de aumentar a concorrência no setor e beneficiar os usuários, mudança efetivada na <a href="https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2014/Lei/L12996.htm">Lei 12.996/2014</a>. Uma referência positiva desse modelo foram os bons resultados verificados em outros modais, como a aviação civil. Além disso, considerou-se a acentuada dificuldade de realização de processo licitatório para regularização do regime de permissão. Houve a avaliação correta de que serviços de transportes, em função principalmente de inovações tecnológicas, cada vez mais tenham que migrar para ambientes regulatórios de mais competição, visando melhor qualidade de serviços, menores preços e reforço ao bem-estar dos usuários.
Esse processo de abertura do setor a uma maior competição empresarial, contudo, tem acontecido de maneira muita lenta, o que prejudica os consumidores.
Empresas que já atuam no transporte rodoviário de passageiros parecem temer a concorrência e tentam barrar nas diversas instâncias do Poder Judiciário o regime de autorizações para a outorga de novas linhas. A gente sabe o porquê. Dados da própria <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/antt">ANTT</a> mostram que mais de 70% das rotas interestaduais hoje dependem de um único operador, configurando um monopólio para a maior parte dos usuários desse serviço.
Felizmente, há alguns meses, tanto o Tribunal de Contas da União (TCU) quanto o Supremo Tribunal Federal (STF) proferiram decisões inequívocas no sentido de reafirmar a constitucionalidade e aplicabilidade da outorga do serviço por meio de autorizações (no lugar do falido modelo de licitação), visando garantir maior e melhor oferta do serviço prestado atualmente por poucas empresas.
O mercado está vivendo agora em 2023 mais um momento crucial nesse processo de exposição a uma maior competição. A Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) reabriu recentemente a consulta pública para debater o novo marco regulatório do setor, agora sob o modelo de outorga por autorização. Seria a oportunidade perfeita para promover a real abertura e fazer jus ao regime já aprovado e endossado pelas altas instâncias jurídicas. No entanto, em contradição com as decisões do STF e do TCU e da própria legislação federal, a última minuta proposta pelo órgão regular, em julho de 2023, parece querer deixar tudo como está, protegendo monopólios e criando barreiras para que mais empresas atuem no setor. Com isso, os mais de 100 milhões de brasileiros que usam o transporte rodoviário continuarão a ser atendidos da mesma forma como vem acontecendo há décadas, com poucas ofertas de linhas e preços elevados.
Por exemplo, essa minuta da ANTT define que haverá uma série de restrições para entrada de novas empresas nas linhas mais relevantes do País, em termos de números de passageiros atendidos e conexões com outras rotas. Segundo uma lógica de classificação de mercados de cálculo duvidoso, rotas como Brasília-Rio de Janeiro ou Porto Alegre-São Paulo, por exemplo, só admitiriam a entrada de mais uma empresa. E pior: certos mercados ficarão ainda totalmente protegidos, sob o pretexto de já estarem equilibrados o suficiente. É o caso das rotas Brasília-Londrina e Goiânia-Natal, hoje operados por apenas duas empresas cada, configurando o que chamamos de duopólio, onde não poderá entrar nenhuma nova empresa. Nada disso coaduna com as premissas do regime de autorizações.
Como se não bastasse, a minuta também determina a regra de transição de um ano para iniciar esse processo de pedido de linhas. Ou seja, se até o primeiro semestre de 2025 não serão avaliadas (sob pena de não serem aceitas) nem outorgadas novas autorizações, já existe um descompasso com a janela de possível entrada, o que acaba trazendo um diferencial competitivo para quem já está operando no mercado.
Recentemente, a Subsecretaria de Regulação e Concorrência, subordinada à Secretaria de Reformas Econômicas do Ministério da Fazenda, produziu <a href="https://sei.antt.gov.br/sei/modulos/pesquisa/md_pesq_documento_consulta_externa.php?nkrGUIo_Q3xFTsS2gYBXejIvn84qXyqPtdimevgCbSanTax7y14DaeWnx8dqGS1iCB2e9vW_a727zS5adGo0XWGHOBzLlK3xp4CTcqFnKxLJZwkU0tpx62-rVtWEd_QM">nota técnica</a> sobre o processo de regulamentação do TRIP afirmando de forma inequívoca que “a concorrência pode levar benefícios para os consumidores, como tarifas mais baixas, melhoria da qualidade dos serviços, adoção de inovações tecnológicas e oferta de benefícios adicionais. No entanto, também é importante que a concorrência seja regulada de forma a garantir a segurança dos passageiros, a conformidade com as normas vigentes e a sustentabilidade do setor.”
Continua a nota técnica, com relação à produção regulatória da ANTT:
<blockquote class="jota-article__citation">“Estabelecer a viabilidade econômica de uma operação, de forma equivocada, em um regime de autorização em que há liberdade de preços; discricionariedade dos operadores na configuração de sua malha operacional (inclusive com interação com redes de transporte intermunicipais; urbanas e de encomendas) e contestabilidade do mercado; como forma de criar barreira à entrada pode gerar falhas de governo com prejuízos significativos aos usuários do serviço público que se pretende proteger".</blockquote>
Se a proposta de regulação do TRIP que foi colocada em discussão prevalecer, perderemos uma oportunidade única para ampliar a oferta de serviço no setor e, consequentemente, realmente democratizar o acesso ao modal. Em um ambiente sem condições igualitárias de disputa, o principal afetado é o usuário.

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JOTA

Se a proposta de regulação do TRIP prevalecer, perderemos oportunidade única para ampliar oferta de serviço no setor

Quem tem medo da concorrência?

Se a proposta de regulação do TRIP prevalecer, perderemos oportunidade única para ampliar oferta de serviço no setor de transporte rodoviário