Siddharta Legale

Tatiana Cardoso Squeff

A defesa do deputado <a href="https://www.cnnbrasil.com.br/politica/2021/02/19/aliado-de-silveira-preve-recurso-a-corte-interamericana-de-direitos-humanos" target="_blank" rel="noopener noreferrer">Daniel Silveira</a> (PSL/RJ) tem ventilado a possibilidade de indivíduos acessarem a Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH). Isso seria possível? Não é preciso fazer suspense: a resposta é não, com base na Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH), mais conhecida como Pacto de São José da Costa Rica, seja em termos procedimentais, seja em termos de direito material. Mais interessante do que a resposta negativa, porém, são os motivos pelos quais isso não é possível e a compreensão de para que o sistema interamericano é vocacionado.
Em termos procedimentais, não é possível que os indivíduos acessem diretamente a Corte IDH, sendo apenas permitido às pessoas, grupos de pessoas e organizações não governamentais devidamente registradas em um Estado-Membro peticionem perante a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), nos termos do art. 44 da CADH<a href="applewebdata://E6B52E85-BD01-409D-AD18-5657DE9C3AA2#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>. À Corte apenas cabe a Comissão e aos Estados-Membros acessar, nos termos do art. 61 da CADH.
<a href="https://conteudo.jota.info/poder-contato"><img class="size-medium wp-image-292717 aligncenter" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2021/01/jota-pro-poder.jpg" alt="" width="688" height="688" /></a>
Importa dizer que a Corte IDH compreende que a CIDH é uma instância fundamental de proteção dos direitos humanos e, nem mesmo que o Estado acusado desejasse, ele não poderia abrir mão dessa etapa perante a CIDH, como restou estipulado na primeira opinião consultiva da história da Corte IDH, <a href="https://www.refworld.org/cases,IACRTHR,3ae6b6763.html" target="_blank" rel="noopener noreferrer">Viviana Gallardo et al. (1981)</a>, que deixou claro a impossibilidade de a Costa Rica renunciar a etapa da CIDH. Outrossim, relevante dizer que Corte IDH poderia outorgar medidas provisórias em favor de indivíduos, tal como o fez, por exemplo, no caso do <a href="https://www.corteidh.or.cr/docs/medidas/pedrinhas_se_01_por.pdf" target="_blank" rel="noopener noreferrer">Complexo Penitenciário de Pedrinhas (2014)</a> buscando proteger a vida e a integridade pessoal das pessoas privadas de liberdade situadas em tal local. Essa possibilidade está prevista no Pacto de San José, pontualmente em seu art. 63(2), assim como no Regulamento da Corte, em seu art. 27. Neste, pontualmente, tem-se que se o caso já estiver sob análise da Corte, havendo “extrema gravidade e urgência e quando for necessário para evitar danos irreparáveis às pessoas, a Corte, ex officio, poderá ordenar as medidas provisórias que considerar pertinentes”, assim como igualmente poderão fazê-lo as próprias (supostas) vítimas ou seus representantes.
Agora, “tratando-se de assuntos ainda não submetidos à sua consideração, a Corte IDH poderá atuar por solicitação da Comissão”. Novamente, portanto, seria necessário a(s) vítima(s) ou seu(s) representante(s) acionar(em) a Comissão – e não a Corte – para obtenção de cautelar, tal como já fez, por exemplo à <a href="https://www.oas.org/pt/cidh/prensa/notas/2018/172.asp" target="_blank" rel="noopener noreferrer">Mônica Teresa Azeredo Benício</a>, companheira da deputada Marielle Franco (PSOL/RJ), assassinada no Rio de Janeiro em 2018. Ocorre que mesmo nesse caso igualmente devem estar presentes alguns requisitos constantes no art. 25 do Regulamento da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, como haver uma situação de “gravidade e urgência” para que a Comissão, por iniciativa própria, ou a pedido da parte possa “solicitar de que um Estado adote medidas cautelares” a fim de “prevenir danos irreparáveis às pessoas ou ao objeto do processo relativo a uma petição ou caso pendente”. E no caso Daniel Silveira, não há risco de dano irreparável à justiça para a atuação emergencial desses órgãos.
Com isso, resta evidente que não são todos os casos em que essas cautelares serão outorgadas pela Comissão, vez que o contexto e a iminência do dano em questão deverão ser analisadas para que se seja deferida a tutela. Ademais, para além do cumprimento dos requisitos supracitados, importa ressaltar que a solicitação de medidas à Corte também depende de uma decisão da própria CIDH, na medida em que ela que detém o monopólio da decisão acerca dos casos que podem ser enviados para a Corte IDH, seja em caráter urgente, seja definitivo.
Ato contínuo, pela via normal do sistema, nos termos do art. 44 e 46 da CADH, para que a Comissão admita um caso submetido pela(s) vítima(s) ou seu(s) representante(s), deve haver: (1) violação a um direito; (2) esgotamento aos recursos internos ou denegação de justiça<a href="applewebdata://E6B52E85-BD01-409D-AD18-5657DE9C3AA2#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>; (3) respeito ao prazo de 6 meses do trânsito em julgado ou a demora injustificada, e (4) a submissão não pode estar sendo apreciada por outro órgão internacional<a href="applewebdata://E6B52E85-BD01-409D-AD18-5657DE9C3AA2#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>. Em que pese estar dentro do prazo 06 meses e a não submissão a outros órgãos internacionais, não houve denegação de justiça. Pelo contrário, Daniel teve a oportunidade de defender duas vezes.
<blockquote class="jota-article__eye">Em primeiro lugar, Daniel defendeu-se perante o STF. Cientistas e analistas políticos consideram a decisão da relatoria do ministro Alexandre de Moraes um marco no combate ao extremismo antidemocrático.</blockquote>
A literatura de direito constitucional tem conceitos interessantes, por exemplo, quando consideram o papel da Corte Constitucional no combate à crise da democracia, denominando isso de “jurisdição constitucional anticíclica”.<a href="applewebdata://E6B52E85-BD01-409D-AD18-5657DE9C3AA2#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a> Em segundo lugar, o deputado teve a oportunidade de se defender, politicamente, perante a Câmara onde o Parlamento poderia sustar a sua prisão, mas decidiu mantê-la por 364 deputados foram favoráveis e 130 contrários a prisão do parlamentar. Além disso, ressalta-se que a jurisprudência da Corte IDH, nos termos do caso <a href="https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2016/04/5523cf3ae7f45bc966b18b150e1378d8.pdf" target="_blank" rel="noopener noreferrer">Barreto Leiva vs. Venezuela (2009)</a>, não enxerga, aqui, uma violação no julgamento em única instância por conta do foro por prerrogativa de função como uma violação ao acesso à justiça, porque decorre de regras de competência dentro da competência soberana de cada Estado.
Em termos substantivos, por sua vez, tampouco é possível outorgar medidas em favor de Silveira em função da natureza dos argumentos do deputado, em especial, pela defesa do Ato Institucional n. 5, considerando os padrões dos Relatórios da CIDH e das sentenças e medidas provisionais da Corte IDH, judicializar perante o Sistema Interamericano de Proteção de Direitos Humanos (SIDH), os quais permitem dizer que tal conduta seria no mínimo antidemocrática.
Em primeiro lugar, a Organização dos Estados Americanos emitiu uma resolução chamada de <a href="http://www.oas.org/pt/democratic-charter/pdf/demcharter_pt.pdf" target="_blank" rel="noopener noreferrer">Carta Democrática Interamericana</a>, que determina que todas as instituições nacionais devem se subordinar ao Estado de Direito, que, como compreendemos, é um Estado constitucional e convencional de direito. A CIDH e a Corte IDH devem cobrar isso de todos os órgãos do Estado em sua atuação, inclusive do parlamento
Em segundo lugar, a CIDH e a Corte dedicam-se à proteção de pessoas em situação de profunda vulnerabilidade, como a dos trabalhadores escravizados na <a href="https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_318_por.pdf" target="_blank" rel="noopener noreferrer">Fazenda Brasil Verde (2016)</a>, a chacina na <a href="http://www.itamaraty.gov.br/images/Banco_de_imagens/SENTENCIA_FAVELA_NOVA_PORTUGUESfinal.pdf" target="_blank" rel="noopener noreferrer">Favela Nova Brasília (2017)</a> por policiais, obstruções de Cortes constitucionais como a no Peru no governo de Fujimori ou a cautelar da esposa da Marielle Franco.
Em terceiro lugar, a CIDH reconheceu que a imunidade parlamentar formal e material não pode servir para acobertar abusos e desrespeitos aos DH, denunciando o Brasil à Corte IDH no caso <a href="http://cidh.oas.org/annualrep/2007port/Brasil12.263port.htm#_ftn1" target="_blank" rel="noopener noreferrer">Marcia Barbosa vs Brasil (2007)</a> – caso que discute a violação ao acesso à justiça de uma jovem pobre e negra que teria sido assassinada por um parlamentar sem que houvesse investigação, processo e julgamento desse parlamentar e cuja audiência pública foi realizada
Em quarto, estima-se que a CIDH possua cerca mais de 1000 casos de graves violações contra Brasil. Desses, cerca 130 relatórios constam no site da IDH e apenas 30 são relatórios de mérito. Nem 20 casos chegaram a Corte IDH<a href="applewebdata://E6B52E85-BD01-409D-AD18-5657DE9C3AA2#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>. Cada caso decidido deve servir de modelo para os demais e a jurisprudência tem se mantido. Daí, justamente pelo efeito cascata dos casos, a importância e o filtro na prática da CIDH em dedicar a sua energia institucional, tempo, recursos e pessoal às pessoas que mais precisam: os grupos vulneráveis e minorias que historicamente possuem o seu direto de acesso à justiça alijado seja por instituições majoritárias, seja pelo Judiciário.
Nesse passo, deve-se lembrar que os debates em torno da prisão do Deputado do PSL/RJ estão atreladas ao inquérito das notícias fraudulentas (fake news) – Inquérito n. 4781 –, o qual igualmente gerou diversos debates acerca da sua convencionalidade, especialmente por parte da <a href="https://www.estudosnacionais.com/26253/membros-do-mp-denunciam-stf-a-comissao-interamericana-de-direitos-humanos/" target="_blank" rel="noopener noreferrer">Associação Nacional de Membros do Ministério Público (AMPPS)</a> em junho de 2020, após o Supremo Tribunal Federal ter concluído o julgamento Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) n. 572, apontando, por 10×1, pela constitucionalidade do Inquérito.
Para a AMPPS, o inquérito violaria a liberdade de expressão e informação, direitos previstos no Pacto de San José (art. 13), o que, por outro lado, não foi o entendimento do STF. Por exemplo, acerca disso, cumpre avultar o entendimento do Ministro Celso de Mello, segundo o qual “a incitação ao ódio público e a propagação de ofensas e ameaças não estão abrangidas pela cláusula constitucional que protege a liberdade de expressão e do pensamento”. A OEA posiciona-se no mesmo sentido. Por isso, vale pontuar que a Relatoria para a Liberdade de Expressão da <a href="http://www.oas.org/es/cidh/expresion/publicaciones/Guia_Desinformacion_VF.pdf" target="_blank" rel="noopener noreferrer">Comissão Interamericana</a> tem atuado em prol do rechaço às fake news, expressamente apontado a necessidade de combater a desinformação gerada pelas notícias fraudulentas em função das conseqüências nefastas geradas por elas para uma democracia, tal como a apologia ao ódio.
Nesse passo, combater as fake news, preservar os direitos humanos e sustentar a democracia caminham juntos, tal como a própria Comissão <a href="https://www.oas.org/pt/cidh/prensa/notas/2019/231.asp" target="_blank" rel="noopener noreferrer">ressaltou em 2019</a> por ocasião do Dia Internacional da Democracia. Logo, e atenção ao mérito, seria igualmente complicado para a Comissão sustentar uma cautelar ou admitir um caso perante a si neste momento em benefício do deputado, observado o contexto no qual o mesmo é investigado.
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O episódio 53 do podcast Sem Precedentes discute ações sobre a Lei de Segurança Nacional, que tem sido usada em inquéritos contra críticos de Bolsonaro. Ouça:
https://www.youtube.com/watch?v=1062owtx9o4
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<a href="applewebdata://E6B52E85-BD01-409D-AD18-5657DE9C3AA2#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Para mais detalhes, cf. VAL, Eduardo Manuel; LEGALE, Siddharta. As “Mutações convencionais” no acesso À justiça internacional e a Corte Interamericana de Direitos Humanos. In: VAL, Eduardo Manuel; BONILLA, Haidder Miranda. Direitos humanos, direito internacional e direito constitucional: judicialização, processo e sistemas de proteção I. Florianópolis: CONPEDI, 2017.
<a href="applewebdata://E6B52E85-BD01-409D-AD18-5657DE9C3AA2#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> A denegação da justiça, representada pela inexistência de recursos internos efetivos, de cortes imparciais devidamente constituídas ou inclusive de assistência para defesa em alguns casos poderiam configurar exceções à necessidade de cumprimento dos quatro requisitos apontados.
<a href="applewebdata://E6B52E85-BD01-409D-AD18-5657DE9C3AA2#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> Quando se trata de outros órgãos internacionais, refere-se, por exemplo, a algum comitê vinculado aos tratados que compõe o sistema global de proteção de direitos humanos.
<a href="applewebdata://E6B52E85-BD01-409D-AD18-5657DE9C3AA2#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> SOUZA NETO, Cláudio Pereira. Democracia em crise no Brasil. Rio de Janeiro: Eduerj, contratcorrente, 2020.
<a href="applewebdata://E6B52E85-BD01-409D-AD18-5657DE9C3AA2#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> LEGALE, Siddharta. A Comissão Interamericana de Direitos Humanos como Ministério Público transnacional? Entre a análise empírica e uma visão impressionista. In: PIOVESAN, Flávia; LEGALE, Siddharta (Orgs). Os Casos brasileiros na Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Rio de Janeiro: NIDH – UFRJ, 2020.

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JOTA

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