Oto V. Barbosa Nunes

Lançado em 2019, o filme “Bacurau”, dos diretores Kléber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, tornou-se um clássico instantâneo. E como é próprio ao bom cinema, ele consegue — para além de técnica, imagem, movimento e entretenimento — ser peça de reflexão sobre o seu tempo, sobre as referências que esse tempo deve ultrapassar e o estado de coisas que molda o espírito dos novos tempos.
“Bacurau” retrata, com precisão e poesia, a relação entre dois países que existem em um só Brasil; e a paradoxal interdependência que pauta o (e deriva do) descolamento entre centro e periferia. Bacurau, que é também uma ave, tornou-se metonímia: palavra a representar milhares de pequenas cidades do “Brasil profundo”. Que resistem.
E essa resistência é mais do que simplesmente continuar a existir num mapa. Envolve todos os aspectos econômicos, sociais e políticos com que Centro, Sudeste e Sul lidam diariamente. Direito e legislação, por óbvio, estão entre eles. Quando pensamos no “bem legislar” [HESPANHA: 2013], por exemplo, voltamos nossa atenção para o paradigma constitucional e as melhores práticas internacionais.
Esse ideal de racionalização, todavia, dificilmente consegue chegar a Bacurau. Milhões de brasileiros vivem o “dever ser” e as “relações de justiça” em rincões que enfrentam contingências orçamentárias severas, bem como graves déficits de direitos sociais. Tenha-se em perspectiva que 1.302 cidades (com até 5.000 habitantes) abrigam, ao todo, mais de 4,3 milhões de brasileiros (o que corresponde a 23,39% dos municípios do país) e que em outras 1.213 (21,79%), com faixa populacional de 5.000 a 10 mil habitantes, estão 8.559.667 cidadãos [v. Censo 2010]. A baixa qualidade da legislação municipal nessas localidades é potencializadora de desigualdades, sem dúvidas.
Nesse contexto, o Observatório para a Qualidade da Lei da UFMG tem buscado fortalecer, entre suas linhas de pesquisa, o recorte do fazer legislativo em municípios de até 30 mil habitantes. Utilizaremos como exemplo neste texto o trabalho de campo realizado na comarca de Águas Formosas, no nordeste de Minas Gerais (fronteira com a Bahia), composta por sete pequenas cidades – Águas Formosas, Santa Helena de Minas, Umburatiba, Crisólita, Machacalis, Fronteira dos Vales e Bertópolis. Duas delas estão entre os menores IDHs do estado.
Em searas tão distintas quanto direito previdenciário, contratos e direito administrativo/financeiro, percebeu-se que o cipoal normativo municipal, seja pelas lacunas decorrentes da inexistência de legislação, seja pela baixa qualidade de elaboração — levados em conta aspectos como coerência sistemática, técnica legislativa e estabilidade do impacto normativo —, gerou implicações danosas à devida prestação jurisdicional.
No plano do direito previdenciário, chama a atenção caso com repercussões processuais. Em ações ajuizadas com vistas à concessão (ou revisão) de benefício previdenciário derivado de aposentadoria concedida em data anterior à criação de instituto de previdência municipal, a legitimidade passiva ad causam vincula-se diretamente às disposições trazidas pelas leis municipais que criaram os respectivos regimes próprios de previdência social (RPPS).
Estas, por sua vez, baseiam-se amplamente na <a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9717.htm">Lei 9.717/98</a>, a dispor sobre a organização e o funcionamento dos RPPS. Ocorre que, à parte a repetição das regras gerais do diploma de regência, as disposições específicas de cada município costumam estar eivadas de imprecisões sobre: a responsabilidade do ente municipal quanto ao pagamento dos benefícios previdenciários; a caracterização do vínculo jurídico entre os institutos de previdência municipais e o direito subjetivo dos segurados/dependentes; e o aporte dos recursos garantidores do pagamento dos benefícios.
Essas deficiências das leis municipais que tratam do tema acabam por desaguar no Poder Judiciário. O Tribunal de Justiça de Minas Gerais (<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/tjmg">TJMG</a>) não possui entendimento unívoco sobre a matéria — como também não é pacífica a jurisprudência de Cortes de outros estados. Duas decisões recentes, aqui tomadas por referência, são diametralmente opostas, a saber:
<blockquote class="jota-article__citation">"Acórdão 1) TJMG. Agravo de instrumento 1.0000.21.022478-8/001. Publicação: 07/05/2021. 
EMENTA: AGRAVO DE INSTRUMENTO — DIREITO PREVIDENCIÁRIO — SERVIDOR PÚBLICO APOSENTADO — PENSÃO POR MORTE — INSTITUTO DE PREVIDÊNCIA MUNICIPAL DE BAMBUÍ (PREVIBAM) — ILEGITIMIDADE PASSIVA — O simples fato de o falecido servidor ter obtido aposentadoria em ocasião anterior à criação do Instituto não atrai a responsabilidade do município para concessão e pagamento do benefício pretendido (pensão por morte), pois o sistema de previdência foi criado com o objetivo de centralizar a concessão, manutenção e pagamento dos benefícios previdenciários no âmbito municipal (artigo 1º, caput, Lei Municipal n° 2.121/2010), oportunidade em que a obrigação foi integralmente transferida do município para a autarquia previdenciária".</blockquote>
<blockquote class="jota-article__citation">"Acórdão 2) TJMG. Apelação Cível 1.0080.15.005492.4/003. Publicação: 22/01/2020. 
EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL — CONCESSÃO DE PENSÃO POR MORTE — ILEGITIMIDADE DO INSTITUTO DE PREVIDÊNCIA DOS SERVIDORES PÚBLICOS DO MUNICÍPIO DE BOM SUCESSO - BENEFÍCIO SURGIDO ANTES DO REFERIDO INSTITUTO — LEI COMPLEMENTAR MUNICIPAL Nº 3.010/2006 
A Lei Complementar n° 3.010/2006, que dispõe sobre a reestruturação do regime próprio de previdência social dos servidores públicos do município de Bom Despacho, estabeleceu, em seu artigo 89, que os benefícios previdenciários anteriores à sua criação, deveriam ser custeados pelos respectivos entes patronais do Executivo Municipal, das autarquias e da Câmara Municipal. O artigo 90 da referida legislação, aponta que até poderia o instituto de previdência efetuar os pagamentos dos benefícios, desde que os valores fossem a ele repassados. Impõe-se o reconhecimento da ilegitimidade passiva do instituto de previdência municipal, por se tratar de discussão de benefício surgido antes da criação do referido instituto".</blockquote>
Na seara contratual, por sua vez, destacamos que é recorrente a não homologação, pelo Poder Judiciário, de acordos firmados entre municípios e aqueles que com ele contratam (pessoas físicas e jurídicas), em razão da inexistência de lei municipal que autorize a propositura de transações envolvendo processos judiciais. Quando existe um diploma legal nesse sentido, por outro lado, faltam critérios objetivos estabelecidos para que as pactuações sejam firmadas em juízo, de modo que o princípio da isonomia dos exequentes seja respeitado e todos, em iguais condições, possam ser contemplados pelos acordos. Na comarca de Águas Formosas, que nos serve de exemplo, apenas dois entre os sete municípios possuem leis locais que, nesse sentido, são adequadas. Vale ressaltar: muitos dos acordos “perdidos” poderiam atender de modo mais benéfico (e célere) o interesse público.
Quanto ao ponto que destacamos sobre direito administrativo e financeiro, trata-se de controvérsia recorrente: aprovação, por Câmaras Municipais, de projetos de lei que autorizam reajuste de remuneração de servidores em ano eleitoral. Nesses casos, frequentemente instaura-se uma crise de legalidade dessas leis municipais em face da Lei de Responsabilidade Fiscal (limitadora de aumentos de despesas sem indicação de lastro para custeio) e da <a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9504.htm">Lei Federal 9504/97</a> (vedadora de reajuste salarial em ano eleitoral).
Esse contexto costuma envolver disputas políticas entre prefeitos e vereadores, com o processo legislativo servindo de meio de pressão ou vingança. Como consequência, temos uma tempestade perfeita: o manejo de ação direta de inconstitucionalidade (ADI) em Cortes estaduais é usualmente obstado pelo entendimento de que o caso envolveria vulneração constitucional reflexa, sendo inadequado o controle difuso [nos termos do RE n° 727.142 AgR/MS. DJe: 08.03.2016]; a via da ação ordinária também pode ser considerada inadequada, em razão de entendimento jurisprudencial de que pedido único de declaração de nulidade de lei municipal equivale à declaração de inconstitucionalidade da norma [TJMG - AC: 10145120806990001. Publicação: 28/09/2021]; não havendo dotação orçamentária, os chefes do executivo acabam por não aplicar o comando da lei, que resta inefetiva [STF - ADI 3599/DF. DJe: 21/05/2007]; os servidores, desamparados, ajuízam ações requerendo a percepção de reajuste; e ainda pode haver prejuízo à revisão geral anual, quando esta se encontra embutida no inepto reajuste “a maior”.
Esses casos concretos são apenas amostragens preliminares que desbordam de um campo de discussão que, reiteramos, é instigante. Há leis municipais que, de tão excêntricas em suas inconstitucionalidades, fazem parte de certo “folclore jurídico”; todavia, a frequência com que normativas de municípios contrariam a Constituição Federal é espantosamente comum.
De todo modo, seguindo o passo constitucional, que percorre a senda da autonomia municipal — referenciada, aliás, por Paulo Bonavides, como aquela de mais elevado grau de caracterização política e jurídica, entre as formas de união federativa contemporâneas — e das competências legislativas expressas (artigo 30, CF), é possível, também em sede prefacial, apontar meios para a evolução da qualidade do fazer legislativo em pequenos municípios.
A atuação cooperativa da União e dos estados junto a Câmaras Municipais e prefeituras é o primeiro ponto a se mencionar. Ações de capacitação para legisladores, tais quais as promovidas pelo Interlegis, do Senado Federal, bem como a atuação de Escolas do Legislativo podem ser efetivas. Todavia, esse tipo de iniciativa deve ser perene e resguardar interesses locais e vicissitudes da municipalidade.
A metodologia da legística também pode contribuir com o processo. Como <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/pandemia-legistica-regulacao-28042021">já mencionamos neste JOTA</a>, a flexibilidade metodológica desse campo de conhecimento permite que se construa um ciclo de elaboração legislativa virtuoso, aprimorado em colaboração democrática, com adaptação ao contexto local. Vale mencionar: “A proposta da Legística coloca em foco uma alteração na relação comunicativa entre o destinatário/atingido e o legislador no sentido de os aproximar” [SOARES: 2007]. Por certo, investimentos se fazem necessários, mas esse tipo de política pública poderia reverter benefícios aptos a repercutir em todo o sistema jurídico do país.
Por fim, a resposta à pergunta do título, referência ao mais célebre diálogo do filme que serviu de inspiração primeira: quem legisla em Bacurau é… Detentor de uma responsabilidade singular. E esse legislador valoroso deve ser integrado às iniciativas que visam a um fazer legislativo racional, democrático e transformador.
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HESPANHA, António Manuel. Leis bem feitas e leis boas. RIDB, Ano 2 (2013), nº 1. Disponível em: <a href="https://www.cidp.pt/revistas/ridb/2013/01/2013_01_00619_00642.pdf">https://www.cidp.pt/revistas/ridb/2013/01/2013_01_00619_00642.pdf</a>.
BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 32. ed. São Paulo: Malheiros, 2017, p. 355.
SOARES, Fabiana de Menezes. Legística e desenvolvimento: a qualidade da lei no quadro da otimização de uma melhor legislação. Cad. Esc. Legisl. Belo Horizonte, v. 9, n. 14, p. 7-34, jan./dez. 2007.

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