Circundado de apreensões, o segundo turno se confirmou na maior batalha eleitoral pelo cargo máximo da República desde a redemocratização, bem como na corrida para chefe do Executivo em 12 estados. Não obstante a vitória do candidato Lula sobre Jair Bolsonaro no primeiro turno, fato extraordinário e que assinala considerável rejeição ao presidente, ao campo democrático impõe-se um desafio nevrálgico: encarar a afirmação e a reprodução do bolsonarismo, fenômeno que parece prescindir do chefe de Estado dado o retrato de sua impregnação no Congresso e nas casas legislativas estaduais.
Olhar para o bolsonarismo nos convoca a lançar luz sobre uma bricolagem de expressões históricas, políticas e socioculturais caras às desigualdades fundantes da sociedade brasileira; e que encontram no debate racial um ponto de convergência e de observação importante para a leitura da disputa decisiva pela legitimidade do sistema democrático entre nós em 2022. Este constitui o convite feito pelo Observatório da Branquitude com a sistematização do levantamento “Quem ameaça a democracia brasileira é a branquitude: uma leitura racializada da base eleitoral de Bolsonaro em 10 pontos”.
A síntese de evidências busca apresentar uma caracterização das correlações entre as atuações de setores proeminentes da base de apoio do presidente — Forças Armadas (Marinha, Exército e Aeronáutica), agronegócio e empresários —, do próprio chefe de Estado e o curso do regime democrático sob a lente dos estudos críticos de branquitude, lugar de poder material e simbólico que reserva os melhores postos a grupos raciais brancos. E que garante, assim, um país para poucos.
Para o Observatório da Branquitude, discutir democracia, instituições e mercado no Brasil é enfatizar a pertinência da dimensão racial como elemento fundamental para a construção de quaisquer interpretações que se pretendam sistêmicas. A branquitude, em seu aspecto mais visceral e despudorado, pauta e dá tônus aos processos pelos quais se assentam as coalizões entre os atores em debate. As Forças Armadas, o agronegócio e o empresariado bolsonarista manifestam, em suas tomadas de decisão e em seus posicionamentos, a radicalização da defesa de privilégios e benesses dedicadas aos brancos ao longo da história.
Com dados de fontes secundárias, o levantamento revela que, de um universo de 228 militares do alto escalão da Força Aérea e da Marinha brasileiras, 225 são brancos. Isto é, apenas três integrantes se declaram negros (na Força Aérea). Já no Exército, 171 do total de 172 oficiais da elite são brancos, sendo somente um único servidor público, general-de-brigada, declarante da cor preta.
As evidências apontam ainda, não por mera coincidência, a indisposição do militarismo e de suas elites pálidas face à implementação da política federal de reserva de vagas a negros e indígenas na administração pública, em vigência desde 2014, posição que pode ser lida na chave do discurso anticotas. E, no limite, discurso antinegro como reitera o boletim “Quem são os anticotas no Brasil?, igualmente lançado pelo Observatório da Branquitude em 2022.
Oficiais das Forças Armadas também ocupam a maior parte dos cargos de alto escalão ministerial desde 2019, o maior contingente registrado na história da nova República e que supera os governos da ditadura militar. A presença maciça em posições centrais na burocracia política, contudo, não tem garantido o cumprimento adequado de atribuições precípuas das Forças Armadas, como o controle do poder armamentício, em que pese o seu recente apetite institucional para a checagem de votos nas eleições. Um reforço significativo à obscura narrativa presidencial acerca do funcionamento do sistema eletrônico de urnas que, por seu turno, nunca registrou irregularidades desde a sua implantação há 25 anos.
Com relação à fiscalização, produção, venda e importação de armas em circulação, uma auditoria realizada pelo TCU em setembro de 2022 indicou falhas importantes do Exército sobre a atuação de clubes de tiros, lojas de armas e de caçadores, atiradores e colecionadores (CACs), principais beneficiados pela flexibilização do aparato normativo de acesso a armas por civis. Os CACs, organizados em movimentos como o Proarmas, farão sua estreia no Congresso, onde parlamentares formarão a “bancada dos CACs” em 2023, cujas pautas ressoam a agenda da “bancada da bala”, da segurança pública. Não nos custa rememorar que o Brasil é o oitavo país mais letal do mundo, segundo o 16º Anuário Brasileiro de Segurança Pública. E tal letalidade tem cor, raça, gênero e faixa etária: negros, homens e jovens.
No agronegócio, outro setor de apoio a Bolsonaro elencado pela análise, quanto maior a propriedade de terra, maior é a sua ocupação por produtores brancos, embora sejam minoria — 2,2 milhões contra 2,6 milhões de produtores negros. O agro não é pop, contrariando o slogan publicitário. Engendrado por uma elite tão poderosa quanto diminuta, a indústria extrai 85% do valor bruto da produção total em somente 9% dos estabelecimentos, de acordo com o Censo Agropecuário do IBGE (2017).
O agro demanda a reeleição e, com ela, a manutenção e quiçá o incremento dos acordos ideológicos, fiscais e políticos sob os quais a indústria gira, uma vez que conta com robusta representatividade parlamentar. Empresários do segmento somaram quase 70% dos financiadores da recondução presidencial até a primeira semana de setembro: dentre os 100 maiores, 84 pertencem a esse campo, com aporte de R$ 5,3 milhões.
O bloco integra um conjunto de empreendedores de ramos de negócios variados — o empresariado bolsonarista, terceiro setor analisado pelo Observatório. Oito deles estão, a propósito, sob investigação por determinação do Supremo Tribunal Federal (STF), acusados de compartilhamento de mensagens nas redes sociais em defesa de suposto golpe de Estado no caso de vitória de Lula. Essa fatia do empresariado enfrenta ainda denúncias de infrações ambientais e práticas de trabalho análogas à escravidão.
É urgente quebrar os pactos narcísicos da branquitude
Os grupos analisados compõem uma teia complexa de apoio ao atual presidente e, em troca de benesses na relação com o governo federal, põem em risco a estabilidade democrática no Brasil. Para além da imanente brancura, o que os une é justamente a afronta à democracia como forma de manutenção de privilégios, postos de poder e controle da ocupação de espaços por outros segmentos.
Para o bom e salutar jogo democrático, não nos interessa admitir uma mera substituição dessa branquitude supremacista em tela, obscena, por setores políticos alinhados ao que consideramos uma branquitude envergonhada. Tal parcela crítica da branquitude, que pode ser encarnada por parte da oposição, parece, eventualmente, se esforçar na constituição de uma blindagem pública que chancela um posicionamento dito antirracista, quando ainda carece de responsabilização política sobre a produção e reprodução de privilégios. E, em última instância, sobre as engrenagens de vazio de direitos, de violência e de morte de pessoas negras e também indígenas.
Da nossa perspectiva, um novo amanhecer depende do rompimento com os pactos narcísicos da branquitude e da não renovação, conforme acena o ligeiro incremento da bancada feminina na Câmara, que pela primeira vez terá duas deputadas transgênero e mais representações indígenas. Apostamos na promoção de uma plataforma política que sonhe — e se empenhe — na formulação de um Estado que transgrida o estado de coisas, tendo no horizonte uma utopia de nação inclusiva.