Marcela Mattiuzzo

Nos últimos anos, inúmeras autoridades ao redor do mundo começaram a manifestar preocupações com relação à exploração e ao uso inadequado de dados pessoais dos usuários. Desde que a privacidade no ambiente digital se tornou uma questão relevante para os reguladores, as empresas têm frequentemente vocalizado seus esforços para proteger e melhorar o controle dos titulares sobre os seus próprios dados pessoais. Contudo, alguns desses anúncios públicos sobre proteção à privacidade parecem esconder objetivos anticompetitivos.
Uma empresa que fortaleceu significativamente seu discurso de respeito à privacidade foi a <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/apple">Apple</a>, muito embora adotando práticas controversas.
Nesse sentido, diversas autoridades concorrenciais europeias iniciaram investigações contra a política da Apple conhecida como App Tracking Transparency (ATT) e lançada como uma atualização de privacidade do sistema operacional do iPhone (iOS) – vide as notícias disponibilizadas pelas autoridades de <a href="https://en.agcm.it/en/media/press-releases/2023/5/A561-A561B">Itália</a>, <a href="https://www.consiliulconcurentei.ro/wp-content/uploads/2023/10/Eng-App.pdf">Romênia</a>, <a href="https://www.autoritedelaconcurrence.fr/en/press-release/advertising-ios-mobile-applications-general-rapporteur-confirms-having-notified-apple">França</a>, <a href="https://www.bundeskartellamt.de/SharedDocs/Meldung/EN/Pressemitteilungen/2022/14_06_2022_Apple.html">Alemanha</a> e <a href="https://archiwum.uokik.gov.pl/aktualnosci.php?news_id=18092">Polônia</a>.
Em abril de 2021, em conjunto com a atualização do iOS 14.5, a Apple adotou o ATT, impondo sobre os desenvolvedores um novo arranjo para obter a autorização dos usuários e acessar dados que são relevantes para as atividades de publicidade nos dispositivos móveis.
Embora o ATT tenha sido anunciado como uma medida para melhorar a privacidade dos clientes, o arranjo aplicável às atividades de publicidade da Apple é diferente daquele imposto a terceiros. Essa medida, que parece esconder objetivos anticompetitivos de discriminação e de self-preferencing, está sob o escrutínio de diversas agências antitruste.
A nova atualização do iOS 18 da Apple, com lançamento previsto para esta segunda-feira (16/9), parece ser um outro passo na mesma direção, já que faz parte da estratégia da empresa de se autopreferenciar em detrimento dos concorrentes, sob a alegação de proteção à privacidade. “Decida quais contatos compartilhar com apps” é uma <a href="https://www.apple.com/br/ios/ios-18/">mudança esperada dentro das funcionalidades do iOS 18</a> que alegadamente irá fortalecer a privacidade dos usuários.
Atualmente, diversos aplicativos dependem da lista de contatos dos usuários de iPhone para construir e fornecer produtos e serviços personalizados aos clientes. O acesso aos contatos dos usuários possibilitou a geração de benefícios relevantes e melhorou a experiência dos usuários dentro das plataformas. Por exemplo, ao acessar a lista de contatos, os aplicativos podem facilitar a conexão dos usuários com amigos que também utilizam a plataforma, ou até mesmo possibilitar que sua família saiba onde você está (por razões de segurança).
Com a atualização do iOS 18, a Apple exige que os desenvolvedores adotem um novo arranjo para obter o consentimento dos usuários e acessar as listas de contatos. Além da tela inicial na qual os usuários que optam por compartilhar a lista clicam em “continuar” (similar ao botão “permitir” disponível atualmente), os desenvolvedores são obrigados a adotar uma camada adicional, uma segunda tela em que os usuários escolhem entre clicar em “permitir acesso completo”, ou “selecionar contatos” para limitar o acesso.
A forma como essas telas foram desenhadas é um caso clássico de padrões obscuros: um usuário que clique em “selecionar contatos” não consegue, por exemplo, selecionar todos os contatos e deselecionar alguns. É preciso selecionar contato por contato, permitindo o acesso individual a cada um. Obviamente, isso cria fricção e obstáculos relevantes, tratando-se de uma estratégia típica para desencorajar o compartilhamento.
Embora a Apple tenha erguido a bandeira da privacidade com o lançamento dessa nova funcionalidade, os aplicativos da própria empresa estão livres do arranjo exigido para terceiros. Tal medida pode gerar distorções significativas sobre a concorrência, conforme exposto abaixo.
A atualização do iOS 18 introduz uma estratégia de discriminação e self-preferencing, ao isentar somente os aplicativos da Apple das restrições para acessar as listas de contatos dos usuários. Isso, aliás, não é algo que a Apple deixa explícito. A empresa confecciona suas próprias políticas e termos de serviço de maneiras a formalmente se ver livre das regras, criando, porém, obstáculos para aplicativos de terceiros.
Em resumo, a principal justificativa para essa discriminação parece estar relacionada à diferenciação entre dados primários (first-party data) e dados de terceiros (third-party data). Tudo ao que a Apple tem acesso se enquadraria, de maneira geral, no conceito de first-party data e tais informações não precisariam estar sujeitas a essas regras mais rígidas. Já no caso de outros desenvolvedores, eles teriam acesso a third-party data e, assim, precisariam se submeter a regras diferentes.
Essa é justamente a situação criada com a nova atualização. Diversos aplicativos dependem das listas de contatos para oferecer produtos/serviços melhores aos clientes e, com essa discriminação, a medida cria uma vantagem anticompetitiva artificial para a Apple em detrimento dos aplicativos de terceiros.
Aliás, os prejuízos concorrenciais são ainda maiores quando se pensa em inovação de aplicativos no futuro: é muito mais fácil para os aplicativos bem estabelecidos solicitarem permissão dos usuários para acessar os contatos – afinal, os usuários já confiam no produto, valorizam aquele serviço e querem continuar utilizando o aplicativo. Em contrapartida, como os novos aplicativos de terceiros, que sequer têm uma base de usuários, irão competir? A resposta é, provavelmente, uma degradação do nível de inovação, prejudicando os consumidores em última análise.
Além disso, a atualização do iOS 18 reduz a capacidade dos desenvolvedores (enquanto divulgadores de anúncios) de gerar a receita necessária para oferecer aplicativos com menor preço e maior qualidade. Ao criar outra restrição assimétrica sobre o acesso de terceiros a dados de usuários, a atualização continua a prejudicar a capacidade dos desenvolvedores de se monetizarem por meio de anúncios, pressionado esses desenvolvedores a mudarem de um modelo de monetização baseado em anúncios (ad-based), para um modelo baseado em assinatura (fee-based).
Aliás, isso convenientemente gera mais retorno para a própria Apple (já que os valores referentes às assinaturas estão sujeitos ao sistema In-App Purchase da Apple e, portanto, a uma comissão de 30%). Tal estratégia também prejudica a capacidade dos rivais de competirem com os aplicativos da Apple, já que os aplicativos de terceiros se tornariam mais caros.
Em suma, a proteção de dados e a privacidade são extremamente relevantes e devem ser levadas a sério pelas empresas. Melhorar a capacidade dos usuários de controlarem seus dados é fundamental e os esforços nesse sentido devem ser celebrados.
Contudo, isso obviamente não pode acontecer às custas de outros valores relevantes. A concorrência é um deles. Ter uma concorrência vigorosa também significa aprimoramento da privacidade, já que as empresas podem se diferenciar nesse sentido e atrair as preferências dos usuários. Caso tais preocupações não sejam levadas a sério, todas essas medidas são meramente privacy-washing, que escondem uma estratégia de self-preferencing sob a desculpa de se estar protegendo os dados pessoais de usuários.

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JOTA

Novo iOS parece outro passo da estratégia da Apple de se autopreferenciar alegando proteção à privacidade

Quando erguer a bandeira da privacidade pode esconder fins anticompetitivos

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