Roberto Fragale Filho

Depois de onze anos como juiz titular de uma vara em uma pequena jurisdição trabalhista na qual os réus repetem-se com enorme frequência, os prepostos das empresas tornam-se conhecidos, ganhando uma surpreendente intimidade. O tratamento formal da sala de audiências não se reproduz nos corredores forenses e os pequenos dramas familiares são vivenciados com a cumplicidade da convivência forçada. Momentos da vida alheia são compartilhados como se fôssemos todos companheiros de uma pequena comunidade jurídica: comenta-se a morte de um longevo preposto; comemora-se o ingresso na faculdade de outro; espalham-se rumores por conta do desaparecimento de um terceiro; brinca-se com o desconhecimento alheio; faz-se troça com a atividade comercial de um patrão enrolado; chora-se a decadência do patrão outrora portentoso, a quem só restou a litigância dos deixados por conta, encostados previdenciários que não migraram para o novo empregador. Que o leitor não se engane: a omissão dos nomes desses prepostos conhecidos não faz das diferentes histórias e situações uma peça de ficção. Elas acontecem e trazem um inesperado afrouxamento para o formalismo exagerado do espaço judicial.
Muitos são os prepostos anônimos de litigantes ocasionais e repetitivos, cuja notável discrição contribui para que enfrentem a litigância trabalhista com verdadeira fleuma britânica. Às vezes, são os próprios sócios que comparecem nas audiências, compartilhando uma surpreendente intimidade com empregados, que, não obstante estarem em lados opostos do conflito, resulta na troca efusiva de um cumprimento e de informações sobre filhos e parentes como se o dissenso trabalhista fosse estranho às relações pessoais. Não raro, depois de realizada uma conciliação, eles passam a conversar animada e afetuosamente como se aquele conflito institucionalizado não lhes dissesse respeito. Essa convivência forçada, mediada pelo judiciário, renova vínculos inesperados e traz em si a incerteza do papel do direito ao qual os litigantes parecem recorrer não para enquadrar suas relações sob o manto diáfano do jurídico, mas para renovar laços perdidos ou desfeitos no mundo do trabalho. Enfim, tudo isso faz do juiz o cúmplice ocasional de suas histórias de vida.
Entretanto, essa mesma cumplicidade é posta à prova quando dramas pessoais sensibilizam e colocam em risco sua mítica neutralidade: a dor de um pai com a prisão de um filho, o constrangimento de se confessar vítima de violência doméstica, a frustração de um abandono matrimonial, a morte de um familiar em um acidente de trabalho, todas essas narrativas confessionais tiram o juiz da zona de conforto proporcionada pelo distanciamento profissional, por uma exigida impessoalidade que termina por retirar a humanidade das pessoas que trazem seus litígios ao judiciário. É ainda viva a memória do depoimento do reclamado que começou pela singela confissão: “Doutor, ele, o reclamante, roubou-me a mulher.” Assim contado, o episódio ganha ares de folclore e poderia alimentar um filão literário em torno das “peripécias da vida judiciária de cariz pitoresco,” bem exemplificado pelos livros “Vidas de Juiz” (Associação Sindical dos Juízes Portugueses, Almedina, 2009) e “Judge Sentences: Tales from the Bench” (Dermot Meagher, University Press of New England, 2010) ou ainda pelos excepcionais “A vida não é Justa” (Agir, 2012) e “Segredo de Justiça” (Agir, 2014), ambos escritos pela juíza Andréa Pachá.
Essas histórias do cotidiano forense, vivenciadas em um ambiente litigioso e submetidas à apreciação judicial, exigem um processo decisório complexo, cujo resultado é por vezes surpreendente. Entretanto, isso ocorre não porque decidir seja um ato de liberdade de consciência, que não exige prestação de contas à sociedade, ou um simples ato de sentimento do juiz. Aliás, insistir nas origens léxicas da palavra sentença para dizer o contrário parece-me uma grande bobagem. Decidir é parametrizar e dar valor às escolhas fundamentais da sociedade, o que não pode ser feito sem sensibilizar-se com as narrativas alheias. Decidir é parametrizar fazendo eco às vozes que lutam para se fazer ouvir na arena judiciária, para não serem abafadas por litigantes frequentes e repetitivos, que transformam a dor alheia em cálculo estratégico. É isso que, ao cabo, termina por preservar o que ainda resta de humanidade em um judiciário cada vez mais prenhe de tecnologia e de rotinas produtivas para dar conta de uma litigância de massa sempre crescente. Enfim, nesse ambiente, em que a tecnologia e a rotina parecem desumanizar o conflito, preservar essa sensibilidade revela-se fundamental para que, na interface da sociedade com o judiciário, a primeira não se transforme em mero insumo do processo produtivo do segundo.

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Quando a sociedade vira insumo judicial

Cotidiano forense e a arte de decidir