Pandemia

Qual o impacto do coronavírus no Direito Financeiro?

O momento exige a adequação orçamentária necessária às demandas urgentes e imprevistas

(Brasília - DF, 18/03/2020) Coletiva à Imprensa do Presidente da República, Jair Bolsonaro e Ministros de Estado. Foto: Marcos Corrêa/PR

A resposta institucional da administração pública brasileira em relação a covid-19 possui como base o princípio da universalidade do atendimento, uma diretriz do Sistema Único de Saúde (SUS).

E como a matriz de direitos fundamentais brasileiros delimita, na abalizada doutrina de José Afonso da Silva[1], que os direitos sociais são obrigações de fazer do Estado, é imprescindível que o governo brasileiro adote medidas estratégicas que possam possibilitar respostas efetivas do sistema de saúde no combate ao coronavírus.

A velocidade de propagação geométrica da covid-19 provoca um comprometimento na infraestrutura dos serviços públicos correlatos à saúde, o que ocasiona uma imediata superlotação do sistema, comprometendo leitos ambulatoriais e até mesmo estratégias para unidades de terapias intensivas.

Nesse sentido, é preciso um redimensionamento orçamentário para que a administração pública dê vazão a uma demanda inesperada, que tem se tornado cada vez mais contínua e para isso é preciso garantir uma fonte de recursos apta a custear a capacidade de resposta do poder público.

Dentro desse cenário a recente Medida Provisória nº 924/2020, que abre crédito extraordinário no valor de R$ 5,099 bilhões de reais em favor dos Ministérios da Educação e da Saúde para custear ações de combate ao coronavírus é uma ação lúcida do Governo Federal, mas que deve ser planejada em termos de engenharia orçamentária nos termos estabelecidos pela Lei 4.320/1964 no sentido de que não ressoe em eventuais irregularidades no que diz respeito ao manejo orçamentário.

Isso porque em virtude das regras sedimentadas pela lei 4.320/1964, o processo de planejamento orçamentário é um pouco rígido e uma vez aprovado o orçamento, que é a autorização de gastos do poder público, é difícil uma mudança estruturante em termos de alocação de recursos para uma atividade inesperada, o que não impede a abertura de créditos adicionais àqueles até então planejados e respectivamente aprovados, nos termos do seu art. 41. São eles os créditos suplementares, especiais e extraordinários.

Os suplementares se destinam a reforçar uma dotação orçamentária já existente, ao passo em que os especiais são aqueles destinados para as despesas para as quais ainda não haja dotação orçamentária específica.

Os extraordinários, por sua vez, são destinados a despesas urgentes e imprevistas, como é o caso daquelas decorrentes da covid-19 e nesse contexto o Governo Federal postula a decretação de calamidade pública ao Congresso Nacional[2], mas o que isso significa em termos práticos?

O direito positivo delimita o conceito de calamidade pública nos termos do Decreto Federal nº 7.257/2010, especificamente em seu art. 2º, inciso IV o qual dispõe que a calamidade pública é uma “situação anormal, provocada por desastres, causando danos e prejuízos que impliquem o comprometimento substancial da capacidade de resposta do poder público do ente atingido” e o contexto fático da pandemia declarada pela OMS em consonância com o crescente número de infectados no Brasil pelo coronavírus deixa incontroverso o contexto de declaração de calamidade pública. Incontroverso e irreversível.

Mas quais as consequências disso? O art. 65 da lei de responsabilidade fiscal especifica a possibilidade de descumprimento da meta fiscal, bem como a dispensa da limitação de empenhos em casos de frustração de receitas e é aí onde o Direito Financeiro atua como um forte reagente ao coronavírus, funcionando como um vetor de resposta do poder público.

Ao dispensar o atingimento dos resultados fiscais, o reconhecimento de calamidade pública afasta a responsabilidade do gestor em gastar desconforme o planejado, o que lhe dá margem de segurança para destinar recursos para ações repentinas e emergenciais, como é o combate ao covid-19.

Vale lembrar que dentro da estrutura do federalismo brasileiro é natural a destinação dos recursos extraordinários previstos na Medida Provisória nº 924/2020 para os demais Estados-membros que compõem a república e os mesmos devem readequar a execução orçamentária para não incorrerem em pedaladas fiscais. Até porque toda despesa deve ter a sua respectiva e prévia autorização orçamentária.

Oportuno informar que o planejamento orçamentário inadequado já afastou a Chefia do Poder Executivo Federal outrora, como bem lembrado por José Maurício Conti à época do último impedimento político no sistema presidencialista brasileiro[3].

O aporte de recursos para a execução de políticas públicas reagentes ao coronavírus vai além do lastro financeiro e requer uma dimensão orçamentária em termos de autorização legislativa e muito embora seja unânime a confluência de interesses para alocar recursos para custear políticas públicas, é preciso ponderação quanto à formalística no sentido de se evitar problemas no que diz respeito ao controle externo da despesa pública a ser exercido pelos respectivos tribunais de contas.

Se houve uma alteração do contexto fático consideravelmente substancial e que vai de encontro à autorização política pela alocação de gastos, logo, o gestor público deve retomar o leme do planejamento e para isso abrir créditos extraordinários e a forma é através de decreto, com a imediata comunicação ao respectivo Poder Legislativo, consoante previsão do art. 44 da Lei 4.320/1964.

A necessidade de adequação orçamentária ao coronavírus é uma realidade do Direito Financeiro e, conforme ensina Marcus Abraham, o orçamento público é um vetor de criação de políticas públicas “para promover uma efetiva redução da desigualdade social, bem-estar da população e garantia dos direitos fundamentais[4]”.

É preciso, portanto, que as demandas urgentes e imprevistas tenham a devida adequação em termos de estruturação orçamentária, sob pena de responsabilização.

Referências bibliográficas

ABRAHAM, Marcus. Efeitos Econômicos do orçamento público. Transformações globais do mundo atual passam a exigir uma reformulação do papel do Estado. Revista Digital Jota, 05/12/2017

CONTI, José Maurício. Desrespeito ao Direito Financeiro afastou Dilma do cargo de presidente. Revista Digital Consultor Jurídico, 12/05/2016.

Https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2020/03/17/governo-pede-que-congresso-reconheca-estado-de-calamidade-publica.htm

SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 35ª edição. Malheiros Editores. São Paulo/SP: 2012

 


[1] SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 35ª edição. Malheiros Editores. São Paulo/SP: 2012, p. 286.

[2] https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2020/03/17/governo-pede-que-congresso-reconheca-estado-de-calamidade-publica.htm acesso em 17/03/2020

[3] CONTI, José Maurício. Desrespeito ao Direito Financeiro afastou Dilma do cargo de presidente. Revista Digital Consultor Jurídico, 12/05/2016. Disponível em https://www.conjur.com.br/2016-mai-12/mauricio-conti-desrespeito-direito-financeiro-afastou-dilma acesso em 17/03/2020.

[4] ABRAHAM, Marcus. Efeitos Econômicos do orçamento público. Transformações globais do mundo atual passam a exigir uma reformulação do papel do Estado. Revista Digital Jota, 05/12/2017. Disponível em https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/coluna-fiscal/efeitos-economicos-do-orcamento-publico-05122017 acesso em 17/03/2020.