Viviane Lícia Ribeiro

Hoje, sexta-feira, é dia de mais um capítulo do projeto “Dúvida Trabalhista? Pergunte ao Professor!”, dedicado a responder às perguntas dos leitores do JOTA, sob a coordenação acadêmica do professor, advogado e consultor trabalhista, Ricardo Calcini.
O projeto tem periodicidade quinzenal, cujas publicações são veiculadas às sextas-feiras. E a você leitor(a) que deseja ter acesso completo às dúvidas respondidas até aqui pelos professores, basta acessar o portal com a <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/pergunte-ao-professor">#pergunte ao professor</a>.
Neste episódio de nº 111 da série, a dúvida a ser respondida é a seguinte:
Pergunta ► Quais os novos rumos legislativo e jurisprudencial do trabalho intermediado por plataformas digitais?
Resposta ► Com a palavra, a professora Viviane Lícia Ribeiro.
As disrupções ocasionadas pelas inovações tecnológicas proporcionaram a quebra de conexão entre o Direito do Trabalho e os trabalhadores que vendem sua força de trabalho por meio das plataformas digitais.
Com a peculiar inovação da economia digital houve o descompasso entre as atuais regulamentações previstas no ordenamento jurídico trabalhista e o labor intermediado pelas plataformas digitais, causando insegurança e indefinição para 1,7 milhão de motoristas e entregadores<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>, dentre outros que também se valem de tal forma de prestação de serviços.
A economia compartilhada, baseada em pessoas com ocupações temporárias ou que realizam atividade freelancer sob demanda, inseridas no cenário de flexibilização do mercado de trabalho, fez com que a regulação legislativa brasileira acabasse tornando-se insuficiente na qualificação jurídica dessas novas relações, deixando de solucionar diversos problemas relativos a obrigações e responsabilidades de parte dos trabalhadores e/ou das próprias plataformas digitais.
Ainda que não seja inteiramente nova – até porque sempre existiram formas, em geral gratuitas, pelas quais as pessoas podiam se ajudar (dar uma carona ao amigo, deixá-lo dormir em casa, emprestar uma ferramenta ao vizinho) – as transações “peer-to-peer” ocorriam imersas na comunidade, sendo que a confiança necessária para que a transação ocorresse vinha de diferentes tipos de laços sociais. Contudo, atualmente, as tecnologias digitais proporcionaram o surgimento de novas práticas que diferenciam a atual economia compartilhada das antigas formas de compartilhamento.
Verifica-se que o novo modelo se distingue dos antigos por dois principais elementos: (i) a tecnologia permitiu que a chamada comunidade econômica vá muito além da família, dos conhecidos ou da vizinhança, expandindo-se para a população em geral, colocando em contato indivíduos totalmente estranhos, sem qualquer vínculo anterior; e (ii) as tecnologias digitais também forneceram os meios para obter, armazenar e processar amplas bases de dados, possibilitando a criação de indicadores de avaliação e reputação, que resolveram em parte o problema da confiança entre agentes, além da redução dos custos de coordenação entre estranhos<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>.
A tecnologia digital acabou por impulsionar a conexão entre desconhecidos, criando ferramentas para facilitar a interação entre eles, numa escala sem precedentes, fazendo com que se tenha perdido o sentido discutir essa questão sob o aspecto dicotômico entre o trabalho autônomo e o reconhecimento de vínculo, após o surgimento de novas relações de trabalho com lógicas tão diferentes.
As especificidades desse trabalho acabam desafiando o legislador a se adequar às novas realidades sociais, econômicas, tecnológicas, políticas e culturais. Entre 2015 e 2021, foram apresentados 128 projetos de lei sobre a regulamentação do trabalho em plataformas digitais, sendo que, apenas no ano de 2020, 71 projetos de lei foram criados contra 23 em 2019 por conta da pandemia, uma vez que o isolamento provocado fez com que houvesse maior destaque para o trabalho de entregadores e motoristas.
Dentre as propostas, algumas buscavam atender a novas demandas geradas pela pandemia da Covid-19 (em questões de saúde, higiene e afastamento do trabalho), ao passo que a maioria propunha a regulamentação do trabalho de forma mais abrangente (condições de trabalho, benefícios sociais e remuneração dos trabalhadores), de sorte que em 2020 as principais questões relacionavam-se à saúde e segurança, fornecimento de materiais para o trabalho e regras sobre infortúnio<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>.
Da mesma forma, o Tribunal Superior do Trabalho (<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/tst">TST</a>) ainda não possui jurisprudência cristalizada sobre o assunto, pois há divergência entre as Turmas, a qual ainda não foi pacificada por meio da decisão da SBDI-1 responsável pela uniformização interna corporis.
Os fundamentos adotados para o não reconhecimento são focados na observância de cláusulas contratuais, tais  como: valores a serem cobrados; código de conduta; instruções de comportamento; avaliação dos motoristas pelos clientes, cujas sanções no caso de descumprimento ocorrem visando a manutenção do aplicativo no mercado concorrencial, sem haver ingerência no trabalho do motorista; e a necessidade de estabelecer regras de procedimento na execução dos serviços que não se confundem com o poder diretivo do empregador, não tendo o condão de caracterizar a subordinação jurídica.
A contrário senso, tem-se a tese pela existência de vínculo empregatício, por estarem preenchidos os elementos fático-jurídicos da relação empregatícia, a exemplo do inédito acórdão de relatoria do ministro Maurício Godinho Delgado, entendeu<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>.
Em relação à pessoalidade, o entendimento foi no sentido de que os elementos demonstram que o motorista se inscreve na Uber mediante cadastro individual, com a apresentação de dados pessoais e bancários, e era submetido a um sistema de avaliação individualizada a partir das notas atribuídas pela clientela. A onerosidade, por sua vez, decorreu do repasse de 70% a 80% do valor pago pelos passageiros.
Essa percentagem elevada se justificaria pelo fato de o motorista ter de arcar com todos os custos do transporte (manutenção do veículo, gasolina, provedor de internet, celular etc.). Já a não eventualidade também ficou comprovada, pois, muito embora a relação tenha perdurado por menos de dois meses, durante esse período o serviço foi prestado permanentemente todos os dias, com controle da plataforma sobre o tempo à sua disposição. Finalmente, sobre a subordinação, o monitoramento tecnológico, ou “subordinação algorítmica”, foi considerado superior à subordinação de outras situações trabalhistas tradicionais.
Ao que tudo indica a questão permanecerá por certo tempo sem definição judicial no âmbito trabalhista, principalmente após  o entendimento proferido pelo ministro do STF, Alexandre de Moraes, que, em <a href="https://www.jota.info/stf/do-supremo/moraes-suspende-decisao-que-reconheceu-vinculo-trabalhista-entre-motorista-e-aplicativo-25072023">decisão monocrática</a> nos autos da Reclamação Constitucional 60.347, anulou decisão da Justiça do Trabalho – especificamente do Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região, que reconhecera o vínculo de emprego entre um motorista e a empresa de transporte por aplicativo Cabify –, sob o entendimento de que a relação estabelecida entre o motorista e a plataforma de transporte por aplicativo mais se assemelha à situação prevista na <a href="https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2007/lei/l11442.htm">Lei 11.442/2007</a>, a qual disciplina a atuação do transportador autônomo de carga cuja natureza jurídica é comercial, e não empregatícia.
O ministro entendeu, ainda, que a decisão reclamada desconsiderou as conclusões do Supremo Tribunal Federal (STF) no julgamento da ADC 48, na ADPF 324, no RE 958.252 (Tema 725-RG), na ADI 5835 MC/DF e no RE 688.223 (Tema 590-RG), que permitem diversos tipos de contratos distintos da estrutura tradicional do contrato de emprego regido pela CLT.
Enquanto a solução não se dá no âmbito do Judiciário, aguarda-se que o Legislativo regulamente especificamente a situação desses trabalhadores, já que por determinação presidencial foi criado grupo de trabalho para elaboração de normas de regulamentação das atividades de prestação de serviços, transporte de bens, transporte de pessoas e outras atividades executadas por intermédio de plataformas tecnológicas.
Segundo o ministro do Trabalho, Luiz Marinho, o governo deve enviar ao Congresso Nacional em setembro o projeto de lei para regulamentar o trabalho por aplicativos. Entre os itens da proposta negociada com as empresas está a definição de remuneração para os trabalhadores das plataformas, que seria baseada no salário-mínimo atual, além de regras de proteção social e jornada de trabalho. A proposta pode prever um modelo híbrido de contratos entre os trabalhadores e as plataformas, mas a chave é que tenha a proteção e valorize a remuneração<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>.
É, neste atual contextual, é sempre atual a lição do jurista francês Georges Ripert: "Quando o Direito ignora a realidade, a realidade se vinga ignorando o Direito".
Em arremate, a necessidade de regulação trabalhista das plataformas digitais se dá na defesa ontológica da razão de ser do próprio Direito do Trabalho como instrumento de civilidade e dignidade para o trabalho assalariado, porém não mais nos moldes da década de 1970 em que as relações eram baseadas no modelo industrial. Aguardemos os próximos passos dessa tão aguardada diretriz em relação ao trabalho em plataformas digitais.
<hr />
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Disponível em: <a href="https://content.news.ifood.com.br/uploads/2023/05/Datafolha_PM5597-final.pdf">https://content.news.ifood.com.br/uploads/2023/05/Datafolha_PM5597-final.pdf</a> acessado em 20/07/2023.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> Disponível em: <a href="https://greattransition.org/publication/debating-the-sharing-economy">https://greattransition.org/publication/debating-the-sharing-economy</a>. Acesso em 23.7.2023.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> Disponível em <a href="https://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/handle/10438/29938">https://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/handle/10438/29938</a>. Acesso em 23.7/2023.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> TST-RR100353-02.2017.5.01.0066.
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> Disponível em: <a href="https://www.estadao.com.br/economia/governo-enviar-setembro-projeto-regulamentar-trabalho-apps/">https://www.estadao.com.br/economia/governo-enviar-setembro-projeto-regulamentar-trabalho-apps/</a>. Acesso em 24.7.2023.

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