Francisco Eduardo Carrilho Chaves

Tendo como mote provocador a controversa criação de uma polícia judicial por meio da Resolução 344/2020, este artigo avalia a extensão das atribuições assumidas pelo <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/cnj">Conselho Nacional de Justiça</a> (CNJ) desde sua criação e a sua adequação ao que o constituinte atribuiu ao órgão fazer.
A interpretação da norma legal nos ensina que a cabeça do artigo vincula suas subdivisões<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>. Nesse diapasão, por ora passando ao largo de discussões acerca do princípio federativo, as atribuições do CNJ estão adstritas à sua competência essencial, indicada no caput do art. 103-B da CF, que é controlar a atuação administrativa e financeira do Poder Judiciário e o cumprimento dos deveres funcionais dos juízes.
Sem descurar da impossibilidade da utilização de interpretação extensiva para conferir atribuições legalmente definidas (notadamente, se as forem pela Carta Política), lembra-se do princípio basilar de administração que quem controla não administra, não exerce a gestão. As funções de controle e administração não podem ser conferidas a uma mesma pessoa ou órgão, notadamente quando o objeto do controle é a própria atuação administrativa e financeira, somada à fiscalização do cumprimento de deveres funcionais.
Apesar de estar no caput do § 4º do art. 103-B a possibilidade de o Estatuto da Magistratura conferir outras atribuições ao CNJ, entendemos que estas continuam vinculadas às suas finalidades constitucionais essenciais: controlar a atuação administrativa e financeira do Poder Judiciário e o cumprimento dos deveres funcionais dos juízes. Inclusive, a parte final da cabeça do parágrafo poderia ser alocada em mais um inciso dele.
Impende registrar, porém, que a Lei Complementar 35/1979, que dispõe sobre a Lei Orgânica da Magistratura Nacional, em obediência ao art. 93 da Constituição, conhecida como o Estatuto da Magistratura, não dispõe acerca de possíveis outras atribuições aludidas no caput do § 4º do art. 103-B, in fine.
O único dispositivo constitucional que reconhece ao CNJ a possibilidade de expedir atos regulamentares, o inciso I do caput do § 4º do art. 103-B, cinge tais atos ao seu âmbito de competência, ainda que objetivem o zelo pela autonomia do Poder Judiciário e pelo cumprimento do Estatuto da Magistratura. Repisamos que essa competência é de controle da atuação administrativa e financeira do Poder Judiciário e do cumprimento dos deveres funcionais dos juízes, não de exercer a administração do referido Poder.
Com o fim de ilustrar e enriquecer a argumentação, citamos o art. 3º da Lei Orgânica do Tribunal de Contas da União, pela qual assiste ao órgão, “no âmbito de sua competência e jurisdição, o poder regulamentar, podendo, em consequência, expedir atos e instruções normativas sobre matéria de suas atribuições e sobre a organização dos processos que lhe devam ser submetidos, obrigando ao seu cumprimento, sob pena de responsabilidade”. Por óbvio, tais atos regulamentares não são de administração dos seus jurisdicionados.
Afirmamos, assim, falecer ao CNJ competência para expedir atos de administração alheios a si próprio, como órgão administrativo que é. Não lhe cabe produzir atos de administração vinculadores dos órgãos do Poder Judiciário, subjugando a autonomia administrativa dos tribunais (art. 96, I, a, da CF) e, menos ainda, que substituam o Poder Legislativo em matéria de reserva legal, ignorando, inclusive, o princípio federativo<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>. Em outras palavras, o CNJ não é órgão de gestão administrativa superior do Poder Judiciário brasileiro (instância, aliás, inexistente). Não obstante, é assim que tem agido já há uma data. A página principal do sítio do CNJ na internet possui, inclusive, uma aba “Gestão da Justiça”, com desdobramentos tais como: “Eficiência Operacional”, “Gestão Estratégica e Planejamento” e “Valorização e Gestão de Pessoas”.
A seguir, alguns normativos do CNJ que, inequivocamente, dispõem sobre gestão: Resolução 170/2013, que regulamenta a participação de magistrados em congressos, seminários, simpósios, encontros jurídicos e culturais e eventos similares; Resolução 184/2013, que dispõe sobre os critérios para criação de cargos, funções e unidades judiciárias no âmbito do Poder Judiciário; Resolução 192/2014, que dispõe sobre a Política Nacional de Formação e Aperfeiçoamento dos Servidores do Poder Judiciário; Resolução 195/2014, que dispõe sobre a distribuição de orçamento nos órgãos do Poder Judiciário de primeiro e segundo graus e dá outras providências; Resolução 255/2018, que institui a Política Nacional de Incentivo à Participação Institucional Feminina no Poder Judiciário; Resolução 274/2018, que regulamenta o pagamento do auxílio-moradia no Poder Judiciário Nacional; Resolução 358/2020, que regulamenta a criação de soluções tecnológicas para a resolução de conflitos pelo Poder Judiciário por meio da conciliação e mediação.
Em sequência, analisemos a Resolução 344/2020 e a criação da “polícia judicial”.
Consoante o art. 37 da Lex Magna, os cargos, empregos e funções públicas são acessíveis aos brasileiros que preencham os requisitos estabelecidos em lei, assim como aos estrangeiros, na forma da lei (inciso I do caput), e a investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia em concurso público de provas ou de provas e títulos, de acordo com a natureza e a complexidade do cargo ou emprego, na forma prevista em lei, ressalvadas as nomeações para cargo em comissão declarado em lei de livre nomeação e exoneração (inciso II do caput).
São de iniciativa privativa do presidente da República as leis que disponham sobre a criação de cargos, funções ou empregos públicos na administração direta e autárquica [do Poder Executivo federal] ou aumento de sua remuneração (art. 61, § 1º, II, a, CF); bem como sobre servidores públicos da União e Territórios, seu regime jurídico, provimento de cargos, estabilidade e aposentadoria (art. 61, § 1º, II, c, CF).
O Poder Judiciário é independente (art. 2º CF), dotado de autonomia administrativa e financeira (art. 99 CF), e compete privativamente ao Supremo Tribunal Federal (STF) propor ao Congresso Nacional a criação e a extinção de cargos e a remuneração dos serviços auxiliares e dos juízos que lhes forem vinculados (art. 96, II, b, CF)<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>.
Considerando as constatações acima, os comandos citados, a necessária isonomia entre os poderes quanto à gestão das respectivas administrações e a reserva de iniciativa do presidente da República para certos temas, avaliamos que, naquilo em que for cabível, o Poder Judiciário (tribunais) possui reservas de iniciativa e limitações equivalentes às do chefe do Executivo.
Tendo o constituinte estabelecido primazia na deflagração do processo legislativo para tratar de determinadas matérias, por óbvio, a lei é necessária. Cartesianamente, é possível também afirmar ser defeso ao presidente da República dispor por meio de ato infralegal acerca dos temas aos quais lhe cabe privativamente provocar o exercício do poder legiferante. Igual barreira, s.m.j., conforme exposto, aplica-se ao Judiciário, ao Legislativo e a todos os órgãos dotados de autonomia administrativa. Com as devidas vênias, entende-se que hermenêutica em sentido contrário é absolutamente incongruente com a lógica constitucional.
É importante indicar que a autonomia administrativa do Poder Judiciário é exercida por meio dos seus tribunais, consoante claramente determinam os arts. 96 e 99 da Lei Maior, e o CNJ não é tribunal. Observa-se, também, que deliberações dos tribunais no exercício da atividade administrativa – atípica do Judiciário – não constituem coisa julgada material ou formal, pois não há exercício da jurisdição. Tais decisões são simples atos administrativos.
A ementa da Resolução 344/2020 informa que ela se presta a regulamentar o exercício do poder de polícia administrativa no âmbito dos tribunais, dispondo sobre as atribuições funcionais dos agentes e inspetores da polícia judicial. Vejamos se os fundamentos para a edição do ato, que estão em seu preâmbulo, autorizam o CNJ a dispor por meio de Resolução “sobre as atribuições funcionais dos agentes e inspetores da polícia judicial”, sem olvidar das próprias alterações nas denominações dos cargos<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>. Pontua-se que nos afigura incontroverso que se criar e extinguir cargo é matéria de lei formal, transformá-lo também o é. Afinal, a transformação nada mais é do que criar cargo novo a partir de um existente.
Por certo, a autonomia administrativa do Poder Judiciário – concedida pela CRFB para ser exercida por meio de seus tribunais, conforme evidenciado – não franqueia ao CNJ substituir-se ao Poder Legislativo e exercer a atividade legiferante, dispondo em ato administrativo sobre matéria de lei formal. Consoante prenotado, a autonomia administrativa sequer é primazia do Judiciário.
Menos ainda essa possibilidade seria dada ao órgão por lhe caber zelar pela autonomia do Poder Judiciário e pelo cumprimento do Estatuto da Magistratura (art. 103-B, § 4º, I, CF).
Pertinente observar que o Diploma Fundamental atribui à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios competência comum de zelar pela guarda da Constituição, das leis e das instituições democráticas e conservar o patrimônio público (inciso I do art. 23). Tal competência – arrolada com outras nos demais incisos do mesmo artigo – não representa ou se confunde, todavia, com competência para legislar. As competências legislativas têm loci próprios: arts. 21, 22, 24, 25, §§ 1º e 3º, 30, I e II, e 32, § 1º.
Alerta-se ainda que, a despeito de o art. 4º da Lei 11.416/2006, que dispõe apenas sobre as Carreiras dos Servidores do Poder Judiciário da União, definir que as atribuições dos cargos sobre os quais dispõe serão descritas em regulamento, resolução do CNJ não é meio adequado para fazê-lo, nem mesmo para as carreiras de natureza federal.
Noutro giro, ainda que a segurança institucional seja a primeira condição para garantir a independência dos órgãos judiciários, igualmente este não é lastro para que se subtraia do Poder Legislativo uma de suas funções precípuas.
Os considerandos da Resolução 344/2020 arrimam-na também em autorização legal que teria sido dada nos arts. 3º e 9º, § 1º, II, da Lei 12.694/2012, e que teria conferido aos tribunais (portanto, não ao CNJ) a possibilidade de adotar medidas para o reforço da segurança nas suas instalações físicas.
Sobre a referida Lei e a pretensa autorização nela contida, pontuamos: 1) a lei não institui competências legislativas, que decorrem unicamente da Carta Política e, conforme nela definidas, são exercidas pelas casas legislativas dos entes federados, com eventuais participações de outros poderes ou órgãos na propositura e do chefe do Executivo no sancionamento ou veto; 2) não se insere no âmbito de competências de nenhum tribunal produzir atos administrativos dispondo sobre matérias reservadas à lei formal. O CNJ nem mesmo é citado nos comandos acima; 3) o art. 3º não trata de órgãos ou cargos de segurança institucional, o que dizer de polícia institucional ou polícia judicial. Logo, não pode ser utilizado como fundamento para dispor sobre esses temas em ato administrativo; 4) a atribuição dada aos órgãos de segurança institucional dos tribunais judiciais de prestar proteção pessoal a autoridades judiciais ou membros do MP e de seus familiares, diante de situação de risco advinda do exercício das respectivas funções, igualmente não embasa a Resolução naquilo em que usurpa a função legislativa; 5) o art. 9º nos lembra haver diferença conceitual entre polícia judiciária e órgão de segurança institucional, o que se estende aos cargos das correspondentes carreiras, independente do nomen iuris que a eles se dê.
A polícia judiciária é exercida pelos órgãos de segurança pública do Estado. Portanto, quando se faz referência a polícia judiciária, está a se tratar da polícia federal e das polícias civis estaduais. Polícia judiciária não é polícia judicial.
Nesse sentir, resta evidente que o órgão de segurança institucional de tribunal indicado no art. 9º da Lei nº 12.694, de 2012, não se confunde com polícia judiciária.
Em matéria de reserva legal, somente aquilo anteriormente previsto em lei é possível de ser regulamentado, no sentido constitucionalmente aceito do termo. São os casos, dentre outros, de denominação, criação, extinção e transformação de cargos, bem assim de definição das respectivas atribuições e poderes, conforme sobejamente aqui demonstrado.
Em matérias prenotadas à lei – i.e., temas obrigatoriamente demarcados por meio da atividade legiferante –, nem mesmo o próprio Poder Legislativo pode transferir a terceiros atribuição para delas tratar, como se fossem “legisladores substitutos”. O próprio STF tem jurisprudência pacífica que condena o que chama de delegação legislativa externa, por ser imprópria, heterodoxa e não prevista em nossa ordem constitucional. Nesse sentido: HC 91509 e ADI 1296 MC.
As regras específicas referentes a regimes jurídicos de servidores públicos têm locus na lei do ente federado antes do que em qualquer regulamento ou outro ato administrativo.
Cumpre salientar, porém, que na situação em escrutínio sequer delegação legislativa externa houve. O Poder Legislativo nem mesmo cogitou passar qualquer quinhão de suas competências à administração do Poder Judiciário.
Por fim, observa-se que o Supremo Tribunal Federal (STF), diversas vezes, decidiu que o rol de órgãos encarregados da segurança pública é taxativo, numerus clausus (ADIs 236, 1.182, 2.575, 2.827 e 3.916), não reconhecendo, por exemplo, institutos gerais de perícias, departamentos de trânsito e polícias penitenciárias (antes da EC 104/2019) como órgãos de segurança pública. A criação de uma polícia judicial não tem assento no art. 144 da CF. Incabível é também pretender firmar simetria com o Poder Legislativo, que possui polícias próprias, pois não existe uma previsão constitucional de polícia do Poder Judiciário, ao contrário das polícias da Câmara dos Deputados e do Senado Federal (arts. 51, IV, e 52, XIII, CF).
<hr />
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Os princípios e regras a serem observados na articulação dos textos legais encontram-se nos arts. 10 e 11 da Lei Complementar 95/1998.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> O Poder Judiciário é uno apenas para fins do exercício da função jurisdicional, sendo administrativamente repartido na Carta Política entre União e Estados, em reverência ao princípio federativo e a autonomia desses entes. S.m.j., pode-se afirmar que a atividade administrativa do CNJ se cinge ao âmbito federal e, mais objetivamente, ao próprio órgão. Todavia, caso se entenda pela possibilidade de, em alguma matéria, haver extrapolação desse limite, esta encontra intransponível contenção na competência que lhe deu o constituinte: controlar a atuação administrativa e financeira do Poder Judiciário e do cumprimento dos deveres funcionais dos juízes.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> A despeito de não haver disposição constitucional taxativa conferindo autonomia administrativa e financeira aos Poderes Executivo e Legislativo, como há para o Poder Judiciário e para alguns órgãos, é incontroverso que os dois primeiros as detêm.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> O § 1º do art. 1º da Resolução altera denominações dos cargos de Analista e Técnico Judiciário, Área Administrativa – Especialidade Segurança ou Segurança e Transporte, do Poder Judiciário da União, para, respectivamente, Analista Judiciário e Técnico Judiciário, Área Administrativa – Especialidade Inspetor da Polícia Judicial e Agente da Polícia Judicial. As denominações modificadas foram dadas pela Lei 11.416/2006, o que, segundo entendemos, as torna insuscetíveis de alteração por Resolução do CNJ.

cnj-2020

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JOTA

Órgão deve controlar atuação administrativa e financeira do Judiciário e cumprimento dos deveres funcionais dos juízes

Qual é a função do CNJ mesmo?

O CNJ deve controlar a atuação administrativa e financeira do Judiciário e o cumprimento dos deveres funcionais dos juízes