Pandemia

Quais são os limites da liberdade de crença?

Alguns questionamentos para enfrentarmos uma eventual revolta da vacina

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Em breve o Supremo Tribunal Federal irá apreciar se há repercussão geral na discussão se os pais podem deixar de vacinar os seus filhos, tendo como fundamento convicções filosóficas, religiosas, morais e existenciais (ARE 1267879). Considerando o cenário de pandemia, a corrida pela produção de vacina contra o vírus SARS-CoV-2 realizada por diversos países adversários numa versão renovada de guerra fria e o fenômeno aterrorizante de negacionismo em larga escala, o tema está na ordem do dia.

A Rússia acabou de anunciar que concedeu a primeira aprovação regulatória do mundo para uma vacina contra a Covid-19. A OMS, contudo, informou que o governo russo ainda não comprovou sua segurança e eficácia, já que não realizou todos os ensaios clínicos protocolares. Diante do entendimento firmado no STF (ADI 6421) de que devem existir critérios mínimos baseados em evidências científicas para serem impostas medidas restritivas à população, poderia uma pessoa absolutamente capaz recusar-se a receber este tipo de vacina, ainda que imposta pelo Estado? Vale lembrar que o governo do Paraná já anunciou que pretende trazer a vacina russa para o Brasil.

O cenário nos lembra da famosa “Revolta da Vacina” ocorrida em 1904 na cidade do Rio de Janeiro contra a campanha obrigatória de vacinação imposta pelo governo federal para o combate de epidemia de febre amarela. O liberal Rui Barbosa foi contrário à obrigatoriedade da vacinação sob a alegação de que o governo não teria direito de “envenenar, com a introdução no meu sangue, de um vírus sobre cuja influência existem os mais bem fundados receios de que seja condutor da moléstia ou da morte”.

Diante das preocupações de Rui Barbosa, que não chegaram a ser apreciadas pelo STF da época, podemos questionar: seria a liberdade de crença prevista no art. 5º, VI da CR/88 absoluta? Fazendo um paralelo com a liberdade de expressão, que não se destina a proteger a declaração de que os coelhinhos são fofos, mas justamente para impedir a censura a ideias heterodoxas, a liberdade de crença também pretende resguardar convicções não convencionais. Mas assim como a liberdade de expressão entra em rota de colisão com diversos outros direitos fundamentais, o mesmo ocorre com a liberdade de crença.

Com relação a crenças que impedem a aplicação de vacinas, o direito do art. 5º, VI colide com o direito à saúde. E aqui voltaremos à velha discussão a respeito da autocolocação em perigo e de eventual paternalismo indevido por parte do Estado, além da saúde pública em razão do caráter contagioso da doença.

Um fator que deixa a discussão mais sofisticada e que não era possível enfrentar em 1904 decorre do conhecimento que temos hoje diante dos avanços da psicologia e da neurociência cognitivas. Esses ramos do conhecimento nos esclarecem que em processos cognitivos, como no raciocínio dedutivo, nos valemos de muitos atalhos heurísticos. Estes atalhos conduzem, algumas vezes, a conclusões imprecisas. Além desses atalhos, somos influenciados, frequentemente, por vieses que distorcem as conclusões de nosso raciocínio. Diante disso, podemos questionar se ao tomarem decisões baseadas em seus padrões de crença limitantes as pessoas o estão fazendo de forma livre e esclarecida e se isso poderia ser protegido pelo direito.

Uma dessas limitações cognitivas decorre do viés de confirmação, em que buscamos a ratificação ao invés da rejeição daquilo em que já acreditamos. Diante de certos dados que confirmem nossa crença, tendemos a acreditar na validade de conclusão, mesmo quando a lógica estiver errada.

Vale citar como exemplo o estudo[1] clássico realizado na Universidade de Stanford em que pesquisadores selecionaram dois grupos de pessoas, um com pessoas favoráveis à pena de morte e outro com pessoas contrárias. Ambos os foram submetidos à leitura de dois estudos falsos, um aparentemente confirmando e outro aparentemente contradizendo suas crenças sobre a eficácia da pena capital. Os grupos responderam aos estudos que confirmavam seu ponto de vista como superiores aos que o refutavam. Sendo assim, os pesquisadores chegaram à conclusão que pessoas com pontos de vista diferentes encontram cada qual o suporte para suas perspectivas nas mesmas amostras.

Um dos efeitos do viés de confirmação é a polarização de crenças. O estudo citado identificou que as pessoas que possuem opiniões fortes sobre questões sociais complexas tendem a examinar evidências empíricas relevantes de uma maneira tendenciosa. Assim, o resultado de expor grupos opostos em uma disputa social a um corpo idêntico de evidências empíricas relevantes pode não ser um estreitamento do desacordo, mas sim um aumento da polarização.

Outra questão importante a ser analisada é a dissonância cognitiva. O psicólogo Leon Festinger[2] sustenta que as pessoas estão sempre em busca de consistência psicológica interna e quando há algum desconforto diante da discrepância entre alguma crença e a realidade, o indivíduo busca alguma maneira de acabar com essa dissonância. Para que isso ocorra, é comum que se busque por alguma explicação, ainda que irracional, para justificar seu comportamento ou suas ideias para cessar o estado de dissonância.

Podemos citar como exemplo[3] o esclarecimento dos psicólogos Elliot Aronson e Carol Tavris para alguns comportamentos que vêm ocorrendo durante a pandemia. A crença “quero ir ao meu bar favorito e encontrar meus amigos” é dissonante com qualquer informação que sugira que essa conduta pode ser perigosa, ou para os próprios indivíduos, ou para outras pessoas com quem eles interagem. Para resolver essa dissonância e preservar sua crença de que são inteligentes e se valem de algumas justificativas irracionais, como alegar que as máscaras prejudicam sua respiração, negar que a pandemia é grave ou protestar que  uma ditadura comunista está negando sua liberdade.

Por último, vale esclarecer do que se trata o raciocínio motivado, que é um modo similar aos já apresentados de enxergar as falhas cognitivas. Trata-se do mecanismo de descartar informações desagradáveis ​​ou perturbadoras diante da dificuldade que a pessoa tem em mudar de ideia e de estilo de vida.

A psicóloga Ziva Kunda[4] esclarece que as motivações são centrais para o processo de raciocínio (formação de atitudes, crenças, processamento de informações e tomada de decisão). As motivações são estados finais que os indivíduos desejam alcançar e como afetam a interpretação, avaliação e tomada de decisão, eles podem acabar selecionando e descartando certos dados que não lhes favoreçam.

Diante da constatação dessas distorções cognitivas e a consciência de que muitas de nossas crenças são irracionais e podem ser manipuladas por mecanismos de persuasão e certas circunstâncias específicas há muito estudadas pela psicologia social[5], cabe ao operador do direito realizar uma análise mais sofisticada da liberdade de crença, utilizando-se dos conhecimentos que a psicologia e a neurociência nos trazem, de modo a garantir à sociedade um resultado mais justo e com efetividade.

 


[1] LORD, C. G., ROSS, L., & LEPPER, M. R. (1979). Biased assimilation and attitude polarization: The effects of prior theories on subsequently considered evidence. Journal of Personality and Social Psychology, 37(11), 2098–2109.

[2] FESTINGER, L. (1962). Cognitive Dissonance. Scientific American, 207(4), 93-106. Retrieved August 12, 2020, from www.jstor.org/stable/24936719

[3] Disponível em: <https://www.theatlantic.com/ideas/archive/2020/07/role-cognitive-dissonance-pandemic/614074/>.

[4] KUNDA, Z. (1990). The case for motivated reasoning. Psychological Bulletin, 108(3), 480–498

[5] Recomenda-se o estudo dos experimentos clássicos de psicologia social. Ver mais em: ASCH. Solomon E. (2004) “Opinions and Social Pressure”, Chapter 3 of: Elliot Aronson, Editor, Readings About the Social Animal, 9th Edition, Worth Publishers, New York, pages 17–26. MILGRAM, Stanley (2004) “Behavioral Study of Obedience”, Chapter 4 of: Elliot Aronson, Editor, Readings About the Social Animal, 9th Edition, Worth Publishers, New York, pages 27–40. ZIMBARDO, Philip (2007) The Lucifer Effect, Random House, New York.