Pergunte ao professor

Quais os impactos do coronavírus no gerenciamento de programas de compliance?

Sob o viés trabalhista é importante que sejam avaliados os processos adotados pelo departamento pessoal

Crédito Pixabay

Hoje, sexta-feira, é dia de mais um capítulo do projeto “Dúvida Trabalhista? Pergunte ao Professor!” dedicado a responder às perguntas dos leitores do JOTA, sob a Coordenação Acadêmica do Professor de Direito do Trabalho e Mestre nas Relações Trabalhistas e Sindicais, Dr. Ricardo Calcini.

O projeto tem periodicidade quinzenal, cujas publicações são veiculadas sempre às sextas-feiras. E a você leitor que deseja ter acesso completo às dúvidas respondidas até aqui pelos professores, basta acessar o portal com a  # pergunte ao professor.

Neste episódio de nº 28 da série, a dúvida a ser respondida é a seguinte:

Pergunta ► Quais os impactos do coronavírus no gerenciamento de programas de compliance?

Resposta ► Com a palavra, o Professor Iuri Pinheiro.

A existência de um adequado gerenciamento de riscos e eficaz sistema de controle interno é essencial para o cumprimento do programa de integridade, em conformidade com os normativos internos, externos e com os objetivos estabelecidos pela alta administração da empresa.

O CADE, em seu Guia Programas de Compliance, dispõe que: “A adoção de programas de compliance identifica, mitiga e remedia os riscos de violações da lei, logo de suas consequências adversas”[2].

Sob o viés trabalhista, é muito importante que sejam avaliados os processos adotados pelo departamento pessoal, os registros documentais dos contratos de trabalho e a verificação de conformidade com a legislação trabalhista e demais normativos aplicáveis aos contratos de trabalho.

O sistema de controle interno deve trabalhar com a antecipação de riscos, com a adoção de medidas preventivas, detectivas e reativas.

O “Committee of Sponsoring Organizations of the Treadway Commission” (COSO) publicou a obra “Internal Control – Integrated Framework” com intuito de ajudar empresas e outras organizações a avaliarem e aperfeiçoarem seus sistemas de controle interno. O referido modelo tem sido adotado por diversas organizações, como, por exemplo, no Manual Gestão de Risco do Ministério da Justiça[3].

Além disso, outro normativo de especial relevância é a ISO 31000:2018 (Gestão de Riscos), que estabelece uma série de regras e diretrizes para implementação eficaz de um modelo de gestão de riscos.

O programa de compliance deve, portanto, estar integrado ao sistema de gerenciamento de riscos, com o mapeamento de todas as legislações e regulações às quais a empresa esteja sujeita, contemplando ações de mitigação envolvendo riscos de fraude, corrupção e infração à lei.

De mais a mais, o gerenciamento de riscos no âmbito trabalhista já é uma tarefa extremamente árdua diante do farto rol de normas aplicáveis às relações de trabalho e a multiplicidade de acomodações interpretativas, além da complexidade do relacionamento interpessoal.

E essa tarefa fica ainda mais complexa com a pandemia covid-19 porque os riscos se potencializam estratosfericamente.

Com efeito, o isolamento social e a quarentena abrem um leque muito variado de situações que podem ocorrer com o contrato de trabalho.

A Medida Provisória 927/2020 trouxe as seguintes opções: (i) o teletrabalho; (ii) a antecipação de férias individuais; (iii) a concessão de férias coletivas; (iv) o aproveitamento e a antecipação de feriados; (v) o banco de horas; (vi) a suspensão de exigências administrativas em segurança e saúde no trabalho; (vii) o direcionamento do trabalhador para qualificação; e (viii) o diferimento do recolhimento do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço – FGTS.

Ocorre que praticamente todas as medidas podem envolver riscos que não se limitam aos aspectos formais da medida provisória, tais como prazos e meios de registro de alterações contratuais.

Sem pretensão de exaurir o tema, aponto exemplificativamente alguns deles.

O teletrabalho sempre envolve preocupações relacionadas à ergonomia do ambiente de trabalho e possíveis doenças ocupacionais que possam surgir. Ainda nessa temática, a exclusão do direito a horas extraordinárias para o trabalhador em regime de teletrabalho sempre provoca discussões jurídicas, em virtude da possibilidade de a jornada poder ser controlada por meios telemáticos.

A antecipação de férias trará a discussão jurídica acerca da desnaturação do próprio instituto, que é garantido constitucionalmente, já que sua finalidade é propiciar uma desconexão planejada. Além disso, a possibilidade de postergar o pagamento do terço de férias para vinte de dezembro também gerará debate jurídico, considerando a disposição constitucional que prevê a fruição de férias com acréscimo de um terço.

Particularmente, em uma análise inicial, entendo por razoáveis essas disposições da MP 927/2020, considerando que vivemos uma situação de anormalidade, que exige concessões de todos, mas não se pode negar que a possibilidade de interpretação diversa atrai carga de risco que deve ser avaliada para decidir pela assunção deste ou adoção de outra alternativa.

A antecipação de feriados trará a mesma discussão relacionada a possível desnaturação do instituto e envolverá também um problema de ordem prática causado por omissão do texto da medida provisória, qual seja: quais são os feriados que podem ser antecipados? Apenas os do ano de 2020? Aqueles que possam ocorrer em até um ano? Considerando a omissão, a prudência pode indicar que se considerem apenas os feriados de 2020.

No que se refere ao banco de horas, há o risco de questionamentos judiciais acerca da possibilidade de sua pactuação por meio de acordo individual, considerando o lapso temporal de até dezoito meses para realização de horas extraordinárias que visem promover a compensação de jornada não trabalhada. Para além disso, pode haver repristinação de discussão de validade de banco de horas negativo. Em que pese, novamente me pareça que a excepcionalidade da situação justifique esse tratamento excepcional, reitera-se que estamos cuidando de riscos.

Em relação à suspensão de exigências administrativas em saúde e segurança no trabalho, a previsão causa uma grande preocupação pela sua amplitude. É certo que existem exigências administrativas concentradas em expedientes burocráticos, tais como os requisitos de pleito eleitoral de CIPA, que, nesse momento, se revelam de difícil observância. Contudo, a extensão da previsão poderia sugerir a desnecessidade de medidas concretas de saúde e segurança, tais como requisitos técnicos de equipamentos de proteção coletiva ou individual, o que seria um contrassenso em um momento que vivemos uma insegurança de saúde pública e não resistira a um filtro de constitucionalidade porque o art. 7º, XXII, da CFRB proclama o Princípio do Risco Mínimo Regressivo.

O direcionamento do trabalhador para qualificação tinha seu regramento mais detalhado no art. 18 da MP 927/2020, que permitia a suspensão do contrato de trabalho por até quatro meses e sem garantia de salário nem contrapartida estatal, o que gerou grande preocupação e insatisfação da sociedade, mas a medida foi revogada pela MP 928/2020.

A despeito da revogação do art. 18 da MP 927/2020, cumpre esclarecer que o art. 476-A da CLT continua em vigor, permitindo a suspensão contratual pelo mesmo período, mas com a contrapartida de estatal de percepção do seguro-desemprego e desde que tenha sido convencionado através de negociação coletiva e aquiescência formal do empregado.

Já o diferimento do recolhimento de FGTS é passível de sofrer o questionamento por se tratar de direito assegurado constitucionalmente, em relação ao qual reitero a advertência de razoabilidade justificada pela excepcionalidade.

Uma outra questão muito controversa é a possibilidade da redução de salário através de acordo individual entre empregado e empregador. Há quem levante a bandeira de que o art. 2º da MP 927/2020 respaldaria tal providencia porque teria conferido primazia ao acordo individual nesse momento[4].

É necessário alertar, contudo, que o risco dessa opção é extremamente elevado porque a CFRB assegura a irredutibilidade salarial, salvo negociação coletiva, razão pela qual a disposição da medida provisória padeceria de inconstitucionalidade. Mas, a bem da verdade, o próprio art. 2º, acima transcrito, menciona a necessidade de observância da Carta da República, razão pela qual não se poderia cogitar dessa possibilidade.

Há quem defenda, ainda nesse tocante, que a redução por acordo individual estaria legitimidade porque a MP 927/2020 teria reconhecido o estado de força maior (art. 1º, § 1º) e o art. 503 da CLT asseguraria a redução salarial nesses termos, mas novamente o risco é muito acentuado porque esse dispositivo é recorrentemente declarado como não recepcionado pela jurisprudência justamente pela necessidade constitucional de negociação coletiva.

Outro risco que precisamos elucidar nesse breve ensaio é sobre a possibilidade de rescisão contratual por força maior ou fato do príncipe.

Uma primeira observação a ser feita é que o reconhecimento de que a situação se enquadra em força maior pela MP 927/2020 não é suficiente para promover automaticamente a redução de indenizações da rescisão contratual. Isso porque, para tanto, o art. 502 da CLT exige a extinção da empresa ou de um de seus estabelecimentos, de modo que se a empresa continuar executando atividades já não se mostra cabível a o enquadramento.

Além disso, o referido art. 502 da CLT exige que a força maior “determine a extinção da empresa”, de modo que será necessário demonstrar que o fechamento foi tão somente em virtude da suspensão de atividades por ato governamental.

Contudo, nem sequer se tem conhecimento de quanto tempo perdurará a suspensão de estabelecimentos, sendo extremamente arriscado já afirmar que a paralisação por alguns dias teria, por si só, tornado inviável o negócio empresarial. Ainda que se imagine uma suspensão de atividades por 40 dias, é complexo avaliar se ela seria suficiente, por si só, para provocar o fechamento do estabelecimento.

A análise será pontual, de acordo com o perfil de cada negócio empresarial, e de avaliação final, após melhor delineamento do alcance dos atos estatais.

As mesmas ponderações valem para o caso de fato do príncipe, que reflete uma modalidade de força maior e está detalhado no art. 486 da CLT.[5]

É necessário, contudo, desmistificar uma falsa ilusão que tem pairado no cenário. Há quem imagine que, com o fato do príncipe, o empregador deixaria de ter qualquer responsabilidade, mas não é isso que se extrai do dispositivo transcrito, o qual menciona que a indenização ficaria a cargo do governo.

Em outras palavras, o governo responderia pela indenização rescisória do FGTS, ficando as demais verbas a cargo do empregador.

Considerando que o fato do príncipe é uma espécie de força maior, há quem defenda que essa indenização seria apenas de 20%, na esteira do art. 502, II, da CLT.

É preciso ainda destacar que o fato do príncipe é previsto na CLT como matéria a ser arguida em defesa, o que demandaria a necessidade de um processo judicial em desfavor do empregador.

A matéria é tão complexa que o art. 486 da CLT está em vigor desde 1943 e não há notícia de que já tenha havido algum caso concreto de reconhecimento pelo Poder Judiciário.

Uma questão que pode ser ponderada, no caso de ocorrência de força maior ou fato do príncipe, é que não seria devido o aviso prévio, já que a rescisão seria por fato alheio à vontade e previsibilidade do empregador.

A fim de dimensionar um risco de gestão documental a ser tratado pelos empregadores, cumpre realçar a dificuldade obtenção de atestados médicos no momento atual, havendo inclusive recomendação de órgãos médicos de que pessoas fora de situações de gravidade evitem a procura de atendimento médico.

Exatamente em função disso é que foi concedida medida liminar em ação civil pública (Processo PJe nº 0010213-25.2020.5.03.0109) para que empregadores vinculados a determinados segmentos se abstivessem de exigir o atestado médico formal enquanto durar a situação de emergência.

Por fim, cumpre pontuar que a negociação coletiva é o caminho mais seguro, equilibrado e democrático de resolução do conflito, tendo o próprio Ministério Público do Trabalho reconhecido a possibilidade de flexibilizações através desse instrumento (Nota Técnica 06/2020 da CONALIS), ante o seu prestigio constitucional (art. 7º, XXVI, da CFRB).

Oportuno afiançar que os rigores formais de celebração de uma negociação coletiva possuem como pressuposto a situação de normalidade, razão pela qual nessa situação de anormalidade devem ser abrandados os seus rigores com razoabilidade e por meio de ampla utilização dos meios telemáticos.

Mostram-se razoáveis também as tentativas de celebração de negociação coletiva com os entes federativos de qualquer grau, ante a urgência da situação, cumprindo delinear que na Nota Técnica 06/2020 o próprio MPT também se coloca à disposição para mediar tais conflitos.

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[2]     Ibidem.

[3]     CF. BRASIL, MINISTÉRIO DA JUSTIÇA, 2018. Manual de Gerenciamento de Riscos e Controles Internos. Disponível em: <https://www.justica.gov.br/Acesso/governanca/gestao-de-riscos/biblioteca/Manual/ManualdeGestodeRiscosMJverso1.pdf>. Acesso em: 27 de dez. 2019.

[4] Art. 2º  Durante o estado de calamidade pública a que se refere o art. 1º, o empregado e o empregador poderão celebrar acordo individual escrito, a fim de garantir a permanência do vínculo empregatício, que terá preponderância sobre os demais instrumentos normativos, legais e negociais, respeitados os limites estabelecidos na Constituição.

[5] Art. 486 – No caso de paralisação temporária ou definitiva do trabalho, motivada por ato de autoridade municipal, estadual ou federal, ou pela promulgação de lei ou resolução que impossibilite a continuação da atividade, prevalecerá o pagamento da indenização, que ficará a cargo do governo responsável. § 1º – Sempre que o empregador invocar em sua defesa o preceito do presente artigo, o tribunal do trabalho competente notificará a pessoa de direito público apontada como responsável pela paralisação do trabalho, para que, no prazo de 30 (trinta) dias, alegue o que entender devido, passando a figurar no processo como chamada à autoria.